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quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

UM SERTÃO QUE ERA (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa
Rangel Alves da Costa

UM SERTÃO QUE ERA
Lá pelos idos de 1972, sob os auspícios da Superintendência do Vale do São Francisco, órgão ligado ao Ministério do Interior, o sociólogo norte-americano Donald Pierson publicou, em três tomos, uma obra magistralmente abrangente, denominada de “O Homem no Vale do São Francisco”.
Talvez com as exceções de Euclides da Cunha e seu estudo-reportagem sobre Canudos, Gilberto Freyre e sua análise sobre o ciclo do engenho e as relações sociais dele emergentes, e ainda Darcy Ribeiro e sua sociologia indigenista, coincidentemente são nomes norte-americanos aqueles que melhor trabalharam aspectos primordiais da história cultural e antropo-sociológica do Brasil, tais como o próprio Donald Pierson e o seu estudo sobre o homem e a vida ribeirinha, e Billy Jaynes Chandler, com a sua fundamental obra sobre Lampião e o cangaço. 
Ao iniciar o estudo sobre a gente do vale, sertaneja na sua grande maioria, Pierson diz que o sertanejo é tenaz, sóbrio, resistente, acostumado a lutar contra a natureza, enfrentar a seca e as inundações e vencer caatingas ressequidas para salvar os animais. E citando Geraldo Rocha (“O Rio São Francisco”), afirma ainda que o sertanejo faz parte de uma raça forte, uma perfeita encarnação do rijo tipo bandeirante que devassou os ínvios sertões, repeliu os elementos alienígenas e fundou neste hemisfério uma grande nação.
Pois bem. As características citadas acima condizem muito bem com o autêntico sertanejo. São verdadeiras e resumem muito bem o que Euclides da Cunha também não deixaria de observar: o sertanejo é antes de tudo um forte. Contudo, essa espécie de homem valente e destemido, apto a lutar e vencer os desafios da natureza e do próprio meio pela sobrevivência, infelizmente é um tipo praticamente em extinção. Não que a valentia e força do sertanejo não perdurem, mas o progresso o fez mais arredio e até preguiçoso.
É de triste percepção, mas a verdade é que o sertanejo acostumou demais a não mais ter que ir à luta para garantir o sustento próprio e dos seus. Antigamente, os livros comprovam e os relatos também, o homem saía de casa ainda com manhã escurecida, de enxada na mão ou espingarda no ombro, bornal, cantil, um pequeno saco com farinha e rapadura ou um taco de carne seca, e percorria as vastidões infindas para caçar um tatu, um peba, um teiú, matar um veado ou uma codorna, de modo a aplacar a fome dos pequeninos.
Quando saía com enxada nas costas não levava consigo espaço algum para vaidades. Ora, sabia que era com aquele instrumento de trabalho que seu pai e toda uma geração familiar trabalharam de sol a sol, roçando, remexendo terra, coivarando para ter o de comer em casa. E por não ter vaidade se submetia a ficar o dia inteirinho por cima da terra esturricada ou da mataria perigosa para depois se orgulhar do vintém.
Não somente de enxada no ombro, mas também com machado, enxadeco, facão, estrovenga e todo tipo de instrumento para trabalhar a terra. Infelizmente quase sempre terra dos outros, dos mais aquinhoados naquela imensidão de pobreza e aflição. Os ricos, os latifundiários, os coronéis, estes dificilmente apareciam, apenas mandando seus capatazes contratarem os valentes para gerar riqueza no lastro da mais revoltante pobreza. Se não gostasse de trabalhar na terra tinha ainda a opção de colocar a arma na cintura e viver de mando do ricaço da cidade grande. Mas isso era para outro tipo de gente.
Nos tempos idos, como bem assegura Pierson, o sertanejo tinha ainda a opção de plantar dentro dos latifúndios, sob arrendamento de uma pequena área ou repassando para o proprietário parte da produção. Quando possuíam pequenos trechos de terras, ou terrenos como costumam denominar, era praticamente para a lavoura de subsistência. Dela é que se retirava, ainda que coisa pouca, o milho, o feijão de corda, a melancia, a abóbora. Nela pastava ainda a cabeça de gado acaso existente, o cavalo, o jegue, o cabrito.
Numa época distante, muitos eram os vaqueiros que tangiam bois pelas estradas cheias de tocaias e de perigos dos sertões. Gado dos outros, rebanho entregue à sua valentia para tanger muitas vezes durante dias, seguia firme amando aquilo que não lhe pertencia, num tipo de alienação que o fazia tão próximo ao seu mundo – mundo de terra, de bicho e de mato -, mas sem que nada daquela riqueza pudesse usufruir.
Aqueles sertanejos autênticos, arredios às sedes municipais, Pierson denomina de veredeiros. Estes eram os moradores das veredas das caatingas, geralmente analfabetos e extremamente pobres, vivendo da lavoura de subsistência ou como vaqueiros empregados pelos grandes senhores de terra. Cita ainda os geralistas, que eram os sertanejos que se deslocavam para determinadas localidades no intuito de caçar ou trabalhar durante muitos dias e que, por isso mesmo, construíam pequenos barracos nos descampados.
Entretanto, como se sabe, hoje a situação do sertão e do sertanejo mudou como do vinho para a água. O sertão praticamente só existe como localização geográfica, como idealismo romântico e saudosista ou como objeto de estudo, e o sertanejo apenas como uma figura em extinção. Dificilmente ainda se encontra um sertanejo que não tenha sido envolvido pelos modismos do progresso, não tenha aderido às mudanças tão desconcertantes e não tenha deixado de lado seus hábitos, costumes e tradições.
O sertão foi tomado pelas bandeiras vermelhas dos imprestáveis, dos preguiçosos, dos perigosos chamados sem-terra. Uma corja, matula, verdadeira súcia, chegou se assentando pelas rodagens e depois começou a invadir fazendas, destruir tudo, tornando o sertão num verdadeiro caos, numa terra sem dono e sem lei. Hoje o que mais se vê são traficantes, ladrões e preguiçosos se arvorando de que fazem parte dos sem-terra. E fazem mesmo, pois este maldito movimento é um verdadeiro celeiro de tudo que é mais abominável na vida do sertão.
Por outro lado, os programas de assistência-eleitoreira que chegaram naquelas distâncias de pessoas que ainda trabalhavam para alimentar os seus, tornaram os sertanejos nuns preguiçosos contumazes, numa raça que não dá nem mais um prego em estopa. Vivendo à moda do Jeca Tatu, ficam pelas esquinas falando da vida alheia e dali só saem para ir buscar a cesta básica de alimento, o leite já ensacado, o dinheiro no banco. E toda essa infame preguiça fomentada pelo governo.
É lamentável, é triste, mas assim é que é. E ouso dizer que atualmente o sertanejo é antes de tudo um homem que encontrou na preguiça o conforto para viver bem.
Rangel Alves da Costa
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com

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