Por Francisco Airton
Castro Rocha2
Figura 2 Padre
Cícero e o médico Luis Malzone, fundador dos Hospitais São Lucas; foto da
década de 1920-1930, mostra inclinação lateral do pescoço.
Há vários
relatos de que o padre Cícero dormia muito pouco, era surpreendido a cochilar
durante o dia, diante dos interlocutores, e até mesmo na sela de sua montaria.2–5,7,8 Sempre
dormiu em rede, a despeito de ter uma cama em seu quarto.3 Tinha
alimentação frugal, habitualmente jejuava por longos períodos. 1–4,6,8,9 Em
1910, ao pensar ser acometido de problemas renais, observou conselhos do Dr.
Miguel Couto e acreditou que a situação decorria da água do Juazeiro. A partir
de então, passou a beber apenas água de coco ou chá, não voltou a beber água
potável. 3–5,10 Há
descrições de hemoptises nas biografias do padre Cícero, embora nos pareça que
se tratasse de hemoptoicos, já ele com 76 anos.2,3 Mesmo
que não haja relato de sintomas respiratórios outros, considerando que o padre
Cícero teria fumado, certamente cigarro não industrializado, por alguns anos,
ainda antes de chegar ao Juazeiro,4,10 não
se pode deixar de considerar a possibilidade de que ele tenha desenvolvido
algum problema respiratório de vias aéreas inferiores que pudesse ter levado a
episódios de hemoptoicos.
Aparentemente,
é muito claro que o padre Cícero tenha apresentado repetidas infecções nos
membros inferiores, descritas como erisipela, nos seus últimos anos de vida.2,3,7 Um
antraz, na região cervical posterior, já próximo de sua morte, foi motivo de
uma intervenção cirúrgica, bem como uma provável catarata, operada pouco mais
de um mês antes de sua morte, sem sucesso.3
Em uma de suas
biografias, a descrição de seu último quadro3 sugere
o desenvolvimento de obstrução intestinal. Considerando que o padre Cícero já
contava 90 anos, que teria apresentado furúnculos e mesmo erisipela de
repetição, aliados à inexistência de antibioticoterapia e de cuidados adequados
de desinfecção, é bem possível que seu quadro final tenha sido infecção
generalizada, a partir de foco cutâneo, que levou a comprometimento intestinal,
com abdome agudo clínico, como poderia ocorrer na fase inicial de um choque
séptico, agravado por desidratação e consequente déficit de irrigação renal,
com anúria, que, aliás, é relatada, e seguiu-se o óbito.2
Motivado pela
leitura de sua biografia, penso ser plausível propor a hipótese que o padre
Cícero teria sido portador de uma espondiloartropatia crônica inflamatória, até
hoje insuspeitada. A descrição seria de quadro doloroso lombar, que acometeu
também a coluna cervical, em indivíduo do sexo masculino, de cor branca,
iniciado antes dos 50 anos, com anquilose parcial da coluna, particularmente
visível no segmento cervical. Teria havido pelo menos um episódio de artrite
documentada e vários episódios de distúrbios intestinais, que poderiam ser
associados a um componente inflamatório intestinal e fazer parte da hipótese
diagnóstica principal. Na história familiar, há apenas relato de que sua mãe
teve “inflamação nas pálpebras” por vários anos e teria ficado “‘paralítica” em
1897, por volta de sua sexta década de vida.
O diagnóstico
anatômico predominante seria da coluna (segmentos lombar e cervical), com
quadro crônico, de provável natureza inflamatória, uma vez que não há descrição
de que seus sintomas fossem agravados por sua atividade física, que foi
intensa. O “Padim” era incansável, trabalhava até altas horas. Sempre se
deslocou regularmente, mesmo na última década de vida. A sonolência poderia
denunciar sono não reparador e a preferência pela rede é comum em doentes com
espondilite “aqui por essas bandas do Nordeste brasileiro”, embora não haja
fundamentação técnica a apoiar esse hábito. Assim, esses aspectos que sugerem
sono não reparador alimentam a hipótese de que suas dores na coluna, relatadas
em vários livros a seu respeito, tivessem caráter inflamatório. Não há relato
de trauma que pudesse justificar uma fratura cuja consolidação daria causa à
deformidade cervical que desenvolveu. Também é improvável ter-se tratado de
escoliose, que não é causa habitual de dor na coluna, ao contrário do
pensamento comum, e raramente envolve a porção cervical, que é o segmento com
deformidade mais perceptível no padre. Uma foto sua (fig.
3) ainda prestes a concluir os estudos no seminário (cerca de 23 anos) não
mostra a inclinação do pescoço, que deveria existir já a esse tempo caso a
razão fosse escoliose idiopática juvenil estrutural. É improvável tratar-se de
osteoartrite primária, face ao sexo masculino e ter iniciado abaixo de 50 anos.
A julgar pela foto de 1888 (fig.
1), em que o padre já aparece com o pescoço inclinado para a direita, e
pelos relatos de dores e da “escoliose” por volta de seus 50 anos, é
absolutamente plausível que ele tenha apresentado dores por algum tempo, que se
teriam iniciado antes dos 45 anos, como ocorreria nas espondiloartrites.11 Causas
infecciosas piogênicas e artrite reativa são improváveis pela cronologia, bem
como artrite microcristalina, mesmo a de causa hiperuricêmica. Padre Cícero era
magro, tinha dieta frugal, com pouca ingesta de carnes vermelhas, abstinência
alcoólica e havia predominância do envolvimento da coluna. Não seria apelativo,
a despeito da especulação inerente ao presente texto, que a artrite relatada
aos 60 anos decorreria de envolvimento articular periférico de uma
espondiloartrite de predomínio axial. Lues, doença altamente prevalente na
época, pode ser excluída pela condição celibatária do patriarca, que assumiu
esse compromisso ainda adolescente (aos 12 anos, segundo depoimentos), o que
não foi questionado nem por seus mais ácidos críticos.3,4,9 Ademais,
sua marcha não tinha aspecto de tabética, como seria passível de existir em uma
lues terciária que envolvesse a medula espinhal. Etiologia tuberculosa,
hansênica ou fúngica, a despeito dos hemoptoicos, nos parecem causas
improváveis para explicar o quadro da coluna, face ao longo tempo (mais de 40
anos de evolução) e ao aspecto anquilosado que sua rigidez ao caminhar sugere.
Não temos elementos para explicar os episódios de hemoptoicos, mas poderiam
decorrer de sequelas de infecções respiratórias.2,3,9 Osteoporose
primária que leva a fraturas pode ser afastada pelo sexo masculino, boa
atividade física, ingesta frequente de laticínios, exposição intensa e por
muitos anos ao sol, início antes dos 45 anos, além da artrite e quadro
intestinal incompatíveis com osteoporose.
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0482-50042016000500464&script=sci_arttext&tlng=pt
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