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terça-feira, 15 de novembro de 2016

HUMBERTO DE CAMPOS UM POUCO ESQUECIDO

Por Antonio Corrêa Sobrinho

Em “NOTAS DE UM DIARISTA”, de Humberto de Campos (1886-1934), dos grandes escritores brasileiros, embora esquecido nos últimos tempos, leio já digitando, para, com satisfação, compartilhar com os amigos, o rico estilo, a beleza estética das palavras, a firmeza de pensamentos e os bem elaborados argumentos, próprios do genial escritor maranhense, as três crônicas seguintes, talvez, da vasta produção deste autor, as únicas sobre o cangaceiro Lampião: A última Proeza de Lampião, A Expedição contra Lampião e As Audácias de um Celerado. Textos escritos em 1931, provavelmente.


A ÚLTIMA PROEZA DE LAMPIÃO

Um telegrama da Bahia, publicado ontem no Rio de Janeiro, descreve mais um feito sanguinário do maior e mais terrível facínora que tem imperado nos sertões do Brasil: à frente de 60 apaniguados ferozes e bestiais, Lampião invadiu a vila de Curuçá, estuprou, roubou, depredou, matou, afixou, enfim, em cada rua e em cada casa, o selo fatídico e vermelho que assinala sempre a sua passagem. Quinze homens válidos e pacíficos tombaram sangrados pela sua mão. E o coração de um deles, arrancado pela garganta, foi levado em troféu entre gritos de animação, de entusiasmo e de vitória.

A princípio, ao ler a comunicação de uma destas façanhas, o país se comovia e indignava, reclamando dos poderes públicos o ponto final para o feio poema de sangue e lama. As vozes que se erguiam, foram, porém, caladas nos peitos que as emitiam. E hoje é com indiferença quase criminosa que se tem conhecimento dessas selvajarias do bandoleiro. Parece que os fatos noticiados estão correndo na China, na Armênia, na África ou no Turquestão. Ninguém os comenta. Ninguém protesta. Ninguém se comove.

E Lampião, de pavio aceso, continua desafiando o Brasil.

O governo da República tem, sem dúvida, uma infinidade de problemas a resolver e que reclamam os seus cuidados imediatos. Mas há, no organismo nacional, energias ociosas, forças disponíveis, reservas materiais e morais que podem ser empregadas no combate a essa calamidade sertaneja. Será possível, acaso, que os Estados nordestinos não possam reunir um continente de 200 homens, escolhidos entre os melhores elementos das suas milícias policiais? Os seus governos, que mobilizam sem custo algumas dezenas de soldados quando se trata de hostilizar no sertão um chefete político adversário, não poderão fazer esforço idêntico para destruir um flagelo social cuja sobrevivência é a maior vergonha para o Brasil? A sofreguidão com que se organizam forças para a politicagem dos governos, e a impossibilidade, que se encontra, em mobilizá-las para a defesa do povo e da dignidade nacional, não constituirão um índice triste e amargo da capacidade ou da incapacidade dos homens públicos do nosso tempo?

O cangaço penetrou, parece, já, no rol dos nossos males crônicos e inextirpáveis. Lampião, que há doze anos parecia uma fatalidade imprevista e inadmissível, tornou-se uma calamidade comum, ordinária, como a lepra, como a tuberculose, como as epidemias que, pela persistência e continuidade, se tornaram familiares. Refere o velho historiador paraense Inácio Moura que, no Alto Araguaia, há quarenta anos, o bócio era tão vulgar, e se achava tão generalizado, que as pessoas sem papo eram olhadas, quase, como defeituosas. Os Estados que Lampião percorre já se habituaram, mais ou menos, com ele. E quem nos dirá que dentro de alguns anos, Alagoas, Bahia e Sergipe não venham a olhar com superioridade os Estados do Sul, cujos sertões não se achem assolados por bandoleiros?

Já é tempo, entretanto, de os homens que têm uma pena apelarem para os homens que têm pena apelarem para os homens que têm espada, em lugar de se dirigirem, apenas, àqueles que têm o mando. Há no Exército, e nas milícias dos Estados do Sul, numerosos oficiais briosos e valentes, nascidos nas regiões que Lampião castiga com a sua ferocidade e humilha com a sua depravação. São baianos, alagoanos, sergipanos, pernambucanos, cearenses, rio-grandenses-do-norte. A sua dignidade, a sua bravura, o seu patriotismo, não podem consentir que um celerado degrade a terra em que nasceram. Essas moças que ele estrupa, essas mães que ele macula, essas famílias que ele atira à miséria, esses varões que ele degola, são do mesmo sangue de centenas de oficiais cuja cultura e cujo civismo são, hoje, orgulho civil e patrimônio militar da nação. Está nesses soldados, agora, toda a esperança do Nordeste desolado. Unam-se eles, associem o prestígio e a energia, e peçam forças ao Governo da República e, por intermédio dele, aos Estados, e ponham termo a essa vergonha.

É tempo, já, de extirpar esse cancro.

A lembrança aí fica, para ser aproveitada pelos homens que têm uma espada e um coração. A esses brasileiros do Nordeste que a civilização salvou do punhal de um sicário, cabe a missão de proteger os homens da mesma terra que não tiveram o mesmo destino feliz. Se eles se não condoerem e moverem, a quem pedir, então, no Brasil, esse gesto de misericórdia?

Bato, neste momento, pela primeira vez, com a minha mão de paisano, à porta dos quartéis. E tenho quase a certeza de que meus olhos não verão em nenhuma delas o dístico da porta do Inferno, o qual ordenava aos que entravam, que deixassem, ali, toda a esperança...

A EXPEDIÇÃO CONTRA LAMPIÃO

Foi anunciada há dias a organização de uma coluna militar, de mil e poucos homens, para dar combate ao bandoleiro Lampião, o famoso sanguinário bandido que domina há doze anos os sertões do nordeste brasileiro. Comandadas pelo capitão Carlos Chevalier, essas forças levam canhões, metralhadoras, aviões, automóveis, o material indispensável, em suma, para uma batalha com tropas regulares. E é assim constituído, armado, municiado, apetrechado, que o pequeno exército vai entrar pelas terras adustas do Brasil nordestino, entre toques de corneta, rufos de tambores e a trepidação bárbara dos motores, na terra e no céu.

Para justificar esse aparato bélico, informa-se que a quadrilha chefiada pelo salteador se compõe de 150 homens. E há nisso, evidentemente, um exagero. O cangaço profissional, para ser exercido com eficiência, prescinde dos grandes grupos, que lhe comprometeriam a finalidade. A sua tática reside na mobilização rápida, na facilidade da dispersão no momento de perigo, e esta não seria possível se os cangaceiros dispusessem de contingentes consideráveis. Antonio Silvino jamais admitiu mais de uma dúzia de “cabras”, e Lampião nunca reuniu mais de 40, e isso mesmo para entrar em Juazeiro, temendo uma surpresa do Padre Cícero. É sabido, mesmo, que o seu processo consiste em reduzir os seus contingentes à medida que é perseguido, de modo a desorientar os perseguidores, eclipsando-se em pleno sertão.

O jovem oficial revolucionário vai prestar, todavia, um relevantíssimo serviço à sua terra, com essa expedição. É possível que estão não corresponda à sua expectativa, pelo modo porque se acha organizada. Ela podia ser menos faustosa, e mais eficiente. A massa de homens que vai comandar, prejudicará, possivelmente, a sua missão, como inutilizou a ação de outras, desde que se caracterizou esse flagelo naquelas regiões. Para combater cangaceiros, faz-se mister mais habilidade individual do que a bravura, e mais perfídia vulpina do que, propriamente, arte militar. Um oficial do Exército brasileiro não pode, porém, manejar as mesmas armas a que se habituou um celerado. De modo que vamos assistir a um duelo entre a artimanha de um bandoleiro e a intrepidez de um verdadeiro soldado ou, mais caracteristicamente, um encontro entre um cavaleiro que maneja o seu florete e um bárbaro que avança contra ele sustentando com as duas mãos a sua formidável tangapema de maçaranduba.

A impunidade de Lampião constitui, sem dúvida, uma vergonha da civilização brasileira, e reclamava, de há muito, a intervenção do Exército, isto é, de forças da União, para acabar com o escândalo de sua sobrevivência. Mas não reclamava, talvez, a honra de uma expedição tão vultosa, como essa que lhe está destinada.

Quem conhece a história do reinado de Luiz XIV no que ela possui de brilhante pitoresco, não ignora, com certeza, o episódio atribuído ao bei de Túnis, por ocasião da expedição de Duquesne. Hostilizada a maior monarquia do século por esse audacioso chefe bárbaro, mandou o Rei-Sol aprestar uma frota poderosa sob o comando do vencedor de Ruyter, a qual, atingindo a costa fronteira, no Mediterrâneo, iniciou o bombardeio do velho porto africano. Ao fim de alguns dias metade da cidade se achava destruída pelo fogo. Sem recursos mais para resistir, o bei pediu paz, e, ao defrontar-se com Duquesne, a primeira pergunta que lhe fez foi esta:

- Quanto gastastes, senhor, nesta expedição, para me incendiardes metade da cidade?

- Quatrocentas mil libras – informou o grande capitão.

- Tudo isso? – estranhou o bárbaro, com a cupidez nos olhos miúdos. 

E penalizado:

- Ah, senhor! Se me tivésseis falado antes, eu, pela metade dessa quantia, teria incendiado a cidade inteira!...

Amando a agitação e o perigo, o capitão Chevalier não aceitaria, sem dúvida, uma proposta de Lampião, no sentido de lhe darem a metade das despesas da expedição mediante o seu desaparecimento do cenário nordestino. O jovem oficial revolucionário é, parece, como aqueles caçadores de Lessing, que caçam a lebre não pelo interesse em apanhá-la, mas pelo prazer de correr atrás dela. O que o seduz é a aventura, e não o resultado feliz. Daí o aspecto um pouco dramático dessa expedição, em que se vão digladiar a arte militar e a esperteza, a intrepidez e a astucia, a teimosia do caçador, que quer apanhar a onça, e a ferocidade da onça, que se não quer entregar.

Eu tenho receio, entretanto, que o excesso de pares comprometa o sucesso da “contradança”, e que ouçamos, daqui do litoral, a “marcação” do celerado sertanejo:

- “Dames à droite!... Chevalier... à gauche!...”

E que, como consequência, a “quadrilha” continue...

AS AUDÁCIAS DE UM CELERADO

Quando, há meses, o capitão Carlos Chevalier iniciou uma série de entrevistas à imprensa noticiando a sua partida para o Nordeste a fim de capturar o celebrado e celebérrimo bandido Lampião, eu tive ocasião de escrever aqui mesmo uma crônica duvidando do êxito da expedição. Acreditava que o jovem oficial partisse; acreditava que viesse a organizar a sua coluna de mil e tantos homens; acreditava que marchasse para o sertão com os seus canhões, com os seus aviões, com os seus tanques e com as suas metralhadoras. Mas duvidava que conseguisse o seu objetivo aprisionando o desabusado bandoleiro. Passam-se os dias, as semanas, os meses. E nem Lampião foi capturado; nem as metralhadoras repinicaram nas caatingas; nem os aviões estrondaram no céu virgem; nem a coluna se pôs em movimento; nem, sequer, o capitão Chevalier partiu do Rio de Janeiro.

Eu estou certo, entretanto, que tudo isso independeu do simpático oficial revolucionário. Não lhe faltavam, evidentemente, para tal empresa, nem bravura, nem disposição, nem temeridade. Mas faltou ao governo dinheiro para organizar e pôr em movimento um aparelho tão dispendioso. Feitos os cálculos no Ministério da Guerra, verificou-se, ao que parece, que, para mobilizar uma coluna militar com tamanho aparato, teria o Tesouro de despender quantia igual, mais ou menos, à que consumiu na guerra com o Paraguai. E como a crise dia a dia mais se agravasse, o governo dissuadiu o moço oficial do seu intento patriótico, deixando que Lampião continuasse por lá a ganhar honradamente a sua vida. 

E o capitão Chevalier, soldado que cumpre ordens, desapertou o cinturão.

O insucesso do plano anunciado no Rio foi, porém, acender o olho que resta ao famigerado salteador nordestino, acirrando-lhe a índole sanguinária. Esporeando os seus cavalos árdegos e os seus instintos selvagens, desenvolveu ele a própria atividade, matando, roubando, incendiando, estuprando. A desistência silenciosa do capitão Chevalier foi, no seu entendimento de primitivo, estrondosa vitória sua. E quando chega a uma estação telegráfica dos altos sertões da Bahia, de Pernambuco ou de Alagoas, o seu primeiro cuidado consiste na transmissão deste telegrama irônico para a sede dos distritos, nas capitais: “Lampião continua esperando o capitão Chevalier”.

Em seguida, sangra o telegrafista, saqueia a localidade, e reenceta, sertão adentro, a sua série de tropelias e a sua vermelha obra de devastação.

Agora, vem de Petrolina, nas margens do S. Francisco, a notícia de que Lampião instituiu em todo o Nordeste flagelado pela seca o voluntariado para composição e desenvolvimento de suas tropas. A diária é de 10$000, com cavalo, mulher e comida. Não dá casa porque o seu quartel é o tempo, e tem por teto o firmamento beliscado de estrelas, e uma cama em cada pedra, e um armador de rede em cada árvore, e um banheiro fresco em cada riacho vadio. E a previsão, em toda a região ameaçada, é que a concorrência será enorme, pois que o bandoleiro está oferecendo ao sertanejo precisamente aquilo que o governo lhe não dá. Em breve terá ele centenas, senão milhares de combatentes destemidos. E isso sem sorteio militar nem passar cuspo em mais um selo para lambuzar a caixa de fósforo.

E agora é que vamos ver com quantas pedras se faz uma coluna. Lampião é insolente, arrogante, audacioso. Formado o seu exército de sertanejos aguerridos, não descansará. Investirá vilas e cidades. Tomará as vidas férreas, movimentará locomotivas e automóveis, e descerá para o litoral.

Quem sabe, mesmo, se não o teremos em breve no Rio, com os seus homens, atrás do nosso Capitão Chevalier?

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