Por O Globo
O livro do
historiador recifense Frederico Pernambucano de Mello, principal estudioso do
cangaço, revela a trajetória do imigrante sírio que foi secretário de
padre Cícero e fotógrafo de Lampião
O sírio
Benjamin Abrahão fugiu do alistamento militar obrigatório em seu país porque
temia ser convocado para a Primeira Guerra Mundial. Chegou ao Brasil em 1915,
com uma carteira falsa de jornalista no bolso, e morreu com 42 punhaladas em
pleno sertão, em 1938. Tinha apenas 37 anos.
Antes do fim trágico, partilhou do cotidiano de dois mitos que para os
sertanejos encarnam o céu e o inferno, Deus e o diabo em terra de sol. Foi
secretário particular de Padre Cícero, que até hoje atrai milhares de romeiros
a Juazeiro do Norte, no interior do Ceará. E virou homem de confiança e único
fotógrafo autorizado de Virgulino Ferreira, o Lampião. Embrenhou-se na caatinga
com ele e seu bando de cangaceiros e documentou sua vida em fotos e num filme,
que foi censurado pelo Estado Novo às vésperas de estrear nos cinemas
nacionais.
Parte da história de Abrahão foi contada em “Baile perfumado”, de Lírio
Ferreira e Paulo Caldas. Mas o longa de 1997 se limita ao período entre 1935 e
1937, durante a produção do filme sobre Lampião. A trajetória completa desse
personagem singular surge pela primeira vez na biografia “Benjamim Abrahão —
Entre anjos e cangaceiros” (Escrituras, 352 pgs, R$ 45), do historiador
Frederico Pernambucano de Mello.
Pesquisador que se dedica ao estudo do cangaço há 40 anos, Mello diz que
Abrahão foi, acima de tudo, um sobrevivente e um aventureiro:
— Sobrevivente por impulso de vida, e aventureiro por vocação e coragem. Da terra
santa aos sertões nordestinos, onde não se mostrou capaz de avaliar o quanto o
Estado Novo estava alterando a conduta dos homens ao seu redor, especialmente
os da elite. Miopia, aliás, que também vitimou Lampião.
Mello foi o
primeiro a chamar atenção para a figura de Abrahão, em 1992. Desde então, sua
curiosidade só aumentou. Detalhista, garimpou até a caderneta bilíngue do
aventureiro, que pretendia transformar suas anotações em livro. Só a tradução
desses escritos demandou quatro anos.
Abrahão fazia em português registros simples sobre rezas, batizados e
amenidades do cangaço (chegou a anotar, ditados por Lampião, os nomes de 23
espécies vegetais da caatinga). Em árabe, gravava informações que poderiam
provocar sua morte, como denúncias sobre as tropas que perseguiam Lampião: “Os
soldados matam as gentes sem razão. E enviam telegramas para o governo dizendo
que mataram um cangaceiro. E o governo promove a sargento o soldado que faz
isso”.
Autor de “Guerreiros do sol” (Girafa, 2004) e “Estrelas de couro: a estética do
cangaço” (Escrituras, 2012), Mello reconstituiu cuidadosamente os passos do
estrangeiro, que desembarcou em Pernambuco com a recomendação de ficar na casa
de parentes, ricos comerciantes, mas preferiu ganhar o mundo em busca de
aventuras e oportunidades de fazer dinheiro.
A trajetória de Abrahão é contextualizada no turbulento momento histórico,
marcado por fatos como a passagem da Coluna Prestes pelo Nordeste (entre 1925 e
1926), as ações do governo e dos rebeldes, o poder dos coronéis da caatinga, os
movimentos messiânicos, a Revolução de 1930, a verticalização do poder politico
no país.
Ourives, comerciante, jornalista, pioneiro do cinema documental brasileiro,
Abrahão chegou a colaborar com jornais de São Paulo e Rio, inclusive O GLOBO.
Em Recife, enquanto morou com os tios, trabalhou como representante comercial.
Foi numa das viagens a trabalho a Rio Branco, hoje Arcoverde — a 250
quilômetros de Recife, naquela época de difícil acesso —, que se deparou com um
grupo de romeiros que iam visitar o Padre Cícero.
Dizendo-se nascido em Belém, apresentou-se como “conterrâneo de Jesus Cristo” e
conseguiu se tornar secretário do padre. Com “pouco escrúpulo”, como lembra
Mello, transformou aos poucos a religião em negócio, tirando da “exploração de
massas fanatizadas tudo que necessitava para manter padrão de vida invejável”.
Morto o padre, restou-lhe negociar mechas de cabelo do milagreiro — que na
verdade eram de outras pessoas. A trama acabou desmascarada, porque Cícero não
tinha tanto cabelo assim.
Sem dinheiro, armou outra empreitada. Depois de conhecer Lampião em Juazeiro —
quando o cangaceiro e seu bando foram convocados para lutar contra a Coluna
Prestes — tentou aproximar-se dele para documentar sua vida. Fundou uma
empresa, um pequeno jornal, e conseguiu com a alemã Abafilmes o empréstimo de
uma câmera profissional, que gravava sem áudio. Fascinado por cinema, Lampião
se rendeu aos encantos da câmera, muitas vezes assumindo a direção das
filmagens.
— Em meados de 1936, Lampião era um chefe do cangaço inteiramente realizado na
“profissão”. Seus dez bandos de cangaceiros dominavam, pelo terror, vastas
porções rurais de sete estados do Nordeste. Participou do filme e das fotos com
entusiasmo, conclamando todos os bandos-satélites a fazerem o mesmo. Estava
entusiasmado com a possibilidade de mostrar ao mundo o seu “Cangaço S/A”, muito
bem administrado, provido de riqueza de ouro e prata à flor da pele — explica o
historiador. — A partir de 1930, quando o jornal “The New York Times” passou a
acompanhar os passos de Lampião, ele se tornou figura internacional. Benjamim
sabia disso, tinha forte intuição para o marketing.
Assassinato nunca foi esclarecido
O encontro do
libanês com Lampião ganhou as primeiras páginas do “Diário de Pernambuco”, a
viagem espalhou-se pelo noticiário nacional, e as imagens do grupo de
cangaceiros correram o mundo. Maria Bonita virou a “Madame Pompadour do
cangaço”, e os bandoleiros eram mostrados como pessoas comuns, no seu dia a
dia. Benjamin virou celebridade, passando de entrevistador a entrevistado.
Em 1937, Lampião enviou um bilhete, em português claudicante, no qual afirmava
que o sírio foi o único que “conceguiu filmar eu com todos os meus peçoal
cangaceiros”, “noça vida nas caatingas”. E alertava que outra pessoa não havia
conseguido nem conseguiria repetir a façanha: “nem eu mesmo consintirei mais”.
Abrahão tinha empenhado a alma na empreitada e se preparava para exibir o filme
inédito em salas de todo o país. A revista “O Cruzeiro” chegou a publicar, em
tom de crítica, a reportagem “De herói do cangaço a galã de cinema”. O fato
incomodou as autoridades, o filme foi apreendido, e o repórter viu seu trabalho
naufragar.
— Vivendo na corda bamba, ele teve de prometer a muitos o que não tinha para
entregar. Enganou muitos, deixando desafetos pelo caminho. E quando pôde,
finalmente, entregar um produto de qualidade, este já não interessava à
“modernidade” do país sob a ditadura de Getúlio — avalia Mello.
Falastrão, o estrangeiro também acabou revelando segredos do cangaço, o que
irritou Lampião. Cheio de desafetos, entre cangaceiros e poderosos, Abrahão foi
assassinado em circunstâncias até hoje não esclarecidas.
https://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/benjamin-abrahao-homem-que-iludiu-sertao-482892.html
Dê um pulinho até Cajazeiras e veja sew o professor Pereira ainda o tem. Aqui está o seu endereço:
franpelima@bol.com.br
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário