“DIÁRIO DA
MANHA” – 16/01/1927 - ENDEMIA SOCIAL
Por Alfeu Rosas
Quem traçar, por minguadas que sejam, impressões do nordeste brasileiro, não se pode furtar à apreciação da praga insidiosa do “cangaceirismo”.
Este fenômeno de criminalidade atávica tem sido mal estudado por indivíduos que fazem, momentaneamente, da censura uma arma política contra os seus desafetos.
Do mesmo modo, os governos quase nunca procuram se inteirar dos males físicos ou psíquicos dos seus administrando nem lhes curar tais enfermidades. A preocupação do mando duradouro, nesta feliz temporariedade do Regime; a noção do governo patriarcal que cuida, afetuosamente, dos membros da família, das propinas gostosas e das prebendas de vulto, vedam a certos dirigentes o trato desses problemas capitais.
Preliminarmente – o sertão é conhecido pela parcimônia, ou melhor, pelo emprego
inadequado da sua justiça, havendo, com pequenas exceções, dois pesos e duas
medidas para o mesmo caso.
A Natureza rude do meio ambiente forra o animal das suas impiedades características. O homem é, ali, um revoltado; mas que, pensando nos momentos de fartura, nas invernias paradisíacas, que fazem esquecer as estiagens diabólicas das grandes secas, se apega ao torrão natal, só emigrando quando se torna o único sobrevivente dos arredores. Já de si temerário e impulsivo, vibrando ao rudimentarismo dos seus instintos de bárbaro, o sertanejo não se identificou ainda com a noção de justiça dos civilizados. E, como a deusa vendada nem sempre é cega para não ver quem fere, mas muitas vezes não se vê para não ferir o afeiçoado da política, essa desigualdade mais acirra ainda a odiosidade dos vaqueanos.
Tenho em mente dois casos típicos de chefes de bando do Nordeste. Estes, como os de Mussolini, na Itália; de Romanetti, na Córsega; de Mandrin, na França; de Roob Hood, na Inglaterra; dos narrados por Schiller, na Alemanha, foram o consequente de injustiçamentos.
Deixo de citar, nominalmente, aqueles nordestinos para não aumentar a triste celebridade desses heróis do trabuco. Essas duas criaturas, tornadas malévolas, eram pacatos lavradores. Certo dia assassinaram-lhes os pais. As autoridades da região, interessadas no apadrinhamento dos matadores, não tomaram a menor das providências para a punição dos delinquentes. Eis aceso o facho da vingança, que dentre os próprios homens cultos também se inflama. Cometeram, em represália, o primeiro crime de sangue.
Refugiaram-se nas selvas. Repeliram os perseguidores. Constituíram o seu bando sinistro. A sociedade tornou-se sua inimiga mortal. Estavam, assim, na defensiva.
Outro motivo – o do acoitamento de criminosos pelos proprietários de latifúndios. Estes o fazem de indústria. Têm nos trabalhadores recrutados na leva dos criminosos os verdadeiros servos da gleba, que não reclamam, que não se insurgem, preferindo, razoavelmente, o eito, de sol a sol, às grades da enxovia pestilencial. E o patrão asilador tem naqueles indivíduos prestimosos mandatários para todas as suas vinganças.
Essas criaturas, assim acolhidas, no entretanto, estão aptas a cometer o segundo, senão o terceiro crime.
Fugirão à primeira oportunidade que se lhes apresentar para o seu ingresso no bando salteador.
Há fazendeiros, também, que se dão ao esporte de manter e adestrar um pequeno exército de bandoleiros. Muitos dos quais se acham, hoje, operando sob a sua responsabilidade, nos sertões do Nordeste, fizeram a sua aprendizagem na Escola de Guerra de certos proprietários. Como querem os teoristas que, com essa tolerância e com esse incentivo dos senhores de grandes latifúndios, se extirpe o “cangaceirismo”?
Já se disse que o problema era demasiadamente complexo. E se não exagerou nessa afirmação.
Afora as populações pobres que protegem e facilitam a fuga desses delinquentes, pois são por estes beneficiadas, há ainda os protetores forçados desses salteadores. São os pequenos proprietários que não dispõem de armas suficientes para repelir a invasão. E se a polícia não lhes pode montar guarda à fazenda, com a continuidade necessária à sua segurança, como denunciar ou negar abrigo ao bando criminoso, se este pode, de supetão, voltar à carga?
Na generalidade os governos perseguem essa forma de criminalidade endêmica, à sua erupção; mas, indiretamente, a fomentam.
Consentem na prática de injustiça pelos seus mandatários. Sabem quais são os grandes asiladores de delinquentes. Conhecem os que guardam dentro das muralhas dos seus castelos os peões do “cangaço”. Mas, escravizados à politicalha do partido a que pertencem, não querendo perder as propinas decorrentes do lugar de destaque à mesa do banquete orçamentário, cruzam os braços e, camarariamente, discreteiam com os autores intelectuais do crime.
Preferem, assim, curar da moléstia, quando podiam usar preventivamente, de meios profiláticos que evitassem o surto ameaçador. Eis o que penso sobre o chamado “cangaceirismo”. Este se não vencerá à ação das brigadas policiais.
O seu foco continua inexpurgado. Manter-se-á, logicamente, enquanto se não debelar, sem considerações pessoais ou partidárias, a causa eficiente do mal.
São esses, pois, os motivos primários que congregam os grupos criminosos no Brasil.
Cabanos, balaios, chimangos, jagunços ou cangaceiros são variantes da mesma criminalidade atávica que se perpetua aos incentivos de poderosos, do sentimentalismo doentio e dos injustiçamentos.
Alfeu Rosas
Fonte: facebook
Página: Do pesquisador do cangaço Antônio
Corrêa SobrinhoCangaçofilia
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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