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sábado, 22 de outubro de 2016

“TÔ LASCADO...”, DISSE O CABRA AVEXADO

*Rangel Alves da Costa

“Tô lascado”, disse o cabra avexado. E justificou a lasqueira:

“Conta pá pagar, probema de juntá de tacho, e a muié só falano em comprá pano novo, prato novo, chaleira e cuié. Tô lascado. E tô lascado e sem jeito de arresorvê. Dinhero contado, budega pindurada, carçado furado, e a muié falano em salão de beleza, em batom e peufume e inté em brinco novo. Tô lascado. Tô lascado, e lascadinho da silva. Deveno um montão, de borso sem fundo, e inda vem a muié falano em dinhero pá comprá calçola de chita, califon arrendado e sei mais o quê. Tô lascado. Tô lascado, e dessa veiz sem vorta, sem jeito a dar. Sem dinhero de troco, sem moeda pá um gole de pinga, e inda pru riba vem essa gota serena da mulesta falano em macarronada, comida melosa, coisa de rico ou gente besta. Tô lascado e nada me sarva, pelo jeito não. Digo que num tenho, repito que tô sem tostão, mai a disinfeliz inda fica dizeno que iscondo dinhero, que sô canguinha e munto mais. Será que a bixiguenta da peste num tá vendo que tô lascado, que tô em veiz de pedi ismola? Vê, a gota serena tudo vê, mai quer increncá a fia da gota. E só pá me lascá aina mais...”.

“Tô lascado, e inda pru riba com a lasqueira dessa muié. Triste o dia que eu oiei pá essa fia da peste e chamei pá forrozá. Mió um cascavé ter mordido meu carcanhá antes mermo de entrá naquele salão de forró. E tomem inté acho que joguei peda na cruiz, só seno. Tarvez eu tivesse pecado demai pá me aceguerá com essa desgraceira da gota serena. Tô lascado, num tem jeito. Tô lascado. E tô lascado desna que botei ela dento de parede e porta. Assim que entrou logo inventô de ter um cortinado e um sofá. Pá que pobe com sofá, pelo amor de Deus? Se tinha cadeira e tamborete já tava bom demai, mai ela inventô de comprá na prestação. E tomem um montão de coisa. O pote tava novim e ela acismou de beber água gelada e aí me endividou todim com uma tar de geladera brastempa. Os pano de mesa aina tava tudo novim, poi dado pru minha tia, mai ela dixe logo que tinha de ser fulorado, cheio de estripulia. E entonce tome mai gasto. E fui começano a ficar lascado daí. E nunca mai ele deixou de me lascá. E inté hoje tô lascado, e lascadinho de riba abaixo...”.


“Tô lascado, sem jeito mermo. Eu compava doi quilo de carne, arroiz, farinha e feijão e num deixava fartá nada. Mai ela vinha pru traiz e chegava cum macarrão inrolado, quejo afarinhado, um negoço vremeio de misturá, e dizia que aquilo era uma chiqueza só. E eu tomano no fiofó de tanto me endividá. Num queria tripa não, nem toucim de porco nem bucho na banha. Pão com mantega nem pensar, poi ela dizia que era comida de pobe. Entonce se lascava na sopa que era pá eu me individar mai aina. Desse jeito, quem é que num se lasca? Purisso que tô lascado. E veja o abisurdo da disgramada. Eu ia na feira e compava uma lavanda com o maior sacrifiço do mundo. Sabe o que ela fazia? Dava tudim a vizinha e adispois dizia que a pobezinha tava de namorado novo e percisava se peufumar. E adispois se metia em compá coisa de uma tar de avon, um tar de toque de amor. Minha roupa rasgava e ela nem oiava, meu chinelo quebrava e ela nem chite. Eu ficava doente de morrer e a fia da gota mandava era eu percurá foia de chá pelos quintá. E um dia dixe que já tava ficano cansada e eu tinha de arrumá uma empregada. Mai pra casa não, pra ela. A empregada era pá paparicá a fia da peste. Uma madama, só seno. Adispois dessa fui no boteco, derrubei pá dento umas duas e vortei com a gota serena, brabo mermo...”.

“Vortei com umas duas na cabeça e incrontei a fia da gota que mai parecia uma rapariga. Toda peufumada da avon, batonzada e quase só de calçola. Tô lascado, pensei na hora. Deitada pru riba do sofá, toda dengosa, fazia assim com o dedim pá me chamar. Mai quando avancei a disgramada me fez parar pá preguntá: e a empregada? Purisso eu tô lascado”.

Escritor
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