*Rangel Alves
da Costa
A canção
cangaceira soa a sertão, ecoa o mundo matuto, ressoa a luta debaixo do sol e da
lua, retine a vida incompreendida de um povo na sua sina de ser e não ser.
Canto cangaceiro que faz lembrar xiquexique varando na pele, macambira grudando
nas vestes, urtiga queimando por todo lugar, mas também a poesia dos amores e
das paixões. Uma canção Lampião, Maria, Sabiá, Adília, Cajazeira, Enedina,
Corisco...
Uma canção cangaceira que se fez no impulso e na vertigem da luta e também depois, a partir das memórias de um tempo de fogo e sangue. E nenhum outro ex-cangaceiro retratou tão bem o canto das caatingas como Antônio dos Santos (batizado como Antônio Alves de Sousa), o Volta Seca. Também compositor, em 1957 ele gravou o LP Cantigas de Lampeão (Todamérica), contendo oito canções, que são as seguintes: Acorda Maria Bonita, A laranjeira, Ia pra missa, Mulher rendeira, Se eu soubesse, Sabino e Lampeão, Escuta donzela, Eu não pensei tão criança.
Na voz de Paulo Roberto, então locutor da Rádio Nacional, uma pequena apresentação antecede cada música. Inicialmente, diz o narrador: “Pouca gente no Brasil conhecerá um baixinho, simpático e de cara fechada, chamado Antônio dos Santos, mas todos já ouviram falar, com certeza, no famoso Volta Seca, o mais jovem dos cangaceiros do grupo de Lampião. Pois bem, nesta gravação estão fixadas, na voz de Volta Seca, e na maior pureza de suas origens, as cantigas do grupo de bandoleiros que por tantos anos assolou o sertão nordestino. Comecemos pela madrugada vermelha, raiando no acampamento”.
“Acorda Maria Bonita, levanta vai fazer o café, que o dia já vem raiando e a polícia já está em pé. Acorda Maria Bonita, levanta vai fazer o café que o dia já vem raiando e a polícia já está em pé....”. Na canção, Volta Seca faz recordar uma cena tida por muitos como realmente acontecida naquela madrugada de 38, na Gruta do Angico, nas beiradas do Velho Chico, quando Maria Bonita levantou e foi buscar água para fazer o café, momento este em que foi baleada, caindo com lata e cuia. “Acorda Maria Bonita, levanta vai fazer o café, que o dia já vem raiando e a polícia já está de pé...”. Na versão, a polícia não apenas já estava em pé como já havia cercado todo o bando. E se o primeiro disparo foi nela, então a água do café nem chegou a se derramar. Antes disso, a morte certeira.
Mais adiante, relata o narrador: “Quando entrou para o bando de Lampião, Antônio dos Santos, um menino de onze anos apenas, passou a ser desde logo Volta Seca, um simples tratador de cavalos, promovido mais tarde, por merecimento, a bandoleiro de fuzil marchetado, facão de três paus e cartucheira cruzada. Agora ele recorda a cantiga em que os cabras faziam uma brincadeira perigosa (mas fariam mesmo?) de mexer com o Capitão Virgulino, o terror do sertão:
“E lá vem Sabino mais Lampião, chapéu de couro e o fuzil na mão. E lá vem Sabino mais Lampião, chapéu quebrado e o fuzil na mão. Lampião diz que é valente, é mentira, é corredor, correu da mata escura que a poeira levantou...”. Eis os versos curtos de “Sabino e Lampeão”.
Diz ainda o narrador: “Segundo Volta Seca, houve tempo em que o grupo de Lampião teve sob suas ordens nada menos de 240 bandoleiros, divididos em grupos estratégicos de ação bem sincronizada, desses muitos cabras sem nome, entregues a vida errante e perigosa de salteadores das caatingas e carrascais, alguns eram sem dúvida poetas e cantores, e ao clarão da lua sertaneja, no intervalo dos combates, suas vozes falavam docemente de mulheres e de amor”.
Então Volta Seca solta sua voz: “Se eu soubesse que eu chorando empato a sua viagem, meus olhos eram dois rios que não te davam passagem. Cabelos pretos anelados, olhos castanhos delicados, quem não ama a cor morena morre cego e não vê nada...”.
Ainda na narrativa do apresentador: “Durante 20 anos Volta Seca pagou na penitenciária da Bahia os pecados cometidos contra a lei dos homens. As contas com Deus ele vai ajustando devagar, penando em alguns empregos dificilmente conseguidos. Vem do seu tempo de cadeia, a lembrança das grades sendo batidas pelo carcereiro em busca de fraturas nas barras de aço. Foi nessa época que, menino de vinte anos apenas, Volta Seca chorou as mágoas da vida nessa cantiga emocionante”. A cantiga é “Eu não pensei que eu tão criança”.
“Eu não pensei que um dia tão criança, na flor da infância padecer assim, ainda te vejo em braços de outro, arrependida chorando por mim. Ela chegou bem juntinho a mim, ela pediu meu coração eu dei, meu peito ao dia em nosso amor queimava, banhado em lágrima em teus pés jurei...”.
E também a versão autêntica de Mulher Rendeira: “Olê mulé rendera, olé mulé rendá, e a pequena vai no bolso e maior vai no borná. Se chorar por mim não fica, só seu eu não pude levar. O fuzil de Lampião tem cinco laços de fita, no lugar que ele habita não falta moça bonita...”.
Quem é aficionado pela história do cangaço não há como deixar de se comover ante tal cancioneiro. A memória viaja, segue vereda, se depara com aqueles sertões tão hostis e tão singelos para uma canção debaixo da lua. Até eu, até eu se soubesse que chorando empatava a sua viagem...
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário