Autor – Rostand Medeiros
A região do
Seridó Potiguar nunca foi pródiga na formação de cangaceiros, nem ocorreram
surtos sérios deste fenômeno de banditismo social. Contudo, existiram alguns
cangaceiros originários desta região, basicamente ligados ao bando de Antônio
Silvino. Um deles foi Gitirana, cujo nome real era Bento Gomes de Lira. Nascido
em Catolé do Rocha em 1889, entrou no bando de Silvino aos 18 anos de idade,
permanecendo nas correrias pelo sertão até 1910. Segundo o pesquisador Adauto
Guerra Filho, autor do livro “O Seridó na memória de seu povo”, Gitirana
faleceu em 1978, sem ter concedido nenhuma entrevista sobre o assunto, pois não
gostava de falar de sua passagem pelo cangaço. Apenas declamou versos sobre o
seu ex-chefe e suas lutas. Aparentemente Gitirana viu muita coisa interessante
no período que esteve no bando, mas calou-se e praticamente se encontra
esquecido para aqueles que se debruçam sobre este tema.
Diferentemente
foi o caso de Francisco Nicácio da Silva, nascido em 9 de dezembro de 1893, na
Fazenda Coelho, atualmente município de São Fernando, Rio Grande do Norte.
Nicácio vivia com seus pais e quatro irmãos uma infância aparentemente
tranquila, caçando nas terras das Fazendas Coelho e na vizinha Saboeiro, nas
imediações dos riachos da Roça e da Pitombeira. Um dia foi mordido por uma
jararaca, passando a ser conhecido pelo apelido que o tornaria conhecido no
cangaço; Chico Jararaca.
CHICO JARARACA, ex-cabra de Antonio Silvino
A propriedade
Coelho pertencia a Joaquim Saldanha, conhecido como Quincas Saldanha, rico
fazendeiro que tinha Catolé do Rocha como sua área de atuação política. Quincas
Saldanha era um chefe político de atitudes violentas e prepotentes, possuindo
numeroso bando de “cabras” a sua disposição e prontos a cumprir suas ordens.
Controvérsias
Como sua
família era “gente” de Quincas Saldanha, seguindo a risca as ordens do chefe,
não é difícil de compreender a razão de Chico Jararaca fazer parte de um grupo
de sete “cabras” que seu patrão levou para Serra Negra do Norte, no Rio Grande
do Norte, para colocar este pessoal ao grupo de Silvino.
Aqui abro um
parêntese na história de Chico Jararaca para apontar ao leitor a dificuldade de
se levantar uma história baseada, na sua totalidade, em entrevistas orais. Os
pesquisadores Carlos Lyra e Adauto Guerra Filho, que entrevistaram o
ex-cangaceiro em diferentes anos das décadas de 70 e 80 do século passado, não
são coincidentes nas informações básicas.
Um assunto
controverso é a data de nascimento de Nicácio, bem como o período em que Chico
Jararaca entrou e participou do bando de Silvino. Entre os dois pesquisadores
existe uma diferença de dez anos sobre a data de nascimento do cangaceiro
seridoense.
Sobre a
entrada do mesmo no cangaço, Carlos Lyra indica, através do depoimento prestado
em 1972 pelo ex-cangaceiro, que o mesmo permaneceu nas hostes de Antônio
Silvino dois anos, de 1911 a 1913. Já Adauto Guerra aponta, através de
entrevista concedida por Chico Jararaca em junho de 1982, que ele teria
pertencido ao bando por quatro anos, de 1909 a 1913.
Saber quando e
em qual período Chico Jararaca entrou no bando é difícil. Acredito que neste
aspecto Carlos Lyra obteve mais sorte, devido ao fato do próprio Chico Jararaca
ter lhe fornecido uma data, 30 de maio de 1911.
Sem adentrar
mais nesta questão, mesmo com controvérsias, é possível traçar um relato da
vida de Chico Jararaca.
Junto com
Antônio Silvino
Sua entrada no
cangaço deu-se quando o mesmo tinha entre 18 e 26 anos.
Antonio
Silvino
Quando Quincas
Saldanha forneceu seus homens para Antônio Silvino, o chefe quadrilheiro
buscava reforçar seu grupo para ajudar um parente de nome Manoel Godê. Este
seria irmão de Antão Godê, nome de guerra de Idelfonso Godê de Vasconcelos.
Estes irmãos eram parentes de Silvino, homens valentes ao extremo e que
buscavam apoio para atacar um grupo de inimigos comuns na região da Serra da
Colônia, em Afogados da Ingazeira, Pernambuco. Este local era especial para
Antônio Silvino, pois no sopé desta serra existe a Fazenda Colônia, local de
seu nascimento.
O grupo de
jovens do Rio Grande do Norte seguiu para o lugar “Santo Agostinho”, nas
proximidades da Serra da Colônia. Os inimigos dos Godê, que Chico Jararaca
denomina apenas de “negos” ou “mulatos”, eram protegidos do coronel Desidério
Ramos, homem poderoso em Afogados da Ingazeira. Em 3 de janeiro de 1897,
Desidério matou, juntamente com outros capangas, o pai de Antônio Silvino,
Pedro Baptista Rufino de Almeida, conhecido como “Batistão”.
Ao chegar à
região, Chico Jararaca descobriu que o grupo dos “mulatos” tinha 33 homens em
armas, enquanto o grupo de Silvino e dos Godê apenas 16 “cabras”.
Logo ocorreram
tiroteios entre os grupos no lugar “Jasmim” e em outros locais. Mas este
trabalho, tão próximo à morte, não estava nos planos do jovem Nicácio. Decidido
a deixar o bando, Chico Jararaca avisou a Antônio Silvino sua intenção de
voltar para o Seridó. O problema é que o jovem cangaceiro não sabia o caminho
de retorno, tinha medo de cair “no oco do mundo” e o jeito foi ficar no bando,
na “vida do rifle”.
Silvino após sua captura em 1914
Chico Jararaca
estava em uma ocasião participando de uma tocaia, junto com o chefe Antão Godê,
quando avistam a figura do inimigo “Bem-te-vi”, que vinha por uma várzea
galopando em um cavalo baixo. “Bem-te-vi” era um combatente já veterano em
outras lutas e não se alterou quando Godê ordenou ao comandado mandar bala no
inimigo. Chico tremeu diante da tranqüilidade do seu oponente, ele atirou
várias vezes, mas o inimigo não foi atingido, não reagiu e ainda tirou o chapéu
de couro e disse corajosamente “-Vão lá para casa que vocês almoçam bala,
jantam bala, e se há bala, dormem com a bala na mão”.
Combate na
Atual Santa Maria do Cambucá, Pernambuco
Quando entrou
no cangaço, junto com o pessoal de Quincas Saldanha, fazia parte do grupo
Estevam, Cassimiro, Peitada, Joaquim Cigano, Neco Domingo, Mané Barão e Mané
Pequeno. No bando de Silvino conheceu Serrote, Pau Reverso, Zé Pedro, Manuel
Pequeno, Severino, Girondo, Gavião, Biano, Salvino, Bacurau, Manoel e Antão
Godê. Para Chico Jararaca todos eram valentes por igual, mas os Godê se
sobressaíam. Já o negro Serrote era extremamente perverso, gostava de buscar os
soldados da polícia feridos e sangrá-los cruelmente. Entretanto, na hora da
defesa, todos participavam.
Jornal do
Recife, Sexta Feira, 19 de julho de 1912
O combate que
mais fortemente permaneceu na memória de Chico Jararaca foi o realizado em
1912, contra a vila de Santa Maria (atual Santa Maria do Cambucá, Pernambuco).
O bando com 22
cangaceiros dormira em Vertentes, próximo a Taquaritinga do Norte, onde
pretendia ir a Santa Maria para ajustar umas contas com o tenente-coronel José
Braz Pereira de Lucena, conhecido como coronel Zé Braz, que desdenhara dos
pedidos de dinheiro do chefe quadrilheiro e ainda respondia desaforadamente as
ameaças de Antônio Silvino. Este soubera também que o coronel acolhera em sua
casa uma volante da polícia pernambucana, comandada pelo capitão João Nunes e
isto tornara o coronel Zé Braz seu inimigo.
A vila se
localizava em uma área baixa, de onde os cangaceiros contemplavam a urbe e sua
feira semanal. Neste momento se aproxima do bando um velhinho que voltava da
feira, Silvino ordena que o mesmo retorne a vila e avise ao coronel Zé Braz que
o bando vai entrar. O velho desce para vila, os cangaceiros observam quando ele
se encontra com o coronel e retorna para onde está o bando. Zé Braz e o
sargento Georgino mandaram avisar que por lá eles não passariam.
O povo se
assusta com a movimentação, Chico Jararaca afirma que Antônio Silvino só
ordenou o inicio dos disparos depois que o povo da feira houvesse deixado a
praça pública. Outros autores afirmam que os cangaceiros não esperaram por nada
e nem por ninguém. Entraram na feira distribuindo chicotadas no povo, atirando
para o alto, derrubando bancas e barracas. A feira acaba e o tiroteio começa.
Santa Maria do
Cambucá hoje – Fonte –santamariacambuca.blogspot.com
Para o
ex-cangaceiro, os homens do coronel Zé Braz atiraram primeiro, depois a
resposta do bando de Silvino foi “empurrar o dedo” nos defensores. O tiroteio
teria durado quatro horas para Chico Jararaca, para outros pesquisadores a
resistência durou pouco mais de uma, ou no máximo duas horas, e acabou pelo
fato do grupo de defensores de Santa Maria haver esgotado sua munição.
Com o fim da
resistência, familiares de Zé Braz pediram garantias ao seu parente, que foram
concedidas e ele foi obrigado a explicar as razões de ter admitido a volante em
sua casa. Satisfeito com a explicação, Silvino exigiu três contos de réis pela
vida do coronel (jornal da época fala em um conto de réis), que foi pago.
Sargento
Alvino, promovido a alferes após a captura de Antonio Silvino
Chico Jararaca
nada comenta sobre o saque e a total destruição do comércio de José Alvino
Correia de Queiroz, que teve tudo que possuía roubado e queimado. Este
comerciante sentou praça na polícia de Pernambuco, conseguindo o posto de
sargento e passa a perseguir Antonio Silvino. Quando este foi um capturado, em
28 de novembro de 1914, na propriedade Lagoa da Laje, em Taquaritinga,
Pernambuco, José Alvino só não matou o chefe bandoleiro por insistente ordem do
tenente Theophanes Ferraz Torres.
Memórias
Controversas
Chico Jararaca
possuía um rifle Winchester, calibre 44 e normalmente transportava 600
cartuchos. Ele comentou que não faltava munição ao bando, onde Silvino adquiria
o material através dos fazendeiros amigos. Entretanto nunca declinou o nome
destas pessoas.
Silvino, de
roupa escura no centro da foto, após sua captura
Uma afirmação
controversa dada pelo ex-cangaceiro foi que em 1912, em uma oportunidade que o
bando retornava para Afogados de Ingazeira e descansou nas proximidades de Vila
Bela (atual Serra Talhada), Chico Jararaca afirmou que “conheceu Lampião”. O
encontro se deu na casa do velho José Ferreira, pai do futuro “Rei do Cangaço”,
sendo um momento de muita alegria, pois, segundo Chico Jararaca, “Antônio
Silvino era primo da mãe de Lampião”. Na ocasião deste encontro, Chico Jararaca
viu Virgulino Ferreira da Silva quando este retornava de uma viagem como
almocreve, o futuro chefe cangaceiro teria entre 12 e 16 anos.
O oficial
Theophanes Ferraz Torres, comandante da volante que capturou Silvino. Valente e
destemido, seria um grande perseguidor de Lampião.
Segundo o
depoimento de Chico Jararaca, ele já tinha ouvido muito falar na intrigante
história do “cangaceiro que comeu sal”, que vivia sendo narrada pelos
cantadores de viola que declamavam as valentias do chefe Silvino pelo sertão
afora. Ele afirmou que não foi testemunha deste fato, mas acreditava que esta
história havia ocorrido de verdade. Em uma ocasião o grupo chegou à casa de uma
mulher muito pobre, ela se encontrava só e seu pai estava em um roçado a três
quilômetros de distância. O chefe quadrilheiro a tranquilizou, lhe deu
garantias de vida e ordenou que matasse uma galinha para saciar a fome do grupo
de cangaceiros. No medo, a mulher esqueceu de colocar sal. Após degustarem a
alimentação insossa, o chefe pagou a senhora e quando saiam da casa, perguntou
ao grupo o que acharam da comida e a cabroeira respondeu que estava boa.
Silvino repetiu a pergunta três vezes e em todas as ocasiões à resposta foi
idêntica. Contudo, na última vez, um dos rapazes comentou que “estava boa, mas
um pouco insossa”, nisto o chefe alterou o semblante e disse ameaçadoramente
“por causa disso, o companheiro vai comer um litro de sal”, mas a ameaça não se
concretizou. Provavelmente Silvino desejava chamar a atenção dos seus “cabras”
com esta incerta história.
Deixando o
Bando
Para Chico,
Antônio Silvino era um homem muito bom, tratava todos bem no bando, não
obrigava ninguém ficar ao seu lado e detestava quem bebia cachaça.
Antônio
Silvino e Lampião eram muito diferentes nas suas maneiras de praticarem o
cangaço, mas compartilhavam o mesmo ódio em relação à polícia, aos rastejadores
e aos delatores.
Chico Jararaca
afirmou, sem maiores detalhes, que durante o período que esteve com Antônio
Silvino presenciou a realização de muitos casamentos, onde o comandante
bandoleiro não deixava um “cabra safado”, que supostamente “buliu” com uma
menina, sair incólume e não assumir as responsabilidades do matrimônio.
Outra
declaração bem contraditória do ex-cangaceiro foi que em uma ocasião, quando
Antônio Silvino esteve no Ceará, o grupo assistiu em Juazeiro a uma missa
realizada pelo padre Cícero Romão Batista. Chico Jararaca afirmou que Antônio
Silvino tinha ótimas relações com os padres José Cabral e Aristides,
respectivamente párocos e chefes políticos de Gurinhém e Piancó, ambas as
localidades na Paraíba.
Mas a maré
começaria a mudar para o bando. No dia 25 de dezembro de 1912, ocorria uma
importante reunião em Recife, onde pela primeira vez seria efetivamente
concretizada a união das polícias dos Estados do Rio Grande do Norte, Ceará,
Paraíba e Pernambuco, para conjuntamente darem cabo de Antonio Silvino e seu
bando.
Em 1913, como
resultado desta nova iniciativa governamental, ocorreu uma forte perseguição ao
grupo. Para Chico Jararaca, estas perseguições produziam fome e lhe mostrava a
pouca perspectiva de continuar nesta vida. O cangaceiro seridoense pediu a
Antônio Silvino para deixar o grupo. O chefe não criou problemas e em 1913 eles
se viram pela última vez.
O Descanso do
Antigo Cangaceiro
Chico Jararaca
retornou para a fazenda Coelho e escondeu seus apetrechos do cangaço. Mas sua
nova vida não seria tão fácil, pois teve que viver 48 dias escondidos da
polícia na Serra da Forquilha, onde se deslocava até o Boqueirão de Porteiras,
para se abrigar em uma caverna granítica com duas entradas.
Houve até um
encontro com a força volante do tenente Zacarias Neves, mas Chico conseguiu
enganar o oficial e seus homens, passando por um simples caçador. O próprio
oficial lhe ofereceu para sentar praça na polícia, mas o “caçador” recusou.
Após estes
episódios, Chico Jararaca voltou a ser Francisco Nicácio da Silva, casou em
1917 com Rita Antonina da Silva, tiveram quatro filhos, mas a dura realidade
das carências do sertão provocou a morte de todos os seus filhos.
Chico enviuvou
em 1964, passando a viver numa casinha de barro, na mais franciscana condição,
junto com outros parentes e amigos. Guardava na sua humilde vivenda retratos de
Nossa Senhora da Conceição e de São Sebastião. Nunca se esqueceu de mandar
rezar, em todo mês de janeiro, uma novena para o santo de devoção.
Sua vida como
cangaceiro lhe proporcionou algumas situações interessantes; ele teve
oportunidade de conhecer vários lugares na Paraíba, Pernambuco, Alagoas e no
Ceará, numa época onde muitos dos seus semelhantes mal tinham oportunidade de
conhecer a fazenda vizinha e após o cangaço viveu apenas na fazenda Coelho.
Conheceu poderosos do seu tempo, sentou-se à mesa de muitos que, de forma
subserviente, atendiam seu chefe e morreu apoiado apenas por uma parca
aposentadoria.
Os livros que
adentram mais detalhadamente na vida de Antônio Silvino são pouco informativos
sobre aventuras ligadas ao cangaceiro Chico Jararaca, o que mostra ter sido
discreta sua passagem pelo bando, provavelmente rápida, sem maiores façanhas, a
não ser acompanhar o chefe Silvino.
No seu
depoimento a Carlos Lyra, Chico Jararaca se dizia um homem “que atirava muito
mal”, “que correu muito” e por isto “nunca havia matado ninguém”. A Adauto
Guerra ele mostrou uma cicatriz no peito, produzido por uma bala “varada” e sem
rumo.
O que tornou
Chico Jararaca conhecido foi sua comprovada condição de ter sido o último
membro sobrevivente do bando de Antônio Silvino, além de sua abertura aos
pesquisadores aqui mencionados e a outras entrevistas que ele participou, proporcionando
aos que se debruçam sobre a história do cangaço, um melhor detalhamento sobre a
realidade do cangaço de Antônio Silvino.
Francisco
Nicácio da Silva, o Chico Jararaca, faleceu em 18 de dezembro de 1984, estando
enterrado no cemitério São Vicente de Paulo, no bairro Paraíba, em Caicó.
VEJA TAMBÉM NO
TOK DE HISTÓRIA
Extraído do blog Tok de História do historiógrafo Rostand Medeiros:
http://tokdehistoria.com.br/2014/11/08/a-historia-do-cangaceiro-seridoense-chico-jararaca/
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