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segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

OS SERTÕES: AS PRÉDICAS DE ANTÔNIO CONSELHEIRO E A POESIA DE CANUDOS - PARTE II

Por Aleilton Fonseca

As prédicas nos manuscritos de Antônio Conselheiro

As prédicas e discursos de Antônio Conselheiro constam de um caderno manuscrito que foi encontrado em Canudos, após o fim da luta, por João de Sousa Pondé, médico que participou da campanha como cirurgião da última e vencedora expedição militar. Segundo constatou Ataliba Nogueira, a obra manuscrita é autêntica e do próprio punho de Antônio Conselheiro (8). Os manuscritos foram doados por João de Sousa Pondé ao escritor baiano Afrânio Peixoto que, por sua vez, passou-os a Euclides da Cunha, quando Os sertões já estavam publicados. Euclides morreu poucos meses depois e não se sabe se teve tempo de folhear os manuscritos do Conselheiro.

Publicados por Ataliba Nogueira, em 1974, portanto, cerca de 72 anos após o lançamento de Os sertões, os manuscritos do líder religioso trouxeram para os estudiosos o dever e a oportunidade de confrontá-los com a apreciação dos escritos de Euclides da Cunha. Como descreve Ataliba Nogueira, a obra manuscrita consta de 628 páginas, numeradas e sem margem, contendo 14 linhas cada. Escrita em tinta preta, caligrafia boa e regular. O seu formato é de 10 x 14 cm (9).

O manuscrito divide-se em quatro partes. Na primeira, constam "Os mistérios de Maria", em número de 29, cada qual sendo motivo para uma prédica. Na segunda parte, constam os "Dez Mandamentos da Lei de Deus", na forma de comentários e pregações da doutrina. A terceira parte traz textos selecionados dos evangelhos bíblicos, dos apóstolos do Novo Testamento, em que os trechos citados são rigorosamente identificados, com a indicação do apóstolo, do capítulo bíblico e do número do versículo. A quarta parte consta de assuntos esparsos, em que estão desenvolvidas idéias de Antônio Conselheiro acerca de símbolos, ritos e sacramentos católicos (cruz, missa, confissão, feitos de Jesus) e, ao lado disso, seus discursos sobre seu trabalho de edificador de igrejas e sobre a República.

A leitura dos textos de Antônio Conselheiro traz ao leitor de Euclides da Cunha uma surpresa instigadora. Os textos têm um nível considerável de organização, com uma distribuição e uma seqüência lógica dos assuntos. São gramaticalmente bem estruturados e o seu conteúdo religioso, longe de qualquer aberração, é equilibrado e bastante próximo do texto bíblico. Sua aplicação como fundamento para prédicas e discursos situa-se de maneira clara na observância dos valores católicos tradicionais. É certo que em alguns fundamentos a pregação de Conselheiro encontra-se desatualizada em relação aos cânones oficiais. Um exemplo disso é a idéia do direito divino dos reis, raiz de sua discordância em relação ao regime republicano, que a Igreja oficial já abolira. Mas, quanto ao conteúdo dos ensinamentos e da moral religiosa, observa-se que não há motivo para considerá-los "misticismo doentio", ou resultado de "loucura coletiva". Trata-se, na verdade, de uma prática religiosa alternativa e popular que, diante das condições socioculturais e políticas do espaço sertanejo e do embate provocado pela intervenção militar, acabou ganhando um relevo histórico especial.

Com efeito, os discursos que expressam os traços da personalidade e a natureza da liderança do Conselheiro ajudam a esclarecer melhor o seu perfil, em contraposição aos traços negativos estampados em Os sertões. O discurso "Sobre o recebimento da chave da Igreja de Santo Antônio" (10), padroeiro de Belo Monte, revela um líder religioso humilde, sem fanatismo, com um texto estruturado que esclarece posições e idéias de forma clara e inteligível. Nesse discurso, o beato agradece a todos que "concorreram com as suas esmolas e com os seus braços" para a edificação da igreja, prometendo-lhes a recompensa do Bom Jesus. Em seguida, explana sobre o surgimento do catolicismo, sobre o sacrifício de Cristo para a remissão do pecado original e a importância da obediência aos "Mandamentos da Lei de Deus". Posteriormente, faz observações restritivas ao Judaísmo por continuar reverenciando Moisés e não aceitar os princípios da religião cristã. Ao lado disso, critica aqueles que, no seu entendimento, "se movem pela incredulidade", "espalhando doutrinas falsas e errôneas aos ignorantes". Como exemplo, cita judeus, maçons, protestantes e republicanos, acusando os últimos de perseguir a religião do Bom Jesus. Em função disso, reafirma a importância da igreja como forma de congregação:

Portanto a Igreja é a congregação dos fiéis que, por dever indeclinável, devem curvar-se reverentemente diante de Deus, rendendo-lhe as devidas adorações, invocando o seu nome com amorosa confiança, tendo por certo que Deus lhes será propício.

Enfim, o beato termina o seu discurso contando a parábola do semeador, a propósito do trabalho de evangelização e seus diferentes graus de recepção. Observa-se, enfim, no texto, que fica clara a compreensão do Conselheiro acerca do catolicismo, suas origens e fundamentos bíblicos. Observa-se também que as citações bíblicas são pertinentes e lógicas, sendo encaixadas de forma aceitável no discurso, com um tom persuasivo e evangelizador.

No discurso "Sobre a República" (11), estão expostas as idéias de Antônio Conselheiro em que se pode observar um conteúdo mais político, embora sempre determinado pela religião. A premissa fundamental do texto é a de que a República deseja acabar com a religião e por isso é nociva ao povo sertanejo. A República é criticada como "assunto que tem sido o assombro e o abalo dos fiéis". Vista como grande mal para o Brasil, sua implantação é debitada à "incredulidade do homem". Na ótica do Conselheiro, a deposição do monarca contrariava a vontade divina, pois: "Todo poder legítimo é emanação da Onipotência eterna de Deus". Assim, afirma:

É evidente que a república permanece sobre um princípio falso e dele não se pode tirar conseqüência legítima: sustentar o contrário seria absurdo, espantoso e singularíssimo; porque, ainda que ela trouxesse o bem para o país, por si é má, porque vai de encontro à vontade de Deus, com manifesta ofensa de sua divina lei. (12)

Tratava-se, portanto, de uma questão de princípio sustentada por um dogma religioso que fundamentava sua posição contrária ao regime republicano. Em função disso, ele acredita que a República, o novo regime, não triunfará por ser "filha da incredulidade", defende o direito da família real que considera "legitimamente constituída para governar o Brasil", critica a instituição do casamento civil pelos republicanos, comenta aspectos do regime escravocrata e exalta a abolição como um feito da Princesa Isabel em obediência à determinação divina (13). O beato conclui pedindo desculpas aos ouvintes por proferir "palavras excessivamente rígidas, combatendo a maldita república":

Sim, o desejo que tenho da vossa salvação (que fala mais alto do que tudo quanto eu pudesse aqui deduzir) me forçou a proceder daquela maneira. Se porém se acham ressentidos de mim, peço-vos que me perdoeis pelo amor de Deus. (14)

Em seguida, despede-se manifestando o desejo de que os ouvintes correspondam "com aquela conversão sincera", ou seja, com a adesão à causa religiosa e colocando-se contra a ordem republicana. Observa-se, desse modo, que as razões do pregador eram puramente religiosas. Para ele, combater a República era defender a religião. Sem dúvida, sua compreensão do processo histórico é limitada e politicamente equivocada, porquanto somente o analisa do ponto de vista de sua crença religiosa. Contudo, conservador a seu modo, o discurso conselheirista tem uma argumentação explicativa e persuasiva, sem nenhum traço ou tom impositivo. Trata-se de um discurso embasado em idéias passíveis de discordância, de rejeição e de crítica. No entanto, é forçoso reconhecer a sua boa estruturação gramatical e a seqüência lógica de sua cadeia argumentativa, como texto organizado por uma mente sadia. As prédicas e os discursos, longe de denunciarem-no como "heresiarca", "insano" ou "fanático", acabam apresentando-o como líder religioso humilde, sóbrio e consciente da importância congregadora da religião para os sertanejos.

CONTINUA...


Enviado pelo escritor, professor e pesquisador do cangaço José Romero Araújo Cardoso

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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