*Rangel Alves da Costa
Em meio ao mundo de dores e dissabores e da vida em meio às angústias e aflições, ainda assim eu encontro motivos para uma canção. Então, como diria Cecília Meireles, canto por que o instante existe.
Canto por que o instante existe e na brevidade de sua existência ainda posso encontrar motivos para o sorriso, o encanto, o maravilhamento, o prazer da existência perante o encontrado. Nada fácil de encontrar, mas a cada encontro a dádiva da existência.
Alguém que ainda estende a mão, que dá um bom dia ou boa tarde, achega com um abraço afetuoso, olha no olhar com amizade sincera. Ainda há gente assim que, em gesto de plena humildade, sempre reconhece o outro em qualquer instância ou situação de vida.
Poesias nos canteiros floridos, versos nos pombos que sobrevoam e andejam aos arredores da praça. Um banco solitário tomado de folhas secas trazidas pela ventania. Uma cor outonal que ao invés de entristecer apenas chama à meditação sobre os silêncios que gritam.
Paisagens adiante, pelos arredores, atrás das montanhas, nas vastidões do olhar. Inusitados da vida, nos encontros de cada passo, que sempre anima a alma e o espírito e encoraja cada vez mais a caminhada. Alguma comprovação que muita beleza ainda existe depois da porta e adiante.
Colibris, borboletas, beija-flores, pássaros, existências que vão surgindo após o amanhecer e logo encantam a cada aparição. Num mundo de sofrimento, de violência e de opressão, eis que seres tão pequenos chegando para suplantar as tristezas e as desilusões. Pelos jardins, pelos matos, além da janela, e de repente uma cor ou um canto de fazer renascer.
São tais instantes que fazem alegres e prazerosos os instantes, que chamam canções de paz e de felicidade, que provocam um novo despertar nos espíritos tão combalidos pelas desvalias do mundo e da vida. São como pequenas gotas de sabedoria, são como pequenos salmos na existência, que ainda permitem o prazer pela vida.
Até mesmo a solidão e o silêncio pelas veredas e estradas provocam instantes de intensa meditação. Muitas vezes, em meio ao mato e ao bicho, ao redor da pedra e do grão de aroeira, tem-se o reencontro com a pujança da vida, tudo nascido num meio tão diferente de aquele de cimento e ferro, de grito e pavor.
Uma janela aberta e uma comadre sorridente a acenar a quem passa. Uma velha senhora sentada na sua cadeira de balanço ao entardecer. Um velho senhor sentado no seu tamborete enquanto pinica seu fumo para o cigarro de palha. Um menino que correr descalço atrás de uma bola. Um varal de braços abertos à ventania. Tudo isso é de tamanha e profunda beleza.
A primeira aurora, depois de o galo cantar, num misto de madrugada e luz, já surgindo o cheiro bom do café torrado, do cuscuz de milho ralado já em cima do fogão, do toucinho de porco sendo torrado, do papagaio falador dar bom dia ao existente e ao inexistente. Uma vida remansosa que vai se prolongando tão humilde e tão bela até o entardecer, a boca da noite e o passeio brilhoso da lua grande.
São situações assim que permitem sentir a vida na sua inteireza. E também acreditar que é possível encontrar e avistar a paz e a felicidade nos cotidianos desprezados ou negados por tantos. E assim por que o viver não é somente o sofrimento, mas principalmente o contentamento pela própria existência.
Daí que canto por que o instante existe. Mas em instantes assim. Em instantes de uma paz tão simples, de um viver tão bucólico e belo que nada mais parece ter maior significação. Mas é preciso saber olhar e muito mais ainda querer encontrar tais canções de viver.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário