Seguidores

domingo, 30 de agosto de 2015

VEJAM COMO FOI A PRIMEIRA VISITA DE LAMPIÃO A POÇO REDONDO, POVOADO DE PORTO DA FOLHA-SE. - Parte 02


Diante de tão boa notícia, o rosto austero do Capitão Virgulino se alargou:

– Mais qui dia de sorte é esse, seu China! Fais tempo qui eu nun vejo um pade! E cadê ele?

– Tá durmino...

– Durmino ainda a estas hora? Apois vamo acordá ele, seu China!

China e sua mulher trocaram um olhar apreensivo. O padre Artur era notório pelo seu gênio forte, de homem destemido, acostumado a dar ordens e ser obedecido pelos matutos daquelas brenhas. Era capaz de querer dar um esbregue também no Capitão.

– Marieta – disse China, tentando desviar o assunto –, vá prepará um armoço reforçado pros nossos amigo.

Lampião deixou que a mulher fosse se desincumbir daquela providência, pois a lembrança do almoço era uma boa ideia, mas não esqueceu o assunto:

– Seu China, vamo acordá o pade. Daqui a pouco nóis vai simbora, e eu priciso sabê qui hora vai sê as reza.

Não tendo outra saída, China foi até o aposento onde o vigário estava dormindo. Lampião seguiu atrás. E foi o próprio cangaceiro quem chamou, com voz firme, mas respeitosa:

– Seu pade? Ô seu pade? Acorde, home, se alevante, tá na hora do café!...

Supondo que era China quem chamava, o vigário, que já estava acordado, respondeu, pachorrento:

– Já vou, China, já vou. Me desculpe. Eu estava muito cansado da viagem. Já estou velho. Não aguento mais andar a cavalo. Mas dormi bem, graças a Deus.

– Quem tá falano aqui nun é China não, seu vigaro – explicou o cangaceiro. – Aqui quem fala é o Capitão Virgulino Ferreira da Silva, vurgo Lampião!

O padre Artur, lá de dentro, acabando de vestir-se, admoestou:

– Que brincadeira é essa, China? Como é que você fala no nome daquele malfeitor, se comparando com um criminoso tão miserável?

Lampião não ligou para o insulto e continuou o diálogo:

– Nun se apuquente não, seu vigaro, mais quem tá falano é Lampião mermo, im carne e osso...

O padre Artur Passos nem respondeu, abriu a porta, já aborrecido com aquela brincadeira estranha do seu anfitrião, que nunca tinha sido de muitas intimidades, e, quando levantou os olhos, deu de cara com um homem de altura mediana, queimado de sol, usando um chapéu de couro cheio de espelhos, calçado de alpercatas de sola, com uma calça meio curta, mostrando as canelas longas e finas. Ao lado dele estava China, embasbacado, encolhido, e atrás dele dona Marieta, que segurava o braço do marido, como se nele pudesse encontrar alguma proteção. Foi ela quem quebrou o silêncio, explicando, como se fizesse as apresentações:

– Pade Artu, este home chegou aqui agora mermo, dizeno qui é Lampião, mais garante qui é de pais e nun vai matratá ninguém...

– De paz o quê, dona Marieta?! – respondeu o padre Artur, cônscio do que estava acontecendo, pois já tinha ouvido falar que Lampião havia fugido de Pernambuco –. A senhora já viu criminoso de paz? Seja ou não seja Lampião, um miserável deste está querendo é desgraçar com todo mundo!

Virgulino explicou, sem perder a calma:

– Seu vigaro, a muié de seu China falou certo. Eu tou pur aqui de passage, sou de pais, nun vou fazê má a ninguém, nun tenho inimigo aqui, e nun vou matratá quem nun é meu inimigo. O sinhô vai rezá missa?

– Por que você quer saber se eu vou ou não rezar missa? – perguntou o padre. – Isso é de sua conta?

– É qui se fô tê missa eu quiria assisti.

– Você endoideceu, foi? – exasperou-se o sacerdote. – Pois fique sabendo que um bandido como você, que vive matando e roubando cristãos, não assiste à minha missa de jeito nenhum!

– Pade, eu já diche...

– Mas eu também já disse, seu bandido atrevido e insolente, que não permito! Na missa quem manda sou eu! Na casa de Deus, cangaceiro não entra não!

Virgulino cedeu:

– Tá bom, seu pade, tá bom. Eu nun vou assisti a missa, já qui o sinhô nun qué.

Vieram nesse instante avisar que o café estava pronto. China convidou todos para comer, sem saber como se sairia agora.

O precavido Lampião cuidou das providências de praxe:

– Seu China, aqui tem delegacia?

– Tem não, seu Capitão – respondeu China.

O cangaceiro pensou um pouco. Falou de seus receios:

– Ói, vai tê festa hoje. Se o povo subé qui eu tou aqui, adeus festa, corre todo mundo, nun sei pur quê... Vou tê qui prendê esses dois cabra – referia-se a João Cirilo e Miquéias –, se não eles vão saí pur aí falano bestera...

China resolveu o problema: João Cirilo e Miquéias estavam convidados para comer também.

– Nun quero cumê não, seu China – disse João Cirilo –, eu tou sem apitite...

– Deixe de sê besta, home – interveio o Capitão –, você vai cumê, sim! Nun tá veno seu China cunvidá não?

Providencialmente, tudo deu certo: o velho padre, sem nenhuma objeção, sentou-se à mesa junto com os cangaceiros – o Padre Artur, Ministro de Deus, numa cabeceira, e o Capitão Virgulino, o Rei do Cangaço, na outra cabeceira.

O clima inicial de confronto havia-se dissipado. Os cangaceiros comeram calados. O padre, também.

Terminada a refeição – cuscuz com leite, macaxeira e carne de bode assada –, o padre Artur falou, como se estivesse dando continuidade a um diálogo silencioso:

– Virgulino, ouça bem o que eu vou lhe dizer. Como sacerdote, eu sou responsável pelo povo desta freguesia. Não vou permitir que você maltrate esta pobre gente. Escute isto: se algum dia você tiver coragem de judiar alguém por aqui, eu mesmo reúno gente e vou arrancar a sua cabeça, onde você estiver.

– Nun se avexe não, seu vigaro – respondeu o Capitão. – Tudo o qui eu quero é sussego. O povo daqui nun tem pur que tê medo deu. O meu poblema é cum os macaco. Sordados. Eles mataro meu pai im Alagoas. Mĩa mãe morreu de disgosto, tudo pur causa dos macaco e das oturidade, qui só considera cumo gente quem é rico. Quano mataro meu pai, eu cheguei a dizê qui se pudesse tocava fogo im Alagoas. Despois mataro meu irmão do meio, Livino, qui nóis chamava Vassoura. E despois mataro meu irmão mais véio, Antonho, qui eu chamava Isperança. Agora dos home só resta treis: eu, João e Zequié, aquele cabra ali – e apontou o dedo para Ezequiel. – João nun é cangacero, veve im Propiá, as veis passa uns tempo im Juazero do Meu Padim ou no Piauí, purque a nossa famia é munto grande, tem gente ispaiada no mundo todo. Eu e Zequié tamo cumprino a nossa sina. Aquele ali tamém é da famia – apontou para Virgínio.– O apilido dele é Muderno. Era casado cum mĩa irmã, chamada Angerca, qui morreu de ũa febre braba. O sinhô me chamou de bandido insulente. Mais eu digo uma coisa, seu pade. Eu nun sou ladrão. Quano eu quero ũa coisa, eu peço. Se ũa pessoa me ajuda, vira meu amigo. Se peço dimais e o sujeito me mostra qui num pude dá o qui eu quero, então eu abaxo o valô. Agora, tem ũa coisa qui eu nun perdoo: é traição! Se o cabra qué sê meu inimigo, seja! Se nun qué, nun seja! Eu respeito o home qui tem corage! Mais nun me atraiçoe! Eu nun tulero safadeza, o cabra se fazê de meu amigo na mĩa presença, mais nas mĩas costa se cunluiá cum os macaco, purque aí eu viro ũa fera, e se eu pudé pegar o fio da peste!...

– Olhe as palavras, Virgulino. Basta. Já andei lendo sobre você, conheço as suas justificativas, sei da morte do seu pai, enfim, toda essa situação. O problema é como você quer resolver as coisas. Pra tudo neste mundo tem um jeito, homem de Deus. Você não pode querer impor sua vingança diante do mundo todo, pois desse jeito a coisa não vai acabar nunca...

– Só mexo cum quem mexe cum eu.

CONTINUAREMOS AMANHÃ...

Fonte: facebook

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário