Por: José Nêumanne
Várias circunstâncias favoreceram a divulgação da imagem romântica dos cangaceiros que infestaram o sertão nordestino no início do século 20. A sobrevivência no semiárido os forçava a usar trajes apropriados para sobreviver aos garranchos, carrapichos e espinhos da caatinga e esse costume, adotado hoje pelos artistas em cena, por exemplo, os diferenciava de bandidos comuns e lhes deu uma marca visual definida. A facilidade com que fugiam dos cercos policiais, ajudados pela topologia do terreno e da vegetação do sertão e também pela corrupção, lhes propiciava uma espécie de aura que funcionava quase como uma licença para delinquir.
Esses grupos de bandoleiros surgiram numa região remota e sem lei na qual os coronéis latifundiários reinavam sem prestar contas ao Estado e em territórios sem estradas e difíceis de serem percorridos até mesmo por animais de montaria. Deslocavam-se quase sempre a pé, guiados pelo conhecimento do terreno em que pisavam, que nem sempre os agentes da lei conheciam. Moviam-se também numa cultura peculiar que lhes facilitava a ação. O semifeudalismo vigente consagrou como legítimos e corriqueiros costumes bíblicos, como a vingança, praticada conforme a lei de talião (“olho por olho, dente por dente”), que não respeitava a justiça comum. Crimes de honra, cometidos por pais que puniam com a morte mancebos atrevidos que ousavam desvirginar suas filhas donzelas, também tidos como useiros e vezeiros, serviam de pretexto para esconder a brutalidade numa região inóspita de sol inclemente, água escassa e secas periódicas.
Logo chefes de bandos se tornaram mitos que protagonizavam notícias sensacionalistas, romances de aventura e folhetos de cordel. O Cabeleira foi imortalizado no romance de Franklin Távora, de 1876. Antônio Silvino tornou-se célebre como o inglês Robin Wood, o australiano Ned Kelly e o americano Billy the Kid. O mais famoso de todos eles foi Virgolino Ferreira da Silva, pernambucano de Serra Talhada e imortalizado nos meios de comunicação e no romanceiro literário e popular como Lampião, o Rei do Cangaço. A lenda em torno de sua saga serviu a vários senhores. Na onda do banditismo social, consagrada pelo britânico Eric Hobsbawn, sociólogos marxistas o tornaram o vingador dos pobres nos latifúndios. Cangaceiros e Fanáticos, de Rui Facó, é um exemplo dessa falácia, que chegou a extremos como a tentativa de estabelecer um paralelo entre cangaceiros e guerrilheiros de Christina Matta Machado em As Táticas de Guerra dos Cangaceiros.
Frederico Pernambucano de Mello
Frederico Pernambucano de Mello, do Instituto Joaquim Nabuco, é fiel aos fatos e respeita as leis da lógica, da sensatez e da clareza. Com serenidade e competência, desafia a mitologia do cangaço social, desfazendo "verdades" inventadas por biógrafos oficiais e analistas de esquerda. Quem lê seus livros vê-se tem acesso a relato e análises de fatos e não de lendas. O pretexto de Lampião se juntar ao grupo de Sinhô Pereira, em cujo comando depois ganharia fama, era vingar-se de um inimigo malvado de sua família. Pernambucano lembra que a vingança nunca foi consumada e, no fim, o cangaceiro e os desafetos de sua grei se reconciliaram. Em Guerreiros do Sol, livro em muito boa hora reeditado pela Girafa Editora, o especialista desarma a armadilha do banditismo social, mostrando sua face violenta e nada solidária. Os cabras de Lampião roubavam em proveito próprio e nunca dividiram seu butim com os pobres.
Até tombar na gruta de Anjico, no sertão de Sergipe, o Rei do Cangaço sobreviveu graças à cumplicidade dos "coiteiros" que o abrigavam, protegiam e informavam a peso de ouro e recorrendo a estratagemas de esperteza incomum. Recebeu a patente fajuta de capitão das mãos do Padre Cícero Romão Batista, o Padim Ciço de Juazeiro do Norte, Ceará, outro mito popular sertanejo, para perseguir a Coluna Prestes, que ziguezagueava pelo sertão que seu bando percorria. Espertamente, tanto os militares rebelados quanto os rudes bandoleiros se evitavam pelas veredas do semiárido para não terem de se confrontar.
O autor mostra também como a vida aventureira, ao ar livre, enfrentando volantes das polícias estaduais, atraiu muitos jovens de famílias abastadas, que, a exemplo do que ocorre hoje, nas metrópoles do século 21, se tornavam criminosos profissionais em busca de fortuna e emoção. Este foi o caso do paraibano Chico Pereira, pai do padre, professor e escritor do mesmo nome, que escreveu um dos mais precisos e sensíveis textos sobre esse aspecto romanesco do cangaço, Vingança, não, cujo título revela a decisão da família de não fazer o que mandava o figurino da honra sertaneja: vingar a morte do ascendente morto. Em Guerreiros do Sol reluz a luz do sol do semiárido para dissipar as névoas de lenda e fantasia sobre o falso cangaço social.
José Nêumanne
Jornalista, escritor e editorialista do Jornal da Tarde
Fonte:
Publicado na Pág. S06 do Sabático do Estado de S. Paulo,
sábado 16 de junho de 2012)Cortesia do Envio:
Luitgarde Cavalcante Barros
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