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sábado, 22 de outubro de 2016

CAÇANDO POMBAS CARIJÓS

Por Alfredo Bonessi
Alfredo Bonessi é pesquisador do cangaço
Em uma quinta-feira a tarde, jogando conversa fora com o Cabo armeiro da nossa Companhia de Engenharia, quando o assunto virou para o lado de caçadas, ele me reafirmou que existia um lugar onde havia pombas Carijós de bando,  de fácil abate, pela quantidade e pela localização das aves. Fiquei surpreso pois não sabia que essa pomba habitava a Amazônia – era meu sonho caçá-las, pois em criança escutava as histórias do meu padrinho, que se valia de uma espingarda 24, para  não estragar  a caça,  tanto de Codornas como de pombas Carijós. Quando criança, eu mesmo vi poucas dessas pombas enormes, geralmente a distância, a maioria voando bem alto, pois são ariscas demais para caírem no bodoque da criançada.
Fiquei entusiasmado com tudo aquilo que ouvira e falei para ele: eu tenho um rifle calibre 22, Remington 66, de colocar a munição pelo cabo, cujo tiro não faz barulho. Ele também falou: eu tenho um rifle calibre 22, Rossi, Pump – muito preciso também.  Quer ir caçar as pombas ?
Entusiasmado disse sim. Ele falou: vamos sábado, à tarde, sei a hora delas. Eu te apanho na tua casa, vamos no meu Fusca. Levaremos duas carabinas .30, da Segunda Guerra Mundial.
Para não quebrar o estado de ânimo da caçada, não ponderei quanto ao exagero de se levar uma carabina de assalto da Segunda Guerra Mundial para caçar pombas Carijós. De qualquer forma fiquei em meia expectativa sobre a ida da caçada, pois muitas vezes as promessas não são cumpridas pelos imprevistos rotineiros que muitas vezes se atravessam pelo nosso caminho. Também não fiz preparativos nenhum de saída, pois imaginei que ficaria sentado debaixo de um pé de árvore, a espera que as beldades se empoleirassem nos galhos, onde seriam um alvo fácil para nossos tiros – de minha parte sempre fui um exímio atirador de armas curtas e compridas: a 300 metros, de fuzil, apoiado, tiro de combate,  meus tiros ficavam em um círculo de no máximo 5 cm.
Eu já tinha uns dois anos de pratica de selva e o meu equipamento consistia em um macacão desses de posto de gasolina, meias de jogador de futebol, um par de tênis kichute, uma mocuta nas costas tendo no seu interior um punhado de sal, um quilo de farinha do amazonas, uma rede de solteiro pequena, um carretel de linha de pesca, poucas chumbadas e alguns anzóis. Levava sempre comigo poucos cartuchos enrolados em um plástico, para a minha espingarda 20 – de ejeção automática. Mas nunca esquecia de um isqueiro e um pedaço de borracha para garantir o início do fogo. Na cintura um facão bem vazado de 10 polegadas, com bainha. Você pode estar me perguntando: não levava café ?  O café um outro amigo meu levava, como também levava uma lata de leite ninho vazia, onde jogava as brasas sobre o café fervendo depois colocar um pouco de açúcar.
Após o meio dia de sábado vesti o macacão e pus os tênis e fiquei na espera. As 13,30 horas encostou no meu portão o fusca cor de canela do meu amigo, corri depressa, entrei no carro e seguimos viagem. No banco de trás as duas carabinas .30 M1 – ele me disse: são novas, nunca atiraram com elas – estou levando para cada um de nós 3 carregadores de 15 tiros. Essas carabinas foram utilizadas pelos Americanos na Segunda Guerra Mundial, principalmente nas tomadas da ilhas ocupadas pelos japoneses. O .30 é um cartucho longo, da espessura de um calibre 38 de revolver, a ponta de metal é pintada de um verde escuro. A arma é curta, coisa de 1 metro, até menos, com carregador por debaixo da culatra, e com uma alavanca de lado, que se utiliza uma única vez para introduzir o cartucho na câmara. Depois é só ri apertando o gatilho que ela mesma se alimenta de novos cartuchos. Dá um tiro seco, um estrondo bem mais forte que o 38, mas não há recuo – é muito fácil de se manejar e atirar com ela – eu gostava porque eram muito precisas.
Conversamos pouco no caminho e logo estávamos no posto do Roque em Porto Velho. Naquele tempo a cidade de Porto Velho terminava aí no trevo. Se fossemos para a direita pegaríamos a estrada de chão para Guajará Mirim; se fossemos para esquerda, iríamos para o novo bairro da Liberdade – recém instalado, bem encascalhado, onde se encontravam as torres da Embratel. Seguimos em frente na BR 364, rumo a Cuiabá, cujos primeiros quilômetros já estavam asfaltados pelo 5 BEC. Ao lado desse trecho inicial da rodovia não morava ninguém, sendo campo a esquerda dela e na direita matos. Lá pelo km 12 era que havia uma sede de uma usina de asfalto e um campo de instrução da Brigada, nada mais. Com poucos minutos de viagem, algo em torno de 2,5 Km, ele sai da estrada, a direita, e estaciona o fusca a beira de uma cerca nova de arame liso. Descemos do carro, apanhamos as armas, cruzamos por debaixo do arame e entramos no campo. Olhei ao redor e não vi nada, a não ser um campo imenso a nossa frente. O dia era ensolarado, fazia muito calor e abafado. Fomos andando. Tratei de me orientar desde já. Eu sabia que as torres da Embratel ficavam a minha esquerda e na minha frente, possivelmente, depois de uns 10 km, o Rio Madeira. Alguns minutos de caminhada, notei que o terreno estava muito molhado. Pensei que havia chovido. É normal no Amazonas chover em uma quadra e na outra quadra não cair uma gota de água. Depois de alguns metros, já caminhávamos sobre um terreno encharcado, com um 5 cm de água cobrindo a mata rala do campo. Daí em diante, a medida que caminhávamos aquela água ia subindo. Já cobria nossos tornozelos. Logo estava no meio das nossas canelas. Andamos assim uns 10 minutos quando avistei no horizonte um pontinho escuro, parecendo um risco de carvão na tela de um gramado acinzentado, contrastando com o fundo azulado claro do céu. É lá disse o meu amigo. Avaliei a distância, faltavam uns 2 quilômetros. Depois de uns 20 minutos de caminhada a água já estava em nossa cintura – era uma água quente – clara e não dei importância a isso. Já se avistava bem o renque de mato a nossa frente. Parecia o desenho de uma chave – havia uma parte redonda, e outra que se prolongava a direita, não mais que uns 100 metros de comprimento. Era uma vegetação típica dos serrados brasileiros, baixa, não mais que 4 metros de altura, acinzentada, troncos retorcidos, folhas miúdas, parecendo a folhagem da oliveira. Daí compreendi o porquê que meu companheiro tinha vindo com uma roupa cinza escuro – era uma perfeita camuflagem com a vegetação. Não tínhamos chegado no mato quando a água já estava pelos meus peitos – do meu rosto tinha sumido o ar da tranquilidade, em seu lugar a minha cara estava fechada, com uma ruga entre os olhos.  A uns 20 metros da bola da chave a água se apresentava quente do umbigo para cima e muito fria do umbigo para baixo. Ia perguntar a ele como faríamos para entrar naquilo quando ele se abaixou na minha frente, e passou por debaixo de uns galhos de uma arvore, e de repente nos vimos em um círculo de uns 10 metros de diâmetro – uma clareira, sem arvores nenhuma. Olhei ao redor e a folhas caídas das árvores cobria toda aquela água fria ao nosso redor. Senti um temor. Ia ponderar alguma coisa com ele, que ficássemos juntos, mas não houve tempo. Ele me disse: é aqui e saiu da minha frente, andando para a direita, e passando por um túnel entre as arvores,  que havia a direita da entrada, pouco mais de 1 metro de diâmetro e sumiu das minhas vistas.  Fiquei parado, estático naquele lugar, em frente ao lugar que o meu amigo tinha entrado e desaparecido. Olhei ao redor e me desesperei. Pensei comigo: se uma cobra me agarrar aqui, estou morto. Lembrei-me do meu facão – com ele teria alguma chance. As folhas circulavam ao redor de mim e faziam uma onda – eu pensava que era alguma cobra vindo em minha direção – o terror aumentava. Minutos passavam. Tentei ir atrás do meu amigo. Entrei pelo túnel – pouco mais de 4 metros. Sai do outro lado e pude ver o renque de arvores a esquerda que se alongava por uns 60 metros para a direita. Desisti e retornei ao local aonde estava, no meio da clareira. A minha esquerda e fora da clareira havia uma arvore seca, mais alta, cujo tronco acinzentado não apresentava mais galhos nenhum, apenas saia desse, lá no alto,  um pequeno tronco de 1 metro de comprimento. De subido uma pomba Carijó posou nesse tronco. Estava sossegada olhando para frente. Fiz mira com a arma e pensei:  como vou fazer para buscar essa pomba do outro lado dessa clareira ? – atiro. A pomba me olha desconfiada.......miro de novo. Ela voa e vai se embora. Passa o tempo. Outra pomba assenta no mesmo tronco. Olha para mim desconfiada. Aponto a arma e atiro......nada. Ela dispara. Mais tarde outra pomba pousa ali. Miro rápido e atiro rápido...erro o tiro novamente. Desconfio da calibragem da arma. Confiro os ajustes da arma, estão certos, Lembrei-me das historias do meu padrinho  que sempre afirmava que havia um mistério com as pombas Carijós, pois eram difíceis de serem abatidas, pois são  mandingueiras e enganam o caçador.
Estou tremendo de frio e de medo naquele lugar, penso em chamar o meu amigo que, estranhamente, não deu um único tiro a tarde toda. Espero mais um pouco e tomo a iniciativa. Dou um grito bem forte e depois assobio a moda caçador chamando por ele. Ele me responde bem atrás do túnel – tenho um alivio. Noto que ele vem vindo por dentro do túnel, mas nas copas das arvores alguma coisa vem atrás dele pois a folhagem se mexem em sua direção. Penso que sejam macacos. Ele sai do túnel pouco mais de um metro e meio e nas suas costa, nas pontas dos galhos das arvores que quase tocam a água,   desce uma enorme cobra esverdeada, com a cabeça em forma de triangulo de uns 10 cm da largura, que formam um laço a uns 60 cm das costas dele. Ele está em pé, com a arma na mão direita e me olha. Eu não podia atirar porque poderia acertá-lo. Eu vejo a cobra a esquerda dele. Olhe bem nos olhos dele. Nos olhamos um nos olhos do outro. Ele me pergunta: o que foi ? – uma cobra ? – aceno com a cabeça que sim. Ele pergunta: aonde? – nas minhas costas ? – balanço a cabeça que sim. Ele está pálido, amarelo. De repete ele se vira e atira certeiro na cabeça da cobra que desliza suavemente para o fundo da água.  Uns 2 metros de cobra venenosa. Saímos ligeiramente dali e em pouco tempo estávamos a caminho de casa – em silencio – em profundo respeito ao lugar tenebroso e tudo mais que havia por ali.
Hoje,  passados 46 anos do acontecido, tenho tudo na memória como um filme que desliza em imagens pela minha mente – tenho certeza que o meu amigo, lá pra bandas de Sergipe onde vive atualmente, também nunca vai esquecer esse sábado a tarde, nessa caçada de pombas carijó.
- mocuta: bolsa de saco de estopa que os caçadores do interior do amazonas fabricam, valendo-se de um saco de estopa,  e que levam as costas quando nas caçadas por possuírem capacidade de levar em seu interior um quarto de anta,  ou umas 5 pacas ou um viado roxo.
Alfredo Bonessi
Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso
http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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