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terça-feira, 17 de julho de 2012

AS CRÔNICAS DO CANGAÇO – 18 (AOS OLHOS DA JUSTIÇA – ENTRE A IRA E O DIREITO)

Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

AS CRÔNICAS DO CANGAÇO – 18 (AOS OLHOS DA JUSTIÇA – ENTRE A IRA E O DIREITO)

O cangaço - enquanto fenômeno social originário da insurgência de nordestinos contra os mecanismos de degradação social impostas pelos governantes, coronéis forjados no mando e outros poderosos da região -, sempre foi visto à margem da legalidade. Ora, um contraponto às forças de então não poderia ser visto senão como afronta ao próprio Estado.

Sendo o Judiciário um dos braços estatais para a garantia da ordem, logicamente que este poder, estando absorvido pelo poder maior governamental, assim que pôde julgar as ações praticadas pelos cangaceiros, o fez sempre no sentido de imputar verdadeiras aberrações ao grupo comandado por Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Não significa dizer da santidade do cangaceiro, pelo contrário, mas deixar de observar o contexto em que as ditas maldades eram praticadas.


E há que se ressaltar que a alcunha prevalecia sempre quando o homem era esquecido para vir à tona apenas o criminoso, o bandoleiro, o facínora, o salteador, o malfeitor, o delinquente, o mais perigoso e desumano bandido das caatingas nordestinas. Assim, deixava-se de considerar o homem e seus motivos, a vítima das agressões mandonistas, o caboclo nordestino que havia se cansado de ser submetido à violência e a ter de suportar calado o sangue jorrando dos seus.

Para muitos, onde estava Lampião estava a “besta humana do Nordeste”, o “celerado sanguinário”; a “bestialidade facínora a aterrorizar os rincões nordestinos”, “um ladrão e matador na chefia de um bando de transviados”, “o maior dos bandidos, o sanguinário e covarde matador de inocentes”. Parte dos jornais da época assim se refere ao rei dos cangaceiros. Os mesmos jornais que exaltavam as ações heróicas das forças policiais, enaltecendo-as e chamando-as de bravos heróis das caatingas em luta desenfreada contra os bandoleiros.

Não obstante as destrutivas e avassaladoras campanhas jornalísticas em reportagens e editoriais, o sonho maior dos magistrados das comarcas distantes era lançar mão de processos contra Lampião e assim assegurar um lugarzinho nos anais da história. Daí que não foram poucos os processos judiciais abertos contra o rei cangaceiro e o seu bando, mas que pouco efeito prático surtia, principalmente pela dificuldade em encontrar os réus.

Como afirma Raul Fernandes em breve artigo (“Lampião processado”, in. blogdosanharol.blogspot.com/2011/02): “Em Agua Bela, Pernambuco, instalaram o processo contra Lampião e seu Bando. Não encontraram os réus e nem as testemunhas se apresentaram. Em, 1928, fizeram nova tentativa, sem resultado. No Rio Grande do Norte, a justiça manifestou-se, prontamente. Dr. Ovidio Henrique da Costa, juiz da comarca do município de Martins, assinou o mandato de prisão preventiva do grupo de Lampião, enumerando o nome dos chefes e acompanhantes. Dois meses mais tarde, a sentença fora sustentada pelo juiz da referida comarca, Dr. Silvério Soares de Sousa. Em Setembro de 1927, Dr. João Vicente da Costa, Juiz da comarca de Paus dos Ferros, decretava: onde for encontrado o bandido Virgulino Ferreira, vulgo Lampião, prenda-o e recolha-o a cadeia publica desta cidade”.

Sessenta e nove anos depois, em 1997, retomando o julgamento de Lampião e outros denunciados num processo da Comarca de Betânia, de 1928, o atual juiz Clóvis Silva Mendes (Juiz de Direito da 1ª Vara Cível da Comarca de Serra Talhada, no exercício cumulativo da Comarca de Flores), ao reconhecer a extinção da punibilidade pela prescrição, ainda assim pincelou seu ódio contra o rei dos cangaceiros nos seguintes termos:

“VIRGOLINO FERREIRA DA SILVA, o Lampião, durante 16 anos, reinou nos sertões do Nordeste, enveredando pelas caatingas, deixando por onde passava um rastro de perversidade e praticando tudo aquilo que podia aterrorizar a sociedade sertaneja. Conseguiu valentia através da violência, impôs o medo, a covardia, de modo torpe e vil, como forma de se impor em todo o Sertão Nordestino. Ele empreendeu uma onda nefasta de crimes ao longo de sua trajetória como cangaceiro, porém nem sempre conseguiu concretizar as suas metas, ou, ainda, seus planos não foram bem sucedidos. Tendo, às vezes, encontrado certa presença de espírito desfavorável, teve que recuar, posto que sua empreitada não havia sido recepcionada como o previra. Era um homem prudente, uma verdadeira serpente” (“A Sentença de Lampião”, in. Blog do Medeiros - http://apmed.blogspot.com.br/2007/07).

No único processo instaurado contra Lampião em Sergipe, originário do município de Nossa Senhora das Dores (Comarca de Capela), lá pelos idos de 1930, o cangaceiro fora acusado pela morte de Elpídio José dos Santos. Atuando no processo, o então promotor, e mais tarde desembargador, Dr. Joel Macieira Aguiar, assim expressou, ás fls. 37 dos autos, acerca do famoso réu: “Seja-me, pois, permitido, como Promotor Público da 6ª Comarca, com sede em Capela, deixar nestes autos os meus aplausos à justiça do termo de Dores por ter instaurado processo contra o grande bandido Virgulino Ferreira”, conforme cita José Lima Santana (“Segunda Visita de Lampião a Dores”, in. cariricangaco.blogspot.com).


Contudo, passados quase setenta e quatro anos de sua morte a 28 de julho de 1938, na Gruta do Angico, às margens do Velho Chico, na povoação sergipana de Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo, eis que - talvez de forma inédita - o judiciário sergipano, no julgamento em primeira instância de processo envolvendo a proibição do lançamento de livro maculando a imagem de Lampião e Maria Bonita, reconheceu-os portadores de características primordiais no ser humano, como a honra e a dignidade.

O processo judicial fora requerido pela filha do casal, Expedita Ferreira Nunes, ao tomar conhecimento pela imprensa que um ex-magistrado sergipano, Pedro de Morais, estava prestes a lançar um livro onde tentava provar que o mais famoso casal de cangaceiros tinha opções sexuais e comportamentais bem diferentes do sempre apregoado pela história, vez que Lampião era homossexual (e também estéril) e Maria Bonita adúltera, pois traía o companheiro com outro cangaceiro do próprio bando, Luís Pedro.

Tombado sob nº 201110701579, da 7ª Vara Cível da Comarca de Aracaju, cujo juiz titular e julgador do pleito foi o Dr. Aldo Albuquerque, tanto na decisão acerca do pedido de tutela antecipada para o não lançamento do livro como na decisão de mérito, o que se observou foi a voz da justiça lançando o olhar sobre pessoas objetos de direito, de base constitucional, e não apenas enxergando renegados da lei e meros bandoleiros, como costumava fazer a mesma justiça noutros tempos.

No julgamento do pedido de antecipação de tutela, acatando o pleito da filha de Lampião e Maria Bonita, através de Despacho de Mero Expediente publicado no Diário da Justiça do TJSE em 25/11/2011, assim se pronunciou o magistrado:

“(...) Em relação à proteção da intimidade e da honra da requerente, busco amparo e fundamento nas próprias palavras do requerido constantes da entrevista concedida ao Jornal Cinform, pois o mesmo afirma categoricamente, em várias passagens, que o pai da requerente, conhecido como “Lampião”, era boiola, gay, entre outros adjetivos direcionados a imputar ao mesmo a condição de homossexual.

A homossexualidade é um comportamento lícito, assim como o comportamento de fumar e também uma opção, assim como a opção de torcer por determinado clube de futebol ou por determinada escola de samba.

As pessoas, por óbvio, sempre enaltecem seus comportamentos, até porque estes fazem parte de sua história e é a partir deles que as demais pessoas formam juízos de valor acerca de nossas condutas.

Neste prisma, tem gente que tem orgulho porque faz doação de sangue, tem gente que se orgulha de fumar, tem gente que se orgulha por ser homossexual e ter coragem de assumir publicamente a sua opção sexual, como também tem gente que se orgulha por não ser homossexual.

Assim, fica fácil perceber, que efetivamente, o texto e o conteúdo do livro a ser publicado pelo requerido, agride de forma frontal e violenta de forma objetiva e contundente todo o orgulho da requerente em relação à conduta e comportamento de seus genitores, como também dela própria.

Não é de ninguém novidade, a característica de virilidade que sempre se tentou passar da história de vida de Lampião, pai da requerente, tanto é assim que o mote do livro a ser publicado pelo requerido trata exclusivamente desta questão relativa à opção sexual do mesmo.

Tal situação, não teria sequer apelo da imprensa, se o livro tratasse de eventual aventura heterossexual de Lampião, pois são várias as publicações históricas que tratam dessa característica viril do pai da requerente.

Então, percebe-se facilmente que a questão diz respeito exclusivamente à intimidade da requerente e de seus genitores, pois de forma expressa, segundo se infere do texto da entrevista concedida pelo requerido ao Jornal Cinform, o mesmo lança dúvidas, inclusive, a respeito da paternidade da requerente.

Ora, uma simples ação de investigação de paternidade é acobertada pelo manto do segredo da justiça, com muito mais razão deve ser protegida a intimidade da requerente, diante do conteúdo do livro que o requerido pretende publicar.

Ademais, não há como deixar de considerar, que o fato de se tentar passar a ideia de que Lampião era homossexual, constitui-se, em evidente ofensa à honra da requerente, pois qualquer pessoa se sentiria ofendida acaso lhe fosse imputada característica não compatível com a sua história ou até mesmo com os sentimentos pessoais, acerca do comportamento de seus genitores”.


Por sua vez, quando do julgamento do mérito (decisão publicada no Diário da Justiça do TJSE em 11/04/2012), confirmando a tutela anteriormente concedida e dando provimento ao pleito requerido por Expedita Ferreira, assim se manifestou o ilustre julgador de primeiro grau:

“(...) No tocante ao fato alegado pelo requerido de que a requerente não se mostra indignada quando o seu pai é chamado de facínora, homicida, estuprador, ladrão, violento e fora da lei e que se mostra indignada quando o mesmo é chamado de homossexual, verifica-se mais uma vez a fragilidade dos argumentos do requerido.

Com que certeza o requerido afirma que a requerente não se sente indignada quando seu pai é tratado como um marginal ou bandido, em relação aos fatos criminosos, em tese, praticados pelo mesmo.

Acontece que os fatos criminosos imputados a Lampião, são fatos públicos, estes sim, de interesse público e coletivo, e justamente por isto, a requerente não pode e jamais poderá proibir a divulgação dos mesmos, pois na verdade, tais fatos não dizem respeito a vida privada de Lampião.

Ao contrário, tais fatos e circunstâncias são rotineiramente e cotidianamente tratados pelo público e por quem quer que seja, sem que a requerente possa adotar qualquer tipo de postura ou conduta no sentido de proibir a divulgação e/ou a investigação de tais atos.

Na verdade, não há qualquer informação de que a requerente tenha orgulho desses fatos imputados ao seu genitor e eventual ausência de provocação sua, na tentativa de proibir a divulgação de tais fatos, não significa, necessariamente, a existência de um sentimento positivo de alegria pelos mesmos, pois ainda que não se conformasse, nada poderia fazer, em função da natureza pública e interesse coletivo de tais fatos.

Ainda tentando justificar a publicação de seu livro, o requerido afirma as fls.50, que na verdade o objetivo de sua obra é demonstrar que o cangaceiro Lampião não era justiceiro, não era general, não era estrategista, nem tático, e sim, que era um covarde, um homem mal, violento, quase sempre a serviço dos poderosos e nunca um defensor dos fracos e oprimidos.

Percebe-se nesta expressa afirmação do requerido em sua contestação, que na verdade, o que se pretende é ridicularizar a figura de Lampião, ofendendo-lhe com vários adjetivos, de covarde a homossexual, de impotente a corno, de homem mal a homem a serviço dos poderosos.

Ora, para provar a sua tese de que Lampião era um homem covarde e violento, não precisa o requerido imputar ao mesmo a conduta homossexual, uma suposta impotência sexual ou ainda as supostas traições de sua companheira Maria Bonita, bastava o requerido investigar e narrar os vários fatos públicos e notórios, que são imputados a Lampião e Maria Bonita, fatos estes que dizem respeito à prática de diversos crimes e a partir daí traçar um perfil de Lampião e de Maria Bonita.

Tal conduta sim, seria legítima e permitida por nosso ordenamento jurídico, mas a partir do momento em que o requerido incursionou e enveredou pelo caminho da invasão da vida privada, da honra e da intimidade de Lampião e de Maria Bonita, contaminou, por ilícita, toda a sua obra.

Não cabe aqui, sequer, a alegação de que chamar alguém de homossexual não é ofensa, em virtude da licitude do comportamento homossexual, pois embora lícito, tal comportamento, por razões óbvias, já que ligados diretamente à intimidade e a vida privada das pessoas, constitui-se em uma das maiores ofensas que se pode dirigir àquele que não adota tal comportamento.

Como paradigma temos vários exemplos, pois para uma mulher de comportamento sexual regrado, constitui-se como uma das maiores ofensas ser chamada de prostituta, embora, todos saibamos, que a prostituição é um comportamento lícito.

Ou seja, embora haja um apelo e sensacionalismo da mídia no sentido de tentar passar a ideia de que o comportamento homossexual, por ser lícito, não ofende, verifica-se que tal sentimento não se compatibiliza com a realidade, pois da mesma forma que se deve respeitar os homossexuais em sua integridade física e moral, deve-se respeitar os heterossexuais.

Não se admite assim que o requerido tente passar a ideia, através de sua obra, de que Lampião era homossexual, pois tal comportamento, a toda evidência, não é compatível com a história de vida de Lampião e muito menos com a história do cangaço.

Todas as considerações acima, servem para demonstrar a ilicitude da conduta do requerido quando trata da suposta impotência sexual de Lampião, pois tal afirmação além de ofender qualquer homem é totalmente contraditória, quando se percebe que o requerido ás fls.47, reconhece que Lampião era chamado de estuprador.

Ora, vê-se assim, facilmente, que as alusões relativas à intimidade e a vida privada de Lampião, além de ilícitas, posto que não dizem respeito a ninguém, são infundadas.

No tocante a alegação dos supostos adultérios de Maria Bonita, deixo de tecer maiores considerações, em função do que já foi exposto”.


Desse modo, não é difícil observar quanto o conceito acerca de Lampião foi mudando ao longo dos tempos. Aquele tido apenas como sanguinário bandido, com o passar dos anos voltou a alcançar o status de humano. E como tal, não apenas o malfeitor, mas pessoa normal e condicionada pelas incongruências do seu tempo histórico e social.

(*)Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com




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