Quando eu era menino, que vivia dando cangapé no rio Pajeú, via passar todos os dias, no rematar da tarde, um velho corcunda, levando nos ombros, um feixe de capim. E as pessoas diziam que ele era daquele jeito por que carregou Lampião nas costas.
Quando me tornei adolescente, já interessado pelas coisas do cangaço, vasculhei a vida daquele senhor e encontrei, na verdade, Isaias Vieira dos Santos, da fazenda Saco e Xiquexique, em Vila Bella, que nunca levou ninguém nos ombros, apenas adquirira, com a chegada da idade, um mal na coluna, mas que fora, nas fileiras lampiônicas, o cangaceiro Zabelê.
Zabelê
Com a generosa contribuição do amigo Antonio Amaury, que o entrevistou na década de setenta, exatamente em janeiro de 1971, Dona Nega e Seu Benedito - ambos os filhos do saudoso Zabelê, que ainda residem em Serra Talhada, gozam de uma memória maravilhosa, com quem conversei vários dias - colhi mais algumas informações para enriquecer este capítulo.
Antonio Amaury
No pino do sol de meio-dia, no dia 12 de novembro de 1925, um coiteiro saiu de sua casa para levar o de-comer dos cangaceiros que estavam arranchados no curral da fazenda.
A conversa ia e vinha alheia a tudo, sem a mínima chance de alguém importuná-la, era um coito seguro.
O coiteiro Isaias há muito tempo vinha prestando serviços aos cangaceiros: trazendo comida, informações e servia de ponto de apoio entre Lampião e os fornecedores de armas.
Ultimamente Lampião alertava o amigo:
“- Isaias, a macacada tá cabreira que você é da minha confiança, é melhor se juntar à gente em definitivo e viver morando debaixo do céu aberto, na vida da espingarda!”
A resposta justificava:
“- Num é certo, Lampião. Ajudar ao amigo eu posso e não conheço nada pra mim fazer ter medo, quanto mais de macaco. Mas tenho minha família pra dar conta.”
O jovem Isaias, com apenas 29 anos, era casado com Maria Benedita de Lima e tinha os seguintes filhos, do mais velho para o mais novo: Manoel Vieira (Neco Véio), Cecília Vieira, Jovina Vitorino de Lima, Benedito Vieira dos Santos e Joaquim Vieira.
Os quinze homens que compunha o bando naqueles dias estavam gozando de um certo sossego.
Sorrateiramente a volante de Nazaré cercou a casa do protetor, dominou a todos e entraram em interrogatório com seus familiares.
As perguntas eram feitas em tom de voz normal e as respostas eram quase aos gritos, para chamar a atenção dos cangaceiros que estavam no curral com o parente deles.
Desconfiaram do artifício e quando deram fé, olharam pros lados e lá iam os cabras em disparada.
A volante, comandada por Euclídes Flor, Manoel Flor e Davi Jurubeba, abriu fogo, travando forte tiroteio.
A estas alturas Isaías havia recebido uma arma e reforçava a defesa. Bateram em retirada por um buraco na cerca. Resultou em dois cangaceiros sem vida e um ferido, o Cancão.
Da volante morreu Ildefonso de Sousa Ferraz.
A partir deste dia, Isaías Vieira, que não queria ser cangaceiro, mas, como diz o ditado, “quem mexe com fogo acaba se queimando”, não teve alternativa, entrou na peleja, pôs as cartucheiras cruzadas no tórax, quebrou o chapéu na testa e passou a se chamar Zabelê.
No período de pouco mais de um ano que ficou no cangaço, circulava pelos sub grupos de
Jararaca,
Sabino
e Antonio Ferreira, participando bravamente de grandes combates e momentos importantes ao lado de Lampião.
Somente para citar algumas destas passagens:
Do memorável tiroteio da Serra Grande, em Vila Bella, sendo considerado o maior da história do cangaço. Na ocasião eram sessenta cangaceiros enfrentando quase quatrocentos homens, entre militares e civis.
Era um dos que foi a Juazeiro, Ceará, quando Lampião entrou triunfalmente na cidade para receber a patente de capitão do Exército Patriótico pra combater a Coluna Prestes.
Presenciou o tiroteio da Tapera dos Gilo, próximo a Floresta, quando Lampião constatou a covardia do Horácio Grande (Horácio Cavalcanti de Albuquerque, da família Novaes).
Foi assim:
Horácio escreveu uma carta cheia de desaforos para Lampião, mas pondo a assinatura do Manoel Gilo. Na primeira oportunidade Lampião invadiu a fazenda Tapera, travaram um tiroteio, e Manoel Gilo, ao cair prisioneiro por falta de munição para sustentar a brigada por muito tempo, declarou-se inocente, começando a travar um diálogo com os cangaceiros. Mas nas primeiras palavras o Horácio interrompeu a conversação, atirando na cabeça do Manoel Gilo. Naturalmente para não ser revelado que ele era o verdadeiro autor da missiva. Essa morte aconteceu em 26 de agosto de 1926.
Aqui quero abrir um parêntese para registrar que por essa época o cangaceiro João Gavião era um dos braços direito de Lampião. E que essa história vivida na Tapera é muito bem contada por seu sobrinho, nosso amigo Cristóvão Pereira Valões.
Na trágica morte por acidente de Antonio Ferreira, em Poço do Ferro. Zabelê proseava com Lampião na Serra Negra quando este recebeu a notícia trazida por dois positivos.
Estava na linha de frente nas refregas contra os nazarenos e dezenas de outros confrontos pelo sertão de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Alagoas.
Certo dia, no primeiro trimestre de 1927, aconselhado pelos parentes e amigos, Zabelê e o amigo do cangaço João Gavião chegam tranquilamente em Vila Bella e vão procurar o chefe de polícia, e mediante o argumento de que seriam soltos em seguida, pelo fato de terem se entregado de livre e espontânea vontade, aceitaram serem presos.
Qual nada.
João Gavião foi acobertado por alguns membros da família, ganhando logo a liberdade. Mas Zabelê foi julgado e pegou noventa anos de prisão.
Encaminharam para Casa de Detenção no Recife.
Quinze anos depois, em 1942, já findo o cangaço, Agamenon Magalhães, filho de Vila Bella, era o governador do Estado de Pernambuco e veio participar de uma solenidade de inauguração de uma usina de beneficiar algodão na Fazenda Saco, junto ao XiqueXique, quando um certo roceiro com cara de doido, aproximou da comitiva governamental, gritando:
“-Agamenon, solte meu pai! Agamenon, solte meu pai!”
Os presentes afastaram o importuno, que continuava esturrando em apelos.
O Chefe do Executivo perguntou a um dos convidados que estava ao seu lado:
“- Quem é esse? Quem é o pai dele?”
Informaram tratar-se de um débio mental, que atendia pelo apelido de Neco Véio, filho do ex-cangaceiro Zabelê, que cumpria pena na Casa de Detenção, na capital.
Olha, se a gritaria do rapaz surtiu efeito, não se sabe. Mas que duas semanas depois o velho ex-cabra de Lampião estava em Vila Bella, saboreando sua liberdade, isto é um fato.
Isaias Vieira dos Santos nasceu no dia 20 de outubro de 1896 e faleceu no dia 10 de fevereiro de 1978, em Serra Talhada.
Como uma história puxa outra, Neco Véio, perambulava pelas ruas de Serra Talhada pedindo comida aos generosos habitantes sem importunar ninguém. No entanto, quando encontrava um bêbado caído nas calçadas, com seus músculos fortes, jogava nas costas e dizia levá-lo para casa, que não admitia ver uma pessoa nesse estado de tristeza e abandono, dormindo ao relento pelo vício da embriaguez.
A bem da verdade, o coitado que carecesse do gesto de caridade do nosso”franciscano”, seria levado pras areias do rio Pajeú - e lá valia o adágio popular : “cu de bêbado não tem dono.”
Certo dia, um camarada chamado Gera de Mané Lourenço, que morava num quarto de um beco próximo ao rio, estava melando os beiços num boteco bastante afastado de sua residência, quando, por sorte, vê aproximar-se o dito socorro dos caneiros. Finge, então, cair embriagado, dormindo, roncando.
Neco Véio foi se chegando com rodeios, examinou a vítima:
“- Coitado. Vou levar para casa dele. Seus pais devem estar preocupados.”
Arremessou o malandro no lombo e andou no itinerário do lendário Pajeú, subiu e desceu algumas ribanceiras, atravessou a cidade, depois de mais de hora e meia, chega no beco de Tóta de Oscar, onde residia a presa. De repente veio a surpresa.
O gaiato pulou das costas do “algoz”, gargalhando:
“- Obrigado pela carona!”
Coisas do folclore de Serra Talhada.
(Texto do livro LAMPIÃO. NEM HERÓI NEM BANDIDO. A HISTÓRIA, de Anildomá Willans de Souza)
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