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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

“O GLOBO”- 29/11/1958 - PARTE FINAL

Material do acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho
 
Volta Seca

COMO SE FORJA UM CANGACEIRO

O SOFRIMENTO CONTINUA... ATÉ QUANDO?

Miséria e Ignorância de Mãos Dadas – Serviços Duros e Mal Pagos – Sonho Simples de um Homem Humilde – Razão Desta História.

EIS-ME chegado ao final desta narrativa. Foi quase tudo de minha vida e que eu contei, e se existe o “quase” é porque ainda tenho alguns anos pela frente para viver. Poucas pessoas, ao chegarem à minha idade – 39 anos –, têm tanta coisa para contar, e isso levando em conta que, dessa idade, ainda têm que ser descontados vinte anos de cadeia. Eu às vezes sinto a sensação de que já vivi demais, pois o sofrimento que o mundo me tem imposto envelheceu-me bastante.

Volta Seca

Minha vida, desde que deixei a cadeia, tem sido dura e até perigosa. Poucos meses depois de sair da penitenciária da Bahia, escapei por pouco de ser assassinado, e, o que é mais curioso, sem saber quem foi e por que me queriam matar. Devia, porém, ter sido uma vindita, remanescente do tempo do cangaço, que não tinha sido ainda de todo esquecida. Mas eu não tenho mais nada a me acusar na consciência, pois, o que tinha, os vinte anos de reclusão apagaram e me deixaram bem disposto, para enfrentar o mundo.

Volta Seca

FOME E HUMILHAÇÃO

INFELIZMENTE, tenho a impressão de que as contas com Deus ainda não estão de todo saldadas, pois tenho sofrido bastante. Desde que cheguei ao Rio, não faço outra coisa senão trabalhar nos piores serviços, percebendo os mais baixos salários... Tenho passado por momentos que jamais julguei capaz de suportar. Certa feita, estando desempregado e sem dinheiro, caí de cama com uma febre de quarenta graus. Fiquei inconsciente durante dois dias, e, quando comecei a melhorar, por obra e graça de meu organismo, despertei com o choro de meus filhos. Olhei em volta e tudo estava turvo, até que divisei o rosto de minha mulher, sentada na cama a me fitar com lágrimas nos olhos. Aos poucos fui recobrando a consciência, e perguntei o que se havia passado. Respondeu-me que eu dormia com febre havia dois dias, e então me apavorei. Como meus filhos não parassem de chorar, perguntei a razão daquilo, e minha mulher, baixando a cabeça, respondeu: 

“É fome, Antônio... Estão chorando de fome...”

Uma crise de choro me ficou entalada na garganta e eu disse baixinho para mim mesmo: 

“Está certo... Chorar de fome! E logo meus filhos...”

Levantei-me cambaleante e, embora minha mulher não me quisesse deixar sair, fui até à padaria e pedi pão ao padeiro, pois meus filhos queriam comer. Eu devia estar pavoroso, pois não esmolei, não supliquei, e o dono da padaria era homem de maus bofes, mas olhou-me meio desconfiado e deu-me um quilo de pão. E, mais, ofereceu-se delicadamente para que, se eu necessitasse de mais alguma coisa, não tivesse receio de pedir... Repito: eu devia estar medonho, devia parecer o homem mais perigoso do mundo, com meus filhos chorando de fome e eu pedindo pão fiado... Essa foi uma das maiores humilhações que já passei na minha vida.

Volta Seca

A DESGRAÇA DO ANALFABETISMO

DE quando em vez encontro uma alma caridosa que se compadece de minha miséria, mas é sempre difícil arranjar alguma coisa para mim. Embora eu seja um homem honesto, não sei ler, e isso tem sido a minha maior desgraça. Sei fazer tanta coisa, menos ler... E dizer que perdi vinte anos de vida numa cadeia sem que ninguém se interessasse em me alfabetizar! Bastava que me ameaçassem de que eu não sairia de lá sem saber ler, e eu me teria esforçado bastante. Mas não existe grande interesse nas prisões pela alfabetização dos presidiários, e, assim, o máximo que faço até hoje é assinar muito lentamente o nome. E não digam os leitores que ainda há tempo, pois o que me sobra do trabalho é um cansaço terrível. Depois, papagaio velho não aprende mais a falar...

Filho meu, porém, não passará por essa desgraça de não saber ler, nem que eu tenha que sofrer o dobro do que já sofri...

TRABALHO SERVIL

QUEM vê meu retrato quando eu andava no cangaço e me vê atualmente, bem pode avaliar o que tenho passado. Dos empregos que tenho ocupado, com exceção do último, no qual me encontro (na Estrada de Ferro Leopoldina), todos os demais foram com salários abaixo da tabela mínima. E isso sem comida ou qualquer outra vantagem. Cheguei a trabalhar ganhando dois mil cruzeiros mensais, sendo o salário-mínimo de três mil e oitocentos. Além do trabalho, sempre ia fazendo nas horas de folga minhas figas de chifre e vendendo-as a preço vil. Como moro longe, muitas vezes só ia em casa uma ou dias vezes por semana, pois só quem sabe o que é a condução de trem para Santa Cruz pode avaliar o que eu até hoje passo para regressar ao lar...

Volta Seca

UM SONHO: SER GUARDA-FREIO

TODAVIA, a tentação para o que não presta sempre tem aparecido. Não me faltaram as repostas para participar de ações desonestas, o que eu sempre repeti com energia. Nunca aceitei nada que minha consciência condenasse, nem mesmo as inúmeras propostas a que me referi para ser capanga de gente importante. Preciso trabalhar e ganhar dinheiro, mas tem que ser em coisa honesta. E, depois, só há uma forma de provar que, conscientemente, eu jamais seria cangaceiro: é proceder honestamente.

No emprego em que estou, vou indo bem, sendo meu maior desejo, no momento, ser guarda-freio. Não é muito, é o sonho de tanta gente vai tão longe, que, creio, querer ser um simples guarda-freio não é querer ser muito.

CANTOR E COMPOSITOR

ALÉM disso tudo, aqui no Rio adquiri uma nova profissão: sou compositor de músicas populares. Sempre gostei de música e já disse como o bando em peso gostava de cantar. Desde menino eu tinha a mania de pôr em música o que se passava comigo, e não tinha dificuldade em fazer versos.

Certa feita, o diretor artístico de uma fábrica de discos pediu-me que eu gravasse algumas músicas que o bando cantava. A ideia seduziu-me e eu cantei várias, das quais foram escolhidas oito. Fizeram um long-playing e a gravação foi narrada pelo Dr. Paulo Roberto. Antes do canto por um ótimo coro, eu cantava sem acompanhamento, e na gravação evitaram-se ao máximo arranjos modernos, razão pela qual tudo ali é autêntico, tudo é puro. Tenho ouvido muitos elogios à gravação, e é pena que o dinheiro proveniente dos discos não equivalha aos elogios... Enfim, como já me explicaram que o compositor é o que menos ganha na fabulosa indústria do disco, já vi que me espera um triste futuro. Nada mais justo para quem sempre viveu na miséria do que ingressar numa classe que faz da miséria a sua inspiração...

VÍTIMA DO DESTINO

ASSIM é que espero chegar aos meus últimos dias como guarda-freio, fazendo figas e músicas nordestinas. Conforme disse o Dr. Paulo Roberto na gravação, “aos poucos vou pagando a minha dívida com Deus”. Espero que reste muito pouco para saldá-la.

Com a presente narrativa, eu queria tirar um pouco da lenda e das mentiras que existem em torno de mim. Não sou tão ruim como me pintam, e frequentemente encontro gente pior do que eu, pelo menos fazendo coisas que nem no tempo do cangaço eu teria coragem de fazer. Se consegui atingir meu objetivo, sinto-me feliz, e só faço questão que todos compreendam de que fui vitima do destino: nasci numa localidade brasileira onde a miséria fez das suas com os homens.

Não estamos livres de ver casos como o meu se repetirem. Há muito Volta-Seca pelo Nordeste, meninos com onze anos de idade, longe da família, sem saberem ler e prontos para ingressar no crime. Pois se aqui mesmo, nas favelas cariocas, tenho visto coisas horrorosas, o que se dizer dos que vivem nas regiões assoladas pelas secas, onde um sargento de polícia tem autoridade para se apossar à bala das terras dos outros?... E se esta narrativa não trouxer para mim lucro algum, que fique como modesta contribuição para uma das piores fases porque o Nordeste já passou, o reinado do cangaço de Virgulino Ferreira, o famigerado Lampião.

FIM
Imagens do cangaceiro Volta-Seca, que ilustraram a presente matéria.

Fonte: facebook
Página: Antônio Corrêa Sobrinho

http://blogdomendesemendes.blogspot.com


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