Artigo de João Suassuna
Saga da
Transposição do Rio São Francisco - Artigo 77 - 10/06/2009
[EcoDebate] Fazemos parte de um movimento social em defesa
do rio São Francisco e contra a transposição, projeto este que, infelizmente,
já se encontra em fase de implantação pelo governo federal e cujos impactos no
bioma da Caatinga são danosos e bastante conhecidos por todos que habitam a
região.
Muitos
ambientalistas que têm acompanhado o nosso trabalho o têm comparado à saga dos
seguidores de Antônio Conselheiro na defesa do Arraial de Canudos – ocorrida no
sertão baiano, no final do século XIX, entre o Exército da República e um
movimento popular de fundo sócio-religioso – confronto cujos resultados ficaram
marcados na história pela insistência e devoção do povo sertanejo na defesa de
uma causa, a qual julgavam justa.
Guardadas as
devidas proporções com o que ocorreu em Canudos, o nosso trabalho tem sido
marcado na realidade pela defesa incessante da vida do Velho Chico, embora
entendamos ser uma luta desigual, tendo em vista a interrupção do diálogo,
pelas autoridades, acerca das questões técnicas inerentes ao projeto, dando a
entender que a disputa, doravante, é por recursos financeiros, conforme bem
definido pelo secretário de recursos hídricos de Pernambuco, em
evento realizado no Recife, em novembro de 2007.
Não é para
menos, pois há uma estimativa de investimentos na região, nos próximos 25 anos,
via esse projeto, da ordem de R$ 20 bilhões. Esse é um volume de recursos
expressivo, o suficiente para eleger um presidente da república e ainda por
cima fazer o seu sucessor. Atualmente, o projeto está sendo implantado a todo
custo, embora com a nossa discordância, pois entendemos que o mesmo é
desnecessário, tendo em vista à existência de água na região semiárida em
volumes suficientes ao atendimento das necessidades de toda sua população,
faltando-lhe, apenas e tão somente, a efetivação de uma política específica
para nortear o uso desse recurso de forma a mais racional possível.
As autoridades
insistem em afirmar que o percentual volumétrico a ser retirado do rio é muito
pequeno (cerca de 1,4%) se comparado com a sua vazão média (cerca de 2.800
m³/s). Entretanto, entendemos que elas estão equivocadas ao tratarem essa
questão sob esse prisma, tendo em vista não levarem em consideração o volume
alocável existente no rio (cerca de 360 m³/s) e a parte que já foi outorgada (cerca
de 335 m³/s), resultando desse balanço um volume de apenas 25 m³/s, conforme
comentado por nós em artigo da Carta Maior, em 2004. Além do mais, se levarmos em
consideração o volume médio de 65 m³/s e o volume máximo de até 127 m³/s
demandados pelo projeto, estes significam 25% e 47% do volume alocável do rio,
respectivamente, portanto percentuais bem mais expressivos do que aquele de
1,4% informado pelas autoridades.
Divergências à
parte, se as autoridades entendem que 1,4 % é um percentual pequeno a ser
retirado do rio para ser levado até o nordeste setentrional, entendemos que
esse volume transposto também é insignificante para ser somado ao potencial hídrico
existente no Nordeste (cerca de 1% para serem somados a um potencial de cerca
de 37 bilhões de m³).
Chegamos a
essa conclusão em artigo publicado no Repórter
Brasil em 2006, após análise realizada conjuntamente com Apolo Lisboa,
coordenador do projeto Manuelzão (MG).
Em se tratando
da existência de água na região, em fevereiro de 2004, por exemplo, editamos um
artigo na internet intitulado “As armadilhas do clima”, no qual, entre outros assuntos,
fizemos alusão às crenças populares de que o cantar do pássaro Carão – ave de
hábitos aquáticos do sertão nordestino – é indicativo de invernadas rigorosas
na região, sendo a intensidade de seu canto proporcional ao volume de água
caído durante as chuvas.
Ocorre que no
ano de 2009 o Carão voltou a dar seus piados, e um novo cataclismo abateu-se
sobre o Nordeste, trazendo conseqüências desastrosas iguais àquelas ocorridas
em 2004, com o rompimento de barragens, destruição de lavouras e estradas e,
como se isso não bastasse, com a morte de muitos nordestinos. A presença da ave
voltou a ser indesejada na região.
Chuvas
torrenciais no Semiárido nordestino, no período de suas águas, sempre fizeram
parte do nosso discurso e, inclusive, são dadas como certas em períodos subsequentes. O que não se sabe ao certo é a intensidade e distribuição – no
espaço e no tempo – de sua ocorrência. Sempre afirmamos em nossos estudos que a
região, mesmo com características climáticas de semiaridez, apresenta-se como
uma das mais habitadas e chuvosas do planeta. E o resultado disso é essa
situação que a população brasileira está acompanhando pelos noticiários televisivos
e que tem assustado a todos. O Semiárido voltou a submergir.
Para
exemplificar a gravidade desse quadro, a maior represa nordestina – o Castanhão
– com 6,7 bilhões de m³ de capacidade, voltou a ter suas comportas abertas,
para que fossem drenados os volumes acumulados em excesso, pelas fortes chuvas
caídas em todo o estado do Ceará. Essa represa sozinha tem capacidade para
abastecer, e com certa folga, toda a população cearense, estimada em cerca de
7,4 milhões de pessoas, nos próximos 15 anos. A exemplo do Castanhão, outras
represas de grande porte, como a de Boa Esperança, no rio Parnaíba (PI), e
várias outras espalhadas pelo Nordeste vieram a ter suas comportas igualmente
abertas, para se evitar os acúmulos volumétricos preocupantes nos períodos invernosos
mais severos, os quais poderiam ser causadores de rompimentos, conforme se
verificou na represa do açude Algodões I, no estado do Piauí, onde as chuvas
nas cabeceiras do rio que foi por ela represado ocorreram em intensidade
inimaginável, conforme relatos de especialistas no assunto. São as forças da
natureza cuja ação não se tem como evitar. A abertura de todas as comportas de
uma represa dessas dimensões, ou mesmo o seu rompimento, habitualmente trazem
conseqüências desastrosas a jusante, com alagamentos de cidades e lavouras,
prejuízos na economia regional e, em muitos casos, mortes de pessoas.
Diante de tudo
isso, o que nos tem preocupado sobremaneira é a incapacidade das autoridades,
que não dispõem, ainda, de um plano alternativo emergencial capaz de reter
esses volumes escoados em excesso, os quais são destinados, invariavelmente, ao
mar. Em se tratando do estrago que as águas fazem nesse percurso até alcançar o
mar é de difícil prognóstico, ficando este, na nossa percepção, na dependência direta
dos mistérios e das forças da natureza, com possibilidades de serem agravados,
evidentemente, pela intensidade do canto do Carão.
Ainda sobre a
questão da ausência de políticas de gerenciamento hídrico em si, podemos
relatar um fato que ocorreu em 2007, ano no qual foram registradas chuvas acima
da média em toda a bacia do rio São Francisco, o que veio a resultar no
vertimento da represa de Sobradinho no mês de abril daquele ano. Com o sistema
elétrico brasileiro interligado, e havendo carências de chuvas nas bacias das
principais hidrelétricas do sul do país naquele período, a Chesf passou a gerar
energia no complexo de Paulo Afonso, em quantidades suficientes para atender as
demandas nordestinas e enviar o excedente de energia para suprir as deficiências
da região sul do país.
O que resultou
dessa operação foi uma rápida diminuição volumétrica da represa de Sobradinho,
oito meses após o seu vertimento (sangria), chegando a atingir cerca de 15% de
seu volume útil, ou seja, as autoridades conseguiram exaurir uma represa do
porte de Sobradinho (ela tem uma capacidade de 34 bilhões de m³, equivalente a
cerca de 13 baias da Guanabara), no processo de geração de energia, em apenas
240 dias de operação. Com esse nível crítico em Sobradinho, as conseqüências no
dia-a-dia daqueles que dependem do rio São Francisco para sobreviver são
imediatas e preocupantes. Normalmente o pescado desaparece e o pescador passa
necessidades. O mais grave de tudo isso é que o fato voltou a se repetir em
2008, prova inequívoca da falta de controle no gerenciamento desses recursos.
Sobre a recuperação volumétrica de Sobradinho, tivemos oportunidade de relatar
essa questão em artigo editado
em maio de 2008, mostrando a preocupação da Chesf em liberar, da represa,
volumes menores (defluentes) do que aqueles que chegavam nesta (volumes
afluentes).
No Nordeste, a
falta de gestão no setor hídrico, não ocorre, apenas, com as águas dos rios,
mas, também, com as águas das represas. Esse fato denunciamos em outro artigo no portal ECODEBATE, em fevereiro de
2009, no qual enaltecemos o trabalho de Hypérides Macedo, ex-secretário de
recursos hídricos do estado do Ceará, técnico que conseguiu estabelecer um
programa de interligação de bacias cearenses e, com isso, resolver, em
definitivo, os problemas de abastecimento das populações da zona rural do
estado.
Recentemente,
com o inverno rigoroso que se abateu sobre o Ceará, nos preocupou sobremaneira
depoimento de Macedo sobre os volumes atuais no Castanhão, segundo o qual “o Ceará está
em risco por conta da grande quantidade de água acumulada, ressaltando
que, caso houvesse a previsão de que os volumes de chuvas seriam tão violentos
em 2009, as comportas do açude deveriam ter sido abertas com mais antecedência.
Segundo ele, adotou-se uma gestão conservadora”. Através de seu relato é fácil
concluir que as autoridades cearenses – o Ceará é o estado nordestino portador
do maior volume de água em superfície – não estão sabendo gerenciar o potencial
hídrico existente no estado.
Anteriormente,
comentava-se que o Semiárido não tinha segurança hídrica suficiente para o
atendimento das necessidades de sua população. Agora a população corre o risco
de morrer afogada.
Ora, diante
desse quadro de excessos hídricos, ficamos a questionar a necessidade de se
implantar um projeto de transposição numa região que, freqüentemente, apresenta
esse tipo de ocorrência em seu ambiente natural. Na nossa ótica, é o fazer por
fazer, é a obra pela obra. Caso o projeto já estivesse operando, qual seria o
destino da água? Se nossas autoridades sequer estão sabendo gerir as águas que
existem na região, muito menos saberão gerenciar o projeto da Transposição.
Foi exatamente
levando em conta a existência dessas questões no semiárido nordestino que
iniciamos nossa luta em defesa do rio São Francisco e contra a transposição. Na
nossa ótica, não há o menor sentido em não se fazer uso das águas que já
existem na região para a solução dos problemas de abastecimento de sua
população e ir-se buscá-las no Velho Chico, distando cerca de 500 km do local
do consumo. Isso é insustentável!
Finalmente,
temo-nos preocupado sobremaneira com o quadro de denúncias ora vivenciado na
área ambiental do nosso país, sobre a repetição de erros de nossas autoridades
em nome de um pretenso desenvolvimento. Essas questões têm que ser enfrentadas
pelo ministro Carlos Minc com rapidez e determinação. Sua excelência precisa
dirigir-se à população para explicar as pretensões de seu ministério diante da
possível realização de um projeto caríssimo que irá levar águas para locais no
Nordeste onde elas já são abundantes e, além do mais, não resolver os problemas
de abastecimento de sua população mais carente.
Enquanto isso
não acontece, concluímos o texto com uma frase de Leonardo Boff citada na
assembléia geral da ONU: “se a crise econômica é preocupante, a crise da não
sustentabilidade da Terra se manifesta, cada dia mais, ameaçadora”.
Recife,
10/06/2009
João Suassuna –
Engº Agrônomo e Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, colaborador e
articulista do EcoDebate.
Não deixem de
acessar o Portal da Rede Marinho Costeira e Hídrica do Brasil, para terem
informações sobre a realidade nordestina.
Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso.
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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