Por: Rangel Alves da Costa
O CORONÉ É BONZIM, DISSE O JAGUNÇO SANGRANDO
Famoso por sua incontrolável maldade, o velho coronel de patente forjada na influência política mandonista, era temido pelos da mesma hierarquia tirânica e odiado por todos da região, principalmente aqueles que para sobreviver tinham de lamber da sua pedra de sal e beijar suas botas sempre sujas de esterco. Sem falar na espora pontiaguda na botina direita, acostumada a ferir lombo de animal e mais que costumeira no fazer sangrar pele de gente.
Coronel Nanô Quaderna era assim, gente ruim, bicho nojento e malvado, daqueles senhores dos sertões que se tornam poderosos desfazendo dos outros, roubando-lhes pedaço de terra e quintal, amedrontando e mandando açoitar para mostrar sua força. Dizem que até os de sua laia, também coronéis de terno branco e chapelão, charuto no canto da boca e mãos sempre sujas de sangue, achavam um tanto exageradas as atrocidades cometidas pelo rival.
Rival, inimigo. Inimigo sim, pois o homem era hostil a tudo mundo, talvez até a si mesmo. E quando se tratava de gente de sua mesma estirpe, senhores do autoritarismo, potestades de latifúndio e jagunçada, serviçais e escravos, de curral eleitoral e influência política, então era que a inimizade se avolumava e se acirravam ainda mais os ódios, os desejos de vingança e as ameaças de parte a parte.
E toda malcheirosa coronelada sabia que havia sido o perigoso Nanô Quaderna quem tinha mandado tocaiar e tirar as tripas do Coronel Ponciano. Sabia, mas não dizia nada com receio de hora pra outra estar envolvida numa guerra sangrenta que ninguém jamais imaginaria como seria o final. Contudo, se pareciam evitar um confronto aberto isto não significava que os também traiçoeiros coronéis não vivessem planejando a morte do desafeto.
De tocaia não adiantava. Ora, o homem não montava num lombo de cavalo sem ter ao seu lado uma verdadeira cavalhada de pistoleiro, gente da pior qualidade, matador sanguinolento, esvaziando o mosquetão até em humilde trabalhador. Mas tudo a mando, no pago pra fazer, serviço encomendado num bater de dedo. Mas também pelo medo que o coronel tão bem sabia incutir até mesmo nos mais terríveis jagunços.
Desse modo, no sentido de arranjar um jeito de dar fim ao velho desafeto sem ter de jogar o próprio nome no campo de batalha, numa cruel guerra nas terras áridas sertanejas do Mundaréu, foi que o Coronel Querêncio mandou convidar até seu casarão o não menos afamado Coronel Licurgo Badaró. Este de raiz coronelista já lá pras bandas cacaueiras dos ilhéus e itabunas, parentes daqueles senhores tão bem retratados por um escritor baiano muito amado.
A conversa foi curta e grossa e logo decidiram que só tinham um jeito a dar: insuflar a jagunçada do Coronel Nanô contra o seu próprio algoz, aquele arrogante impiedoso cujo maior prazer era mandar o cabra matador deixar a arma na porta de entrada e depois vim ficar de joelhos para ser esbofeteado, marcado com ferro em brasa, chutado nos fundilhos, marcado pela espora da botina direita do homem.
Com anuência e dinheiro de mais outros interessados, gente que quando menos tinha era dono de quatro latifúndios pela região, escolheram o jagunço mais antigo e experiente do Coronel Querêncio, um cabra com mais de trinta tocaias marcadas em buracos no couro da cartucheira. Jogaram dinheiro na sua mão e disseram o que tinha a fazer. E nada mais era do que convencer a jagunçada do outro a se rebelar e fazer o seu tirano de vítima.
Verdade é que jagunço de um coronel era forçado a não gostar de jagunço de outro coronel. Sendo pago e mantido para a ira e a inimizade, então seria mais fácil o grupo de um partir com tudo para cima do outro, se acaso as desavenças chamassem para o confronto na bala. Mas nem tudo era assim no meio do mato, nas tocaias, nos encontros às escondidas. Inimigos na boca dos chefes, mas companheiros de sofrimento e sina, amigos de conversa e peleja.
E eis que o jagunço escolhido para a missão logo procurou manter contato com o chefe da jagunçada do Coronel Nanô. O homem era cego de um olho, tinha o corpo todo varado de bala, mas não havia em toda a região um cabra da peste mais valente e de tiro certeiro. Por isso era a menina dos olhos do coronel, mas infelizmente também aquele escolhido para sofrer as agruras quando o seu dono simplesmente queria chicotear alguém. Nessa brincadeira sem graça um dia acabou vazando o olho do seu verdadeiro escravo.
Marcado o encontro no meio do mato, o jagunço enviado abriu a garrafa de pinga e logo ofereceu ao amigo o primeiro gole. Talagada boa, repetida seguidamente. E não demorou muito para ficar sabendo que o Coronel Nanô estava cada vez pior, mais arrogante e violento, agora cismado em mandar dar tiro no pé de quem lhe chegasse perto e não começasse a alisar o seu paletó encardido para tirar o pó. Depois tinha de beijar a bota.
Mas era isso mesmo que o jagunço queria ouvir. Certamente os homens estavam descontentes demais e então seria mais fácil de insuflar neles o ódio, a subversão, a ira contra o seu dono. Então foi logo botando um maço de notas na mão do outro e dizendo o que ele tinha a fazer para inflamar a revolta. Mas para seu espanto, o pistoleiro recuou, puxou a arma da cintura e com ela apontada disse:
“Mai nunca hei de aceitar nem de fazer isso com meu coroné de jeito manera. Ruim ou bom, vosmicê tem o seu e eu tenho o meu. Tô com uma perna ainda sangrando dum tiro de raspão que ele me deu, mai ele é bonzim. E num adianta acabar com um se os outro vão continuar. Vosmicê vai continuar ganhando do seu coroné, e eu vou ser jagunço de quem?”.
Verdade é que o Coronel Nanô Quaderna morreu de velhice, resmungando atrocidades. Os outros coronéis também. Só não morreram os jagunços. Estes mudaram de nome, de estratégias, mas continuam por lá. Continuam por aí... E provado está que a ignorância é mãe de toda incivilidade.
Rangel Alves da Costa*
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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