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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

MARIA DAS LÁGRIMAS

*Rangel Alves da Costa

Uns diziam que era por safadeza, outros diziam que a mulher era chuvarada mesmo, mas de qualquer modo nunca se viu nada igual: a mulher chorava tanto, mais tanto mesmo, que enchia até tanque e açude.

Num momento estava seca de secura da terra e estiagem, já no outro ao desabrido chuveiro de mil soluços. Num instante e seu olhar apenas olhar, sem nada além que o molhado dos olhos, mas já no outro com todas as comportas abertas e aquele mundão de água querendo tudo devorar.

Mulher choradeira da gota serena, dizia um. Já outro acrescentava: Deus me livre de estar perto dela quando começar a chorar. E era realmente de admirar e espantar aquela propensão ao choro e a forma de chorar. Ora, não chorava, apenas derrama dos olhos um carro-pipa a cada segundo.

Para se ter uma ideia, a casa dela ficava numa encosta, com o chão pendido de lado e com abertura por quase todo o pé de parede. E assim para que as águas de suas lágrimas escorressem adiante assim que começasse a chuvarada nos olhos. Providência mais que necessária diante do tsunami de repente surgido.

A chuvarada escorria dos olhos e se derramava encosta abaixo, levando em enxurrada tudo o que encontrasse pela frente. Acaso as águas não encontrassem pronta saída, não demorariam muito para encher a casa inteira, subindo pelas paredes até o telhado, deixando submersa a choradeira. E o pior é que a dona do mar aberto não sabia nadar.

Chorava por tudo, a mulher. E chorava em demasia. Viúva, Maria das Lágrimas, como assim era chamada, estava permanentemente proibida de chorar sua viuvez dentro de casa. Não só a viuvez como qualquer choro. Os moradores debaixo da encosta providenciaram abaixo-assinado para impedi-la de despejar quaisquer tipos de lágrimas lá de riba.

Por isso mesmo que só podia recordar do falecido esposo após descer a ladeira e se postar rente a um riachinho que havia por ali. Levando na mão um retrato ou qualquer peça de roupa do defuntado esposo, logo começava a chorar e a derramar água no leito adiante. Não demorava muito e o riachinho já estava em correnteza.

Certa feita, enquanto estava lamuriando sua saudade da vez e pensando nos dotes camísticos de seu falecido, avistou uma cueca samba-canção num varal adiante e logo lhe veio à mente aquele que ele mais gostava de usar para fazer safadeza. Então ela se derramou de vez. E desta feita a cheia do riachinho derrubou mais de dez casas pelos arredores.

Mas não demorou muito e pessoas da comunidade encontraram um meio de proporcionar utilidade àquelas enxurradas de lágrimas. Como a região estava seca demais, com a terra esturricada e os tanques já rachados no barro, então resolveram que Maria das Lágrimas poderia ser a salvação de muita gente e de muito bicho.

Tramaram, maquinaram, resolveram colocar em prática a ação. Cremêncio foi incumbido de despertar paixão naquele viúvo coração. Bateu à porta de Maria das Lágrimas com uma rapadura à mão e olhar adocicado que só. A mulher se encantou na hora. No mesmo instante se apaixonou pelo solteirão. Na mesma hora, ele tacou-lhe um beijo que a viúva quase desmaia.

Um encontro amoroso foi marcado na manhã do dia seguinte, bem ao lado da barragem seca que abastecia a povoação. O safado do Cremêncio já sabia o que fazer para que em pouco tempo a barragem novamente ficasse cheia. Chegou no horário combinado e ela já estava lá por detrás de uma moita, toda afoita e tremelusca, doida pra dar.

O safado logo acenou para que ela se aproximasse da beirada da barragem. Assim que ela quase pula em seus braços, ele recuou e disse que, pensando bem, era melhor que aquilo não acontecesse, pois ela era mulher viúva e respeitada, e por isso mesmo não poderia trair sua honra. E foi se afastando. Ali em pé, sem acreditar no que ouvia, a fogosa se derramou em tamanho pranto que mais parecia mil trovoadas caindo de uma só vez.

Em dois minutos a barragem estava cheia. Daí em diante foi uma fila imensa de homens a encher barragens, tanques e lagoas, com as lágrimas da mulher sempre enganada. Mas um dia ela não chorou. Não chorou por longo tempo a partir desse dia. De tão enganada, acabou ressecando tudo por dentro. Numa tarde, abriu a porta da casa lá no alto onde morava e olhou adiante para aquele mundo de mentiras, falsidades e enganações.

Então chorou toda a mágoa do mundo. E toda a cidade foi destruída e levada pelas enchentes.

Escritor
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