*Rangel Alves
da Costa
No pilão
antigo, ainda hoje fincado no quintal como relíquia imorredoura de gerações que
se foram, toda a representação e memória de um tempo de lutas e sacrifícios,
onde a sobrevivência tantas vezes dependia da batida da mão do pilão sobre a
fundura na madeira.
Aquele talvez
o último dos muitos pilões que sofreram nas entranhas a batida forte do roliço
tronco de madeira de lei. Quando as mãos levantam a madeira e em seguida descem
com força bruta, sem tempo para gemer, então se ouve um grito rouco, seco,
saindo das entranhas do tronco. E gritos que se repetem compassadamente,
segundo o tempo da batida, até a mão-de-pilão ser deitada após o trabalho
feito.
O pilão, nos
tempos idos, estava em tudo e por todo lugar. Não havia tribo sem pilão, não
havia senzala sem pilão, não havia casa-grande sem pilão, não havia cortiço sem
pilão, não havia quintal sem pilão. Para esmagar caroço de milho, tirar a casca
do arroz, tornar em pó o grão do café, esfarelar a folha seca, para moer raízes
e frutos. Mas ele sumiu.
O pilão sumiu,
ou quase sumiu. E só não sumiu de vez por que os mais antigos possuem
verdadeiro amor familiar àquele tronco agora adormecido num canto do quintal.
Quando abrem as portas dos fundos e caminham pelos arredores, basta avistar o
velho pilão e logo começam a recordar o passado e a canção da mão-de-pilão.
Canção esta jamais escrita, jamais cantada com voz melodiosa, apenas ouvida e
guardada na memória pelo som da mão descendo sobre o pilão.
“Tum-tum-tum.
Levanta do chão a mão do pilão, limpa as pontas da mão do pilão. Coloca o grão
dentro do pilão. A mão levanta a mão do pilão. Tum-tum-tum. Dentro da fundura a
maior aflição, com o grão gemendo sob a mão-de-pilão...”.
As velhas
mãos, já tão cansadas de tempo e idade, não têm mais forças sequer para
levantar a mão do pilão. Mas noutros idos, ao amanhecer e entardecer sempre
ecoava a canção do pilão. Precisava transformar o milho em xerém, bater o café
em caroço, tirar a casca do arroz de várzea. Ou assim se fazia ou pouco se
tinha como alimento do dia a dia, para o homem e para o bicho.
“Tum-tum-tum.
Bate que bate o pilão na boca da noite, e bate mais forte senão logo chega o
açoite. Negra mão na mão-de-pilão, pilão escravo de toda aflição. Tum-tum-tum.
Bate que bate o pilão sem mostrar o cansaço, pois o algoz se aproxima tendo a
mão o ferro e o laço...”.
A tecnologia
do pilão é das mais antigas existentes. A necessidade fez com que o homem
primitivo buscasse meios para esfarelar, triturar ou amassar, aquilo que
encontrava como grão, raiz ou folha. Como perdia muito ao simplesmente bater
sobre o grão numa pedra, então achou por bem abrir uma fundura num tronco, de
modo que ao bater e triturar nada se perdesse. Depois separava com peneira o
farelo ou o pó e o problema estava resolvido.
“Tum-tum-tum.
Enquanto sobre e desce a mão-de-pilão, da voz se ouve uma canção. Mas é canto
triste e de lamentação, falando de saudade e de solidão, mareando os olhos e o
coração. Tum-tum-tum, assim bate o pilão, assim também a vida em
recordação...”.
Não há melhor
café que aquele nascido com o grão batido em pilão. Quando o pó desce pela
peneira sobre o pano limpo e depois é levado para a chaleira já com água
fervente, em cima de fogão de lenha, então logo tem início uma verdadeira
magia. Tudo se perfuma, tudo se encanta, pois não há nada mais aromatizado e
saboroso que o café de pilão borbulhando seu negrume precioso.
“Tum-tum-tum.
A memória ainda guarda a batida do pilão, a nostalgia ainda relembra a mão
sobre a mão do pilão, num misto de sofrimento e emoção. Tum-tum-tum, pois assim
batia o pilão. E de saudade somente bate o coração...”.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário