Por Ivone Boechat
Quando nasci,
tive enxoval todo azul e o quarto decorado com figura dos heróis favoritos da
época. Parecia um conto de fadas. Toalhas, fraldas, lençóis e fronhas,
toalhinhas tinham monograma com iniciais do nome escolhido: Júnior. Após a
gestação, acompanhada pelos melhores médicos, cheguei amparado e mimado pela
família inteira. Mesmo inconsciente do tamanho da festa, fui crescendo,
dominando o espaço, invadindo o território dos outros. Eu era o centro de tudo.
Ao perceber a
importância que me davam, muito superior à necessária, comecei a fazer todo
tipo de chantagem para ter mais, lucrar mais. Cada erro meu era motivo de briga
na família, porque a maioria ficava do meu lado, inclusive, meus pais. Quem
ousasse me criticar ou dar um conselho era riscado do mapa.
Na
adolescência, com o vigor de um corpo jovem, saudável e bonito, abusei do
excesso de mordomias. Não fiz por menos, queria tudo. Não me contentava com
nada e a plateia batia palmas e se contorcia para fazer minhas vontades, cada
vez mais extravagantes.
Bem jovem
ainda comecei a beber nas festas da família e fui mergulhando no álcool, com o
incentivo da turma de amigos. Em casa, nenhuma resistência; levavam tudo na
brincadeira. Como eu não percebia o perigo, fui seguindo no mesmo ritmo.
Fracassei nos estudos e perdi a vontade de estudar. Perdi o ano, saí da Escola
e nem por isso recebi qualquer tipo de orientação, nenhuma advertência, nada.
Todos tinham medo de me aborrecer.
A idade foi
aumentando, as forças diminuindo e não conseguia emprego. As doses de bebida
foram se multiplicando. Comecei a beber durante o dia e, quando não me davam
dinheiro suficiente, furtava de qualquer pessoa dentro de casa: aí sim, fui
aborrecendo um por um. Perdi o direito de viver com minha família e, numa das
voltas, embriagado, sujo, encontrei a porta fechada. Dormi na rua a primeira
noite e não me atrevi a tentar novamente entrar em minha casa, continuei na
rua.
Hoje não me
sinto com forças para reagir. Sou a pessoa mais fraca do mundo, mais sozinha,
mais triste. Vivo procurando pães velhos e migalhas de comida na porta de bares
e restaurantes. Não sei por onde andam meus pais. Com vergonha de mim,
mudaram-se da cidade. Talvez encontre algum parente, mas eles fingem que não me
veem, com vergonha. Ninguém chega perto de mim para estender a mão, porque
seria muito trabalhoso cuidar de uma criança que se perdeu na cortina social
das políticas sociais e se escondeu no filó azul da educação mal orientada.
Enviado pela professor universitária Ivone Boechat
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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