Material sobre
Lucas da Feira escrito em 1907 por Guimarães Covas, que foi delegado nesta
cidade [Feira de Santana] no final do século XIX e início do século XX. A
grafia está conforme o original:
(...)
comecemos a narração dos factos principaes da vida de Lucas e de sua quadrilha.
A 18 de Outubro de 1807, nasceu Lucas Evangelista, na fazenda “Sacco do Limão”, do município da Feira de Sant’Anna.
Produziram o
temível facínora os africanos Ignácio e Maria.
Captivo de nascimento, Lucas pertenceu, a princípio, a D. Anna Pereira do Lage, e por fallecimento desta senhora passou ao domínio do Padre José Alves Franco, vindo mais tarde a caber, em nova partilha, ao pae deste sacerdote, Alferos José Alves Franco.
Ao tempo em
que se deu o traspasse do maldicto escravo ao novo senhorio, elle já havia
fugido para as mattas da Feira, mais ou menos em meiados de 1828.
Uma vez no goso daquella conquista de liberdade, a índole perversa do bandido entrou, desde logo, em cogitações diabólicas de que resultou a organisação da célebre quadrilha de salteadores, da qual faziam parte os escravos também fugidos, de nomes: Flaviano, Nicolau, Bernardino, Januário, José e Joaquim.
Inspirada nos sentimentos sanguíneos do bandido que a chefiava, essa malta de terríveis assassinos e ladrões commetteu, livremente, toda sorte de crimes nas estradas do famoso município, até o dia 28 de Janeiro de 1848, data da prisão do célebre salteador chefe da quadrilha.
Para que o
leitor fique conhecendo a série de crimes praticados por Lucas e seus cúmplices,
esses bandidos que trouxeram, por 20 annos, a população da Feira em constante
sobresalto, vamos transcrever o interrogatório a que foi submettido no tribunal
do jury o chefe desses miseráveis.
O Juiz de
Direito da Comarca e Presidente do julgamento era o Dr. Innocencio Marques de
Araújo Góes que fez do seguinte modo o interrogatório ao réu:
- Perguntado o
seu nome, naturalidade, edade e profissão?
- Respondeu
chamar-se Lucas, ter sido escravo do fallecido Padre José Alves, nascido na fazenda do “Sacco do Limão”, frequezia de São José maior de 35 annos
e que era empregado no serviço da lavoura e carpina.
-
Perguntou-lhe se sabe o motivo por eu foi preso e o que vem fazer neste
tribunal?
- Respondeu
que tendo fugido da companhia de seu senhor há quase dezoito annos e commettido
em todo esse tempo algumas acções más, pelo que tem sido processado pela
Justiça, pensa ter sido preso para dar contas do seu procedimento e julgado
como merece.
- Perguntou em
que empregava-se durante tanto tempo que viveu nas mattas, como sustentava-se e
obtinha aquillo de que carecia?
- Respondeu
que até certo tempo matava seus bichinhos para sustentar-se, e pedia algumas
coisas que precisava a pessoas de seu conhecimento e amisade, mas que passando
a ser perseguido pela Justiça, vendo-se desesperado, como ainda se acha,
começou a offender e fazer mal ao povo.
- Perguntado
quaes os conhecidos e amigos que lhe devam objectos que elle pedia?
- Respondeu
que não tinha empenho em declarar nomes, que por estar perdido não queria
perder outros christãos que lhe haviam feito benefícios.
- Perguntado
se esses amigos e conhecidos a que se refere lhe forneciam também algumas
porções de polvora e de chumbo e algumas armas?
- Respondeu
que há mais de quatro annos tomara na estrada um barril de pólvora e uma grande
porção de chumbo de que usou até agora.
-
Perguntou-lhe onde e como obtinha os mesmos objetos, antes dessa tomada de que
fala?
- Respondeu
que nas estradas tomava a uns á força e outros voluntariamente lhe davam, e que
também algumas vezes comprava, não declarando seus nomes, porque, já disse, não
queria perder outros.
-
Perguntou-lhe mais como offendia geralmente ao povo, segundo disse, quando
affirma que só queria offender àquelles que o perseguiam e o insultavam nas
estradas?
- Respondeu que somente maltratava e offendia aquelles de quem receiava que o atraiçoassem ou perseguissem por qualquer forma.
- Perguntado
si tem noticia dos tiros dados no guarda policial Joaquim Romão e Manoel
Antonio Leite, resultando a morte deste, que também foi roubado?
- Respondeu
negativamente.
-
Perguntou-lhe si não tem noticia de Antonio Correia Pessoa, que foi morto e
roubado em sua própria casa?
— Respondeu saber desse facto, e que foram autores elle respondente e seus companheiros, Nicoláo, Joaquim e Januário e que assim procederam porque esse Pessoa os perseguia e que já lhes havia dado dois tiros.
- Perguntado
como foi morto esse homem?
- Respondeu
que fora com pancadas e couces.
-
Perguntou-lhe si tinha lembrança da morte de Ventura Ferreira de Oliveira, na
Lagoa do Peixe?
- Respondeu
que fora morto por seu camarada Nicolau, estando presente elle interrogado.
-
Perguntou-lhe si tem noticia das mortes de Alexandre Felippe de Lima e de José
Francisco Caboclo e quaes os autores?
- Disse,
quanto à primeira, nada sabe e quanto á segunda foi elle interrogado quem
matou, porque esse José Francisco recusava-se a pagar-lhe um dinheiro e também
o queria matar.
- Perguntou si
tinha noticia da morte do Antonio, escravo de José Antonio da Silva, que teve
lugar na fazenda Sobradinho, próximo a esta villa?
- Respondeu
que passando elle e alguns companheiros pela estrada, o dito Silva e outros lhe
dirigiram insultos, pelo que elle respondente para desaffrontar se dera uns
tiros contra aquelles, de um dos quaes resultou a morte do crioulinho.
- Perguntou
mais si tem noticia da morte de Antonio Bonifácio e quem foi o autor?
- Respondeu
ter sido elle interrogado, porque esse Bonifácio andava o preseguindo, pelo que
o matou antes que lhe dizesse o mesmo.
- Perguntou si
tem noticia da morte de Theotonio, escravo de Victorino Alves e qual o motivo?
Respondeu que estando elle e alguns companheiros procurando a vida, o seu
camarada de nome Joaquim matara e dito Theotonio.
- Perguntado
si também tem noticia da morte de Alexandrina de tal, escrava de Manoel
Joaquim?
- Respondeu
ter sido elle quem a matou na occasião da morte do seu companheiro Nicoláo.
- Perguntou-lhe mais si tem noticia da morte de Manoel Lima, que também foi roubado, em uma das estradas desta villa?
- Respondeu
negativamente.
-
Perguntou-lhe si tem noticia da facada e pancadas que soffreu João Gomes de
Oliveira, levando as também duas filhas?
- Respondeu
que só lhe deu pancadass com o couce da arma porue elle sabia do rancho em que
se escondiam, e que as filhas foram somente conduzidas até a beira do rio
Jachype onde elle as deixou.
- Perguntou
mais se tem notícia da morte de João Vicente e qual o motivo?
- Respondeu
que esse João Vicente também sabia do seu rancho, e tendo dado lá uma tropa,
entendeu que foi elle o denunciante, por isso o matou.
-
Perguntou-lhe mais si também tem noticia da morte de Joaquim Romão?
- Respondeu
negativamente.
-
Perguntou-lhe mais si sabe da morte feita em João de tal, morador no lugar
denominado Papagaio?
- Respondeu
ter sido o autor, porque elle sabia, e effectivamente mostrou, o logar em que
tinha o seu rancho e de seus companheiros.
-
Perguntou-lhe também si fora o autor da morte de Alexandre de tal, filho de
Antonio Felippe?
- Respondeu
que elle e seu companheiro Nicoláo fora os autores, porque os ditos Alexandre o
seu pai Antonio Felippe constantemente os perseguiam.
-
Perguntou-lhe si sabe quem deu as cutiladas no crioulo Manoel João?
- Respondeu
que foram elle e seu companheiro Nicoláo, porque receiavam desse individuo.
-
Perguntou-lhe sei tem noticia dos tiros dados no capitão Gregório do
Nascimento?
- Respondeu
que fora elle e seus companheiros, porque Gregório também os perseguia.
- Perguntou se
tem noticia dos tiros dado em Manoel das Chagas e qual o motivo?
- Respondeu
que foi elle por ver que esse homem merecia e assim quis quebrar-lhe as pernas.
-
Perguntou-lhe mais, porque?
- Respondeu
que por ter promettido pical-o em postas, assim elle respondente quis
ensinal-o.
- Perguntou si
tem noticia do roubo feito a José Dionysio, morador nas Campas?
- Respondeu que fora feito por seus companheiros Nicolau e Manoel, estando elle também presente.
- Perguntou o
que roubaram nessa occasião?
- Respondeu
que três colheres de prata.
-
Perguntou-lhe si teve noticia do roubo feito a Vicente de tal, das Campas?
- Respondeu
que fora elle o autor do roubo, tendo somente roubado uma calça e uma jaqueta.
- Perguntou
mais si tem noticia dos cinco tiros dados em Gregório José de Almeida, no
caminho de São José?
- Respondeu
que foram dados por elle e seus companheiros, por um insulto que o dito lhes
fizera.
- Perguntou si
além dessas mortes e furtos sobre que tem respondido, lembra-se de ter feito
mais alguma cousa?
- Respondeu
que perante o Juiz Municipal já fora também conduzido e interrogado sobre
alguns outros factos, como fosse o roubo da egreja das Brotas, e os tiros no
Alferes Agostinho, em Joaquim Ferreira da costa e outros feitos a um homem
chamado Sampaio Pinheiro e o vaqueiro de Aprigio Pires Gomes.
-
Perguntou-lhe mais si durante a estada nos matos raptou algumas mulheres e sei
tem lembrança do numero?
- Respondeu
ter com effeito raptado algumas em numero de cinco ou seis, tendo, porém,
outras ido voluntariamente para sua companhia.
- Perguntou si
não matou alguma destas raparigas que levou para a sua companhia?
- Respondeu
negativamente.
- Perguntou se
em algum encontro, que elle respondente teve com pessoas que o perseguiam,
levou alguns tiros e si tem lembrança do numero?
- Respondeu
ter contado até cem e que felizmente escapou, tendo levado outros muitos que
dahi em diante deixou de contar.
- Perguntou se
não guardou em alguma parte ou em poder de qualquer pessoa dinheiro e outros
objectos que tivesse tomado nas estradas?
- Respondeu
que tudo quanto tinha era somente alguma roupa e outras miudezas que existiam
no rancho em que foi preso, nada tendo guardado em parte alguma.
E nada mais
respondeu nem lhe foi perguntado.
Por esta forma
houve o Juiz por findo este interrogatório, mandando lavrar este termo, em que
assignou com o curador do réo, depois de lido por mim Manoel José de Araújo
Patrício, escrivão que escrivi - Innocencio Marques de Araújo Góes - O curador,
Manoel Pereira de Azevedo.
Do
interrogatório que acabamos de transcrever, vê-se quanto foi flagellada a Feira
de Sant’Anna, principalmente depois do anno de 1840, quando o celebre salteador
organisou sua quadrilha.
A prisão de
Lucas teve os seus prodromos a 23 de Janeiro de 1848.
Narremos o
facto que deve ter alguma importância para os nossos leitores.
Achando-se foragido o official de justiça do fórum feirense, de nome José Pereira Cazumbá, porque praticara um homicídio, pensou de obter o indulto, offerecendo-se para prender o salteador Lucas.
Acceita a proposta pelas autoridades com o accrescimo de que o governo compromettia-se a dar a Cazumbá, além do indulto mais quatro contos em dinheiro, foram affixados editaes neste sentido nos lugares mais públicos da Feira e publicados pela imprensa.
Na capella de N. S. dos Humildes, três legoas ao Sul da Feira de Sant’Anna, realisou-se uma festa, e para ella dirigiu se Lucas em procura, talvez, de alguma presa.
Cazumbá,
acompanhado de Manoel Gomes, montou guarda no lugar chamado Pedra do Descanso,
por onde, fatalmente, Lucas teria que passar de volta da festa.
Na
segunda-feira 24, cerca de 6 horas da manhã, surge o salteador felizmente
desacompanhado.
Manoel Gomes
esmorece e treme, caindo-lhe a arma das mãos; mas na emboscada detona uma outra
arma, cujo projectil aloja se certeiro no braço do salteador - foi a arma de
Cazumbá, o official de justiça pronunciado que necessitava de liberdade.
Passada a
primeira impressão, causada pelo susto de que o salteador não fosse altacal-os
em seu esconderijo, sahiram elles e foram examinar o lugar onde estava Lucas
quando recebeu o tiro.
O salteador
havia de facto desapparecido, mas ali se achava o clavinote de seu uso e um
rasteiro de sangue pela estrada afora.
Nessas
averiguações estavam os dois, Cazumbá e Gomes, quando por ali passou o dr.
Leovegildo de Amorim Filgueiras, juiz municipal e delegado do Termo,
acompanhado de outros para effectuarem uma medição de terás.
Sciente de
tudo, a dita autoridade poz a força publica em movimento para a captura do
bandido, cujo paradeiro haviam de descobrir pelos vestígios de sangue, deixados
na estrada e no mato.
Infelizmente
assim não aconteceu porque a força de policia, os Inspectores de Quarteirão e o
povo que os acompanhava, andaram todo dia e nos seguintes debalde, porque os
vestígios desappareceram.
Quando o
desanimo já começava a invadir aquelle troço de homens ávidos pela prisão do
malvado crioulo, surgiu entre elles uma lembrança providencial.
Benedicto da
Tapera, suspeitado como um de seus confidentes e intermediários, havia de lhes
dizer qualquer cousa.
Sem demora
seguiram para a casa do mesmo e gratificaram-n’o, ameaçando-o ao mesmo tempo de
matal-o se não disesse onde estava Lucas.
Nestas
condições, Benedicto confessou o paradeiro do salteador.
Na manha do
dia 28 de Janeiro, o bandido, que tanto aterrorisou as populações daquella zona
no período de vinte annos, estava entregue á justiça para responder por tantos
crimes que praticara.
Condemnado à
força pelo tribunal do Jury que se reuniu a 1º de Março do mesmo anno, foi
executado a 26 de Setembro de 1849, no Campo do Gado, em presença de uma
multidão que exultava pelo goso da tranqüilidade aspirada com o
desapparecimento do bandido que a ameaçara por tantos annos.
Às 10 horas da
manhã, daquelle dia, foi o salteador retirado da prisão e revestido de uma
túnica branca.
Posto o baraço
ao pescoço, em cuja extremidade segurava o carrasco, começou a percorrer as
ruas da Feira, ladeado por dois franciscanos e o vigário da Freguezia padre
José Tavares da Silva, e acompanhado das autoridades locaes, força publica e
enorme massa popular da villa e de muitos logares que viera para esse fim.
De espaço a
espaço paravam, os franciscanos resavam, os sinos dobravam e o official de justiça
Marcellino Marques da Silva apregoava em altas vozes a morte do condemnado.
Ao meio dia chegou o cortejo fúnebre ao Campo do Gado, lugar em que estava armado o instrumento do supplicio.
Guindado ao
plano superior da força, acompanhado de seu carrasco, Joaquim Correia, rapaz
branco de 20 annos de edade, que espontaneamente se offerecera para aquelle
reprovável mister, por ter o réprobo assassinado barbaramente seu pai Francisco
Correia, elle, Lucas, acenando com a mão que lhe restava, pois a outra tinha
sido operada em conseqüência dos tiros recebidos quando foi preso, disse:
“Espere!”
Divagou o
olhar acovardado por aquella multidão, e com voz fraca e arrastada declinou
estas ultimas palavras:
“Sei que
muitos dentre vós estão contentes de me verem assim acabar; eu peço perdão a
Deus e a todos que perdoem”.
Dito isto o
carrasco atira-o ao espaço: desce pela corda; arrima-se aos hombro do
condemnado e mantém-lhe a bocca fechada. Os membros do suppliciado
controhem-se, seguindo-se a mieção e o exhalar do ultimo suspiro.
Morto! Foi o brado uniforme, abafado e fúnebre sahido dos lábios da multidão.
Effectivamente
o condemnado tornara-se cadáver; a Feira exaltava pela volta de sua
tranqüilidade; a justiça desafrontara-se, e a sociedade; quanto a nós que
escrevemos estas linhas desapaixonadamente, devia ter se enlutado por esse
assassinato cobarde praticado na pessoa de um facínora, é verdade, mas no
entanto criminoso porque a sociedade não soube educal-o.
Obs: A imagem
abaixo é meramente ilustrativa, cuja a fonte não está identificada, porém a
assinatura do autor encontra-se inserida na mesma.
Transcrição:
Geraldo Antônio de Souza Júnior (Administrador)
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