Diante de tão
boa notícia, o rosto austero do Capitão Virgulino se alargou:
– Mais qui dia
de sorte é esse, seu China! Fais tempo qui eu nun vejo um pade! E cadê
ele?
– Tá
durmino...
– Durmino
ainda a estas hora? Apois vamo acordá ele, seu China!
China e sua
mulher trocaram um olhar apreensivo. O padre Artur era notório pelo seu gênio
forte, de homem destemido, acostumado a dar ordens e ser obedecido pelos
matutos daquelas brenhas. Era capaz de querer dar um esbregue também no
Capitão.
– Marieta – disse
China, tentando desviar o assunto –, vá prepará um armoço reforçado pros nossos
amigo.
Lampião deixou
que a mulher fosse se desincumbir daquela providência, pois a lembrança do
almoço era uma boa ideia, mas não esqueceu o assunto:
– Seu China,
vamo acordá o pade. Daqui a pouco nóis vai simbora, e eu priciso sabê qui hora
vai sê as reza.
Não tendo
outra saída, China foi até o aposento onde o vigário estava dormindo. Lampião
seguiu atrás. E foi o próprio cangaceiro quem chamou, com voz firme, mas respeitosa:
– Seu pade? Ô
seu pade? Acorde, home, se alevante, tá na hora do café!...
Supondo que
era China quem chamava, o vigário, que já estava acordado, respondeu,
pachorrento:
– Já vou,
China, já vou. Me desculpe. Eu estava muito cansado da viagem. Já estou velho.
Não aguento mais andar a cavalo. Mas dormi bem, graças a Deus.
– Quem tá
falano aqui nun é China não, seu vigaro – explicou o cangaceiro. – Aqui quem
fala é o Capitão Virgulino Ferreira da Silva, vurgo Lampião!
O padre Artur,
lá de dentro, acabando de vestir-se, admoestou:
– Que
brincadeira é essa, China? Como é que você fala no nome daquele malfeitor, se
comparando com um criminoso tão miserável?
Lampião não
ligou para o insulto e continuou o diálogo:
– Nun se
apuquente não, seu vigaro, mais quem tá falano é Lampião mermo, im carne e
osso...
O padre Artur
Passos nem respondeu, abriu a porta, já aborrecido com aquela brincadeira
estranha do seu anfitrião, que nunca tinha sido de muitas intimidades, e,
quando levantou os olhos, deu de cara com um homem de altura mediana, queimado
de sol, usando um chapéu de couro cheio de espelhos, calçado de alpercatas de
sola, com uma calça meio curta, mostrando as canelas longas e finas. Ao lado
dele estava China, embasbacado, encolhido, e atrás dele dona Marieta, que
segurava o braço do marido, como se nele pudesse encontrar alguma proteção. Foi
ela quem quebrou o silêncio, explicando, como se fizesse as apresentações:
– Pade Artu,
este home chegou aqui agora mermo, dizeno qui é Lampião, mais garante qui é de
pais e nun vai matratá ninguém...
– De paz o
quê, dona Marieta?! – respondeu o padre Artur, cônscio do que estava
acontecendo, pois já tinha ouvido falar que Lampião havia fugido de Pernambuco
–. A senhora já viu criminoso de paz? Seja ou não seja Lampião, um miserável
deste está querendo é desgraçar com todo mundo!
Virgulino
explicou, sem perder a calma:
– Seu vigaro,
a muié de seu China falou certo. Eu tou pur aqui de passage, sou de pais, nun
vou fazê má a ninguém, nun tenho inimigo aqui, e nun vou matratá quem nun é meu
inimigo. O sinhô vai rezá missa?
– Por que você
quer saber se eu vou ou não rezar missa? – perguntou o padre. – Isso é de sua
conta?
– É qui se fô
tê missa eu quiria assisti.
– Você
endoideceu, foi? – exasperou-se o sacerdote. – Pois fique sabendo que um
bandido como você, que vive matando e roubando cristãos, não assiste à minha
missa de jeito nenhum!
– Pade, eu já
diche...
– Mas eu
também já disse, seu bandido atrevido e insolente, que não permito! Na missa
quem manda sou eu! Na casa de Deus, cangaceiro não entra não!
Virgulino
cedeu:
– Tá bom, seu
pade, tá bom. Eu nun vou assisti a missa, já qui o sinhô nun qué.
Vieram nesse
instante avisar que o café estava pronto. China convidou todos para comer, sem
saber como se sairia agora.
O precavido
Lampião cuidou das providências de praxe:
– Seu China,
aqui tem delegacia?
– Tem não, seu
Capitão – respondeu China.
O cangaceiro
pensou um pouco. Falou de seus receios:
– Ói, vai tê
festa hoje. Se o povo subé qui eu tou aqui, adeus festa, corre todo mundo, nun
sei pur quê... Vou tê qui prendê esses dois cabra – referia-se a João Cirilo e
Miquéias –, se não eles vão saí pur aí falano bestera...
China resolveu
o problema: João Cirilo e Miquéias estavam convidados para comer também.
– Nun quero
cumê não, seu China – disse João Cirilo –, eu tou sem apitite...
– Deixe de sê
besta, home – interveio o Capitão –, você vai cumê, sim! Nun tá veno seu China
cunvidá não?
Providencialmente,
tudo deu certo: o velho padre, sem nenhuma objeção, sentou-se à mesa junto com
os cangaceiros – o Padre Artur, Ministro de Deus, numa cabeceira, e o Capitão
Virgulino, o Rei do Cangaço, na outra cabeceira.
O clima
inicial de confronto havia-se dissipado. Os cangaceiros comeram calados. O
padre, também.
Terminada a
refeição – cuscuz com leite, macaxeira e carne de bode assada –, o padre Artur
falou, como se estivesse dando continuidade a um diálogo silencioso:
– Virgulino,
ouça bem o que eu vou lhe dizer. Como sacerdote, eu sou responsável pelo povo
desta freguesia. Não vou permitir que você maltrate esta pobre gente. Escute
isto: se algum dia você tiver coragem de judiar alguém por aqui, eu mesmo reúno
gente e vou arrancar a sua cabeça, onde você estiver.
– Nun se avexe
não, seu vigaro – respondeu o Capitão. – Tudo o qui eu quero é sussego. O povo
daqui nun tem pur que tê medo deu. O meu poblema é cum os macaco. Sordados.
Eles mataro meu pai im Alagoas. Mĩa mãe morreu de disgosto, tudo pur causa dos
macaco e das oturidade, qui só considera cumo gente quem é rico. Quano mataro
meu pai, eu cheguei a dizê qui se pudesse tocava fogo im Alagoas. Despois
mataro meu irmão do meio, Livino, qui nóis chamava Vassoura. E despois mataro
meu irmão mais véio, Antonho, qui eu chamava Isperança. Agora dos home só resta
treis: eu, João e Zequié, aquele cabra ali – e apontou o dedo para Ezequiel. –
João nun é cangacero, veve im Propiá, as veis passa uns tempo im Juazero do Meu
Padim ou no Piauí, purque a nossa famia é munto grande, tem gente ispaiada no
mundo todo. Eu e Zequié tamo cumprino a nossa sina. Aquele ali tamém é da famia
– apontou para Virgínio.– O apilido dele é Muderno. Era casado cum mĩa irmã,
chamada Angerca, qui morreu de ũa febre braba. O sinhô me chamou de bandido
insulente. Mais eu digo uma coisa, seu pade. Eu nun sou ladrão. Quano eu quero
ũa coisa, eu peço. Se ũa pessoa me ajuda, vira meu amigo. Se peço dimais e o
sujeito me mostra qui num pude dá o qui eu quero, então eu abaxo o valô. Agora,
tem ũa coisa qui eu nun perdoo: é traição! Se o cabra qué sê meu inimigo, seja!
Se nun qué, nun seja! Eu respeito o home qui tem corage! Mais nun me atraiçoe!
Eu nun tulero safadeza, o cabra se fazê de meu amigo na mĩa presença, mais nas
mĩas costa se cunluiá cum os macaco, purque aí eu viro ũa fera, e se eu pudé
pegar o fio da peste!...
– Olhe as
palavras, Virgulino. Basta. Já andei lendo sobre você, conheço as suas
justificativas, sei da morte do seu pai, enfim, toda essa situação. O problema
é como você quer resolver as coisas. Pra tudo neste mundo tem um jeito, homem
de Deus. Você não pode querer impor sua vingança diante do mundo todo, pois
desse jeito a coisa não vai acabar nunca...
– Só mexo cum
quem mexe cum eu.
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