Por Sálvio
Siqueira
Os grupos e
bandos de bandoleiros das caatingas nordestinas tinham por obrigação, para não
serem mortos e/ou presos rapidamente, que terem um local onde pudessem curar as
feridas dos feridos, descansar um pouco e recuperar as energias gastas nas
inúmeras e longas caminhadas empreendidas em suas missões de extorsões, roubos,
mortes e todo tipo de agressividades que dispunham a praticar aos moradores de
pequenos Povoados, Vilas e pequenas cidades nos interiores dos Estados onde se
deu o fenômeno.
Lampião, depois
de ‘migrar’ com alguns de seus homens para as terras do Estado baiano, antes de
começar a ‘agir’ nele, procurou estender, criando, como fizera em outras
paragens, uma rede de colaboradores e informantes a peso de ouro, suor e
sangue. Esse cuidado, ou essa tática, foi o que colaborou para torná-lo o chefe
cangaceiro de maior longevidade no comando, tendo durado seu “sangrento
reinado” quase vinte anos e alcançado sete dos nove Estados da Região Nordeste.
Esses ‘colaborados’ estavam nas diversas camadas sociais. Desde a base, daquele
roceiro, morador de uma casa de taipa até grandes comerciantes, latifundiários,
políticos e militares. Todos tinham seus deveres e obrigações, sendo estas de
muita importância para proteger e manter de provisões o bando, assim como
informar movimentos de tropas e lugares desprotegidos onde poderiam atuar sem
tanta preocupação. Sem temer um confronto direto, o que não seria nada
agradável para eles, pois se corria o risco de perderem vidas, armamento,
comida, roupas e munição, o que era caríssimo, apesar do dinheiro usado para
comprar ser produto do crime.
No Vale do
Pajeú das Flores, nos sertões paraibano, alagoano, sergipano e
norte-rio-grandense, assim como no cariri cearense, o “Rei do Cangaço” tinha a
seu dispor grandes extensões de terras bravias, elevadas e de terreno bastante
pedregoso, tornando-se uma proteção natural, muito difícil de locomover-se, até
mesmo impossível, às vezes, de continuar no seu encalço, na sua perseguição, o
contingente das Forças Publica. Ainda usufruía a ‘proteção’ e colaboração de
diversos ‘coronéis’ nessas e em outras paragens próximas.
Ao mudar-se
para Bahia, Virgolino tinha a obrigação de conseguir, arranjar, lugares como
aqueles para descansar, recuperar e planejar seus novos ataques. Porém, as
terras em que se encontrava não tinham os mesmos acidentes geográficos que
tinha o interior dos outros Estados. No entanto, descobre uma fortaleza natural
em forma de extensão, desértica e com raríssimos lugares onde se encontrava
água e comida, para servir de via de escape para ele e seus homens, o Raso da
Catarina. Entrar naquele ‘deserto’ sem saber onde ficava os raros pontos que
tinham acumulo do líquido raríssimo, significava a morte certa. E corria-se o
risco de morrer de uma maneira dura, cruel e demorada, pela sede. Já
vislumbramos diversas e diversas literaturas sobre o tema, mas em nenhuma
encontramos a data correta nem como o pernambucano chefe cangaceiro sabia
mover-se no interior de tão vasto e perigoso vale. Como isso fora possível?
Será que em sua ida, anteriormente a definitiva em fins de 1928, Lampião,
prevendo uma possível mudança de ares radical, já havia recolhido informações
sobre aquela fortaleza natural? Provavelmente.
No princípio,
as volantes não se atreviam a entrarem naquele vale, mesmo estando bastante
visíveis os sinais por onde os cangaceiros entravam. No interior daquela mata,
desconhecida e desértica, era onde estava o grande inimigo, além, claro,
daquele que estavam a caça-lo, Lampião e seu bando de cangaceiros. Diversos homens
valentes que comandavam suas volantes, não entraram, e quando entravam era um
Deus nos acuda depois de 15 ou vinte dias de caminhada naquele terreno arenoso,
fofo e traiçoeiro, tendo como aconchego o calor calcinante do sol abrasador ou
o frio das noites escuras do Raso da Catarina.
“(...) As
perseguições que lhes eram feitas cessavam às portas do Raso sinistramente
escaldante. Os soldados mais valentes recuavam sempre frente ao deserto imenso.
Assim fora com o tenente Ladislau, ... com o tenente Manoel Neto, Arsênio de
Souza, ... com o capitão Philadelpho Neves, ... com o sargento Luiz Mariano,
assim finalmente (fora) com todos os seus perseguidores, por mais valorosos e
destemidos (que fossem) (...).” (“Lampião – O Cangaceiro”- LIMA, João de Sousa.
1ª Edição. Paulo Afonso, BA, 2015)
Essa ‘peleja’
durou bastante tempo, bandoleiros praticavam seus crimes e eram perseguidos até
a ‘porta’ do Raso da Catarina. Em determinada época, o comandante Manoel Neto
parte para dentro do Raso na perseguição aos cangaceiros. Depois de vários dias
sem terem êxito, parecia estarem perseguindo fantasmas, os homens estão todos
famintos, com muita sede e nus. Suas roupas foram rasgadas pela ponta dos
espinhos que tinham na mata. Para retornarem, fora necessário o comandante ir
enrolado em um lençol até a Delegacia, ou onde focavam arranchados os policiais
da cidade, para que providenciassem vestimentas para os homens que tinham
ficado dentro do mato, todos sem roupas, poderem entrar na povoação.
Todo militar
levava consigo alguns víveres para alimentar-se por alguns dias. Não podiam
levar muita comida e água, devido ter que em, nos bornais, farta munição e o
fuzil nos ombros ou em uma das mãos, chegando ao peso máximo de, mais ou menos,
30 quilos, que um homem podia transportar naquelas condições, portanto, em
torno de cinco para seis dias, mesmo economizando ao máximo, ficavam sem suas
rações, valendo-se do que a caatinga lhes proporcionavam. Assim a coisa
permaneceu até que, como já é rotineiro, a traição contribui para ser mudado.
Colhendo, ou retirando na marra, na força da ponta do punhal ou nas chibatadas
do cipó - de – boi, informações de um coiteiro, ou ex coiteiro, sobre o
interior do vale, o coronel João Félix, auxiliado pelo tenente Manoel Sampaio,
conseguem fazer um levantamento de como era aquela área. A partir daí, com as
informações em mãos, as volantes adentram no deserto vale e conseguem
desentocar as feras humanas que o tinham feito de ‘forte natural’, de abrigo
seguro. O cangaço lampiônico, já bastante chamuscado, começa a ser dilacerado
com a invasão da sua ‘toca’.
“(...) a
campanha que ora se faz vem obedecendo a um plano meditadamente estudado,
friamente estabelecido (...) com a anotação de todas as suas particularidades,
para o que tiveram a colaboração eficaz de um antigo “coiteiro” dos bandidos
(...).” (Ob. Ct.)
Geremoabo,
cidade baiana localizada próximo ao Raso da Catarina, e centralizada no
perímetro onde os bandoleiros faziam a maioria das suas incursões, é feita de
QG das Forças Volantes da Bahia. Sabedores dos movimentos do bando comandado
pelo cangaceiro alagoano Cristino Gomes, o perigosíssimo “Corisco”, para os
lados de uma localidade chamada de bebedouro, o Comandante Geral das Forças
contra o banditismo na Bahia ordena que o tenente Ozório Cordeiro parta com
seus homens em perseguição ao mesmo.
É necessário dizer-se que, quando recebe essa ordem, o tenente Ozório não tinha
em mãos os ‘estudos’ realizados sobre o Raso da Catarina, simplesmente por os
mesmo ainda não terem sido feitos. Pois bem, quando saiam em perseguição, as
volantes não sabiam por onde iriam caminhar nem tão pouco quando seria a sua
volta. Sabiam, com certeza, que poderiam encontrar a morte oculta, escondida,
em qualquer das várias, das inúmeras, moitas ao longo da trilha que teriam que
passar.
Tendo que ter
um ponto de partida, a volante composta pelos Nazarenos busca informações sobre
os cangaceiros em Bebedouro. Antes, porém, são sabedores que eles já haviam
praticados seus crimes em outros lugares. Na tentativa de encurtarem caminho e
toparem com o bando, procuram encurtar caminho tomando outra direção. Quando
estudamos essa parte da história do cangaço, temos a nítida impressão de que as
ações praticadas por determinado grupo de cangaceiros, era para deixarem, de
propósito, uma trilha fácil de seguir. Corisco, nessa investida, até incêndio
ordena que se faça, além dos costumeiros atos de selvageria com as pessoas.
Deixando um rastro de sangue e lágrimas para que os soldados das volantes o
seguissem.
Em determinado
momento dessa fuga e perseguição, Corisco recebe notícias do chefe mor através
de um informante. As ordens do chefe seriam para que ele seguisse em direção ao
Raso da Catarina onde estaria a lhe esperar. A Força nota, através dos estudos
dos sinais deixados, a manobra que o grupo que perseguiam fizera. Apressam-se
com o intuito de não permitirem sua entrada no grande vale deserto, porém, não
foi possível impedir.
Faziam parte
dessa tropa perseguidora, vários homens calejados pela espingarda, em torno de
34 volantes, dentre esses estavam os veteranos nazarenos Euclydes Flor e João
Cavalcante que desde os primeiros anos da década de 1920 vinham a darem combate
a Lampião. Quando a tropa nota que o bando entrou no vale, prosseguiram no
encalço do mesmo, apesar de vários moradores próximos ao início do Raso os
terem aconselhados para retornarem.
“(...) A
entrada do Raso, diversos sertanejos procuraram dissuadi-los da empresa (...)
Mas nada os demoveu. Onde os bandidos entravam, eles não podiam deixar de
entrar (...).” (Ob. Ct.)
Seguros por
acharem que a tropa não os perseguiria dentro do Raso, como das outras vezes,
os cangaceiros pouco se importaram de esconder sua passagem, deixando uma
trilha fácil de ser seguida. Para os cangaceiros, já acostumados com o novo
ambiente, a recolhida quando chegava à noite, já era prevenida e podiam acender
fogo para fazerem alguma comida e os aquecerem. Já os soldados não podiam fazer
fogo para não denunciarem sua presença. Para dormirem, o cobertor eram as
folhas que estavam no chão. Assim, os dias e as noites foram passando e, a cada
instante, o inevitável embate ficava mais real. A certeza do combate ajudava os
soldados a esquecerem do desgaste em seus corpos, da fome de vários dias e a
sede terrível que tanto os maltratava. Eles caminhavam até não poderem mais,
devido à escuridão, porém, levantavam muito cedo para continuarem a
perseguição. Essa atitude fez com que ganhassem terreno, diminuindo a distância
entre eles e o bando. De repente escutam vozes. São os cangaceiros que estão a
se vangloriarem de seus feitos. Dentre o som das vozes, nitidamente os soldados
divisaram as vozes femininas. Tinha mulheres no acampamento.
Das vestes
daqueles bravos guerreiros só restavam tiras de panos. As mesmas foram rasgadas
pelos galhos e espinhos das árvores rasteiras, baixas, predominância do bioma
do Raso. Os homens são divididos e ordenados avançarem com cautela, sem
produzirem ruídos dilatadores. A certa altura, quando a tropa fechava o cerco,
é ordenado que os mesmos colocassem balas na agulha das armas, assim fora
feito. Um jovem e inexperiente soldado, ao manobrar seu mosquetão, não só
coloca a bala na agulha da arma como faz com que ela dispare, acidentalmente,
involuntariamente, retirando assim o ataque surpresa onde teriam sido abatidos
ou presos a maioria dos cangaceiros ali acoitados.
A batalha tem
seu início. O tiroteio é intenso. Gritos, palavrões e desaforos são ditos de
ambas as partes. Em um minuto, ocorrem tantos disparos que o som torna-se
ensurdecedor. Os pássaros da mata se calam e as árvores e cactos são
transpassados por inúmeros projéteis saídos das armas de ambos os lados. O
cheiro, ou odor, de pólvora queimada é levado pela reles brisa, e a fumaça
deixa impossível alguém vislumbrar alguma coisa a poucos metros de distância.
No meio do tiroteio um soldado é atingido e tomba sobre a terra branca e fofa
do Raso. Aproveitando uma pequena trégua involuntária por parte da tropa
atacante, e o fumaceiro servindo de cortina, os cangaceiros dão as costas e
caem fora.
As coisas não
foram nada boas para o lado dos bandoleiros. Além de vários feridos, tiverem de
abandonarem a presa que tinham feito na última ação contra os sertanejos
indefesos, moradores das regiões por onde fizeram seus ataques e as coisas
roubadas e/ou compradas para suas companheiras. Mas, o pior de tudo, fora que
seu esconderijo seguro, sua fortaleza natural acabara-se naquele ataque, o Raso
da Catarina não era mais um mistério para as Forças Volantes.
Fonte “Lampião
– O Cangaceiro”- LIMA, João de Sousa. 1ª Edição. Paulo Afonso, BA, 2015
Foto Ob. Ct.
Benjamin Abrahão
Tokdehistoria.com
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