Por Antonio Corrêa Sobrinho
No ano que eu nasci, 1959, o
valoroso escritor do cangaço, Nertan Macedo, publicou em livro o poema
“Cancioneiro de Lampião”, que, pelo seu reconhecido valor literário, mereceu o
rico comentário do escritor Antônio Olinto (1919-2009), publicado nas páginas
do jornal carioca O Globo, de 26 de dezembro de 1959. Coube a mim a prazerosa
obrigação de trazê-lo ao conhecimento da contemporaneidade.
Capa do livro extraída da internet
“CANCIONEIRO DE LAMPIÃO”
EM ENSAIO publicado há três anos
– e recentemente incluído num “Caderno de Críticas” – aludi à importância da
obra dos poetas populares do Nordeste. Dizia que os cantadores são donos de uma
pujança de expressão que, mal comparando, e em geral sem o tom diretamente
lírico, se assemelha à dos trovadores da Idade Média. Além disto, embora não se
possa, no momento, separar inteiramente a língua falada no Brasil da que se usa
em Portugal, a verdade é que estamos procurando formas de expressão bem
pessoais, que refletem, desta ou daquela maneira, a linguagem do povo, num
movimento semelhante ao da transformação do latim em línguas românticas. Há
cerca de oito anos, Jorge de Lima dava um passo importante nesse
reconhecimento, através de sua “Vidinha de Castro Alves”, escrita à maneira da
literatura de cordel do Nordeste. Agora, é Nertan Macedo quem lança um
“Cancioneiro de Lampião”.
* Devo, em primeiro lugar, dizer
que Nertan Macedo está em bom caminho. Foi às fontes de um setor da poesia
brasileira. Quando lançou seu “Waste Land”, declarou T. S. Eliot que se
inspirara, tanto no tema geral como em simbolismos particulares, no livro de
Jessie L. Weston, “From Ritual to Romance”, sobre a lenda de Santo Gral. Um dos
mais belos estudos de poesia publicados neste século – o “The White Goddess”,
de Robert Graves – defende a tese de que o conteúdo mítico da obra poética,
anterior ao primado do raciocínio estabelecido pelos gregos, perdeu muito de
sua força quando foi atingido pela tendência lógica da filosofia eleática.
Embora nos pareça que a predominância da lógica só se impôs mesmo a partir de
Aristóteles, acha Graves que à época de Parmenidos já se revelara eminentemente
antimítica. E, por estranho que isso seja para muita gente, Robert Graves
coloca-se contra a poesia de Ezra Pound por acha-la demasiadamente fabricada,
lógica) já Eliot, influenciado por Pound, dedicara ao autor dos “Cantos” o
poema “The Waste Land”, dando a Pound o título de “il miglior fabbro”, o mesmo
que Dante dera a Arnault Daniel).
* Desejo, com essas aproximações
de poemas e teses, afirmar a importância de um poeta buscar o seu poema nos
mitos do povo (o mítico não é o contrário do real); a figura de Lampião, o
Lampião que de fato existiu, entrou para a lenda e faz hoje parte das
reivindicações poéticas do homem comum do Nordeste brasileiro). Nertan Macedo
faz a louvação de Lampião, e, para isso, utiliza o metro, a rima e o jeito
normais da poesia nordestina:
“Nestes autos vou narrar
a vida de Lampião,
quem tiver oiças, escute
e faça do coração
a via do entendimento,
pois nada vale a razão,
sangue e terra se misturava
em perfeita comunhão,
na linguagem do mistério
dou a minha tradução,
o demônio sobrevive
no descendente de Adão,
quem de si não o afugenta
apodrece na prisão,
o homem não nasce bom,
já nasce na expiação,
se o anjo prevalecesse
já teria morto o cão.”
a vida de Lampião,
quem tiver oiças, escute
e faça do coração
a via do entendimento,
pois nada vale a razão,
sangue e terra se misturava
em perfeita comunhão,
na linguagem do mistério
dou a minha tradução,
o demônio sobrevive
no descendente de Adão,
quem de si não o afugenta
apodrece na prisão,
o homem não nasce bom,
já nasce na expiação,
se o anjo prevalecesse
já teria morto o cão.”
* O processo poético de Nertan
Macedo é absolutamente válido. O verso de sete sílabas, usado pelo povo, é por
causa mesmo de sua simplicidade, mais difícil do que muito rebuscamento verbal
e métrico. Suas rimas – em “ão”, em “ia”, em “eiró” ou “eira” – são banais no
idioma, e qualquer cantador de improviso faz inesperadas variações com essas
desinências. Há sempre um motivo para que um certo número de sufixos se
implante numa língua. Seguindo a tese de se empregar o acusativo latino como o
denominador comum do espírito das desinências, diríamos que o “ationem”, o
“tutem” (“tribulationem”, “virtutem”, por exemplo) dão, ao latim, uma força
fora do comum, ao ponto de o primeiro continuar hoje no “ation” do francês e do
inglês, no “ação” do português e em tantos outros sufixos do italiano, do
espanhol, do romeno, do galego e mesmo do catalão e do provençal. As palavras
se formam por uma necessidade interior de transformar em som comunicável aquilo
que sacode o homem por dentro. A escolha de determinados sons corresponde a uma
constância de imagens e pensamentos aliada às limitações fônicas a voz humana.
Se a criança aprende a dizer, primeiro, “mamãe”, “papai”, “babá”, é porque as
consoantes “m”, “p” e “b”, sendo labiais, são as mais fáceis de dizer.
Encontro, no “ão” português – e, principalmente, no “ão” brasileiro, tal como o
usa o cantor nordestino – uma força significativa que não está de acordo com a
atitude de desprezo que muita falsa elite tem para com ele. É preciso que se
conquiste, na poesia, um plano de simplicidade, inclusive quanto ao aspecto
cotidianamente vocabular. O “ão” de Nertan Macedo adquire, com o decorrer do
poema, extraordinária beleza. Nas diversas descrições de Lampião, consegue ele
dar, a esse cancioneiro, uma constante de ritmo narrativo digno de atenção:
“Seu cavalo era um fidalgo
Com narinas de trovão,
Rufava como um tambor
Na frente de um batalhão,
Uma pancada do casco
Fendia a terra do chão,
Nas cores do meio dia
Era cinzento e cardão,
Era de prata azulada,
Era vermelho alazão,
Ancas de ouro e negro,
Rompe-nuvem de algodão.”
Com narinas de trovão,
Rufava como um tambor
Na frente de um batalhão,
Uma pancada do casco
Fendia a terra do chão,
Nas cores do meio dia
Era cinzento e cardão,
Era de prata azulada,
Era vermelho alazão,
Ancas de ouro e negro,
Rompe-nuvem de algodão.”
* Costumo, de vez em quando,
deixar a obra examinada, para falar de aspectos que nela não se encontram. No
caso do “Cancioneiro de Lampião”, preferiria que ele fosse um “Romanceiro” e
não um “Cancioneiro”. Embora alguns dicionários também considerem sinônimas
essas duas palavras, o “Romanceiro” está mais próximo da narrativa de
acontecimentos, de relato normal, com começo, meio e fim. “Vidinha de Castro
Alves”, de Jorge de Lima, é pequena biografia em versos, de modo que conta
mesmo uma história. Os poemas populares do Nordeste – de um João Martins de
Ataíde, de um Rodolfo Coelho Cavalcanti – costumam, na maioria das vezes,
aproveitar histórias conhecidas ou casos conhecidos na cidade, no país ou no
mundo, e que tenham chamado a atenção do povo (sob este aspecto, o poeta
popular faz jornalismo poético, já que comenta as notícias do momento, como é o
hábito de Cuíca de Santo Amaro, na Bahia). Nertan Macedo, porém, não quis
contar propriamente uma história. E estava no seu direito. Achou melhor o
“Cancioneiro”. Mas creio que uma história correntia, em que Lampião aparecesse
à frente de acontecimentos, ou por eles cercado, estaria mais de acordo com o
espírito de forma poética utilizada por Nertan Macedo.
De qualquer modo, “Cancioneiro de Lampião” é um dos bons poemas brasileiros do momento. Nele, retoma Nertan Macedo uma fala poética que é do povo, e nele infunde novos ritmos e novos significados.
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