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segunda-feira, 18 de novembro de 2019

LIVROS

O dia em que Graciliano Ramos entrevistou Lampião

"Cangaços" traz textos do escritor sobre o banditismo que aterrorizou o Nordeste no início do século passado e inclui uma conversa imaginária com Virgulino Ferreira, editada pela primeira vez em livro


"Aqui no sertão, quando um camarada tem raiva de outro, toca fogo nele. É a justiça mais usada e não falha. Temos também a dos autos, demorada, mas que não é má, porque os promotores se enrascam sempre e os jurados são bons rapazes.” Essa declaração poderia ter sido dita hoje, quando a justiça com as próprias mãos é praticada como decorrência de uma percepção errada das leis e da ação do Estado. Mas veio à luz há 83 anos, numa entrevista imaginária entre o escritor Graciliano Ramos e o cangaceiro Lampião, publicada no dia 16 de maio de 1931. Uma conversa fictícia? Exatamente – e aí está toda a diferença. Além de iluminar o processo criativo do autor de “Vidas Secas” e “São Bernardo”, o curioso texto encomendado pela revista alagoana “Novidade” surpreende pelo artifício utilizado. Entrevistas forjadas são muito comuns atualmente, mas na juventude de Graciliano eram uma ousadia. O bate-papo é um dos escritos inéditos do livro “Cangaços” (Record), que reúne ensaios e crônicas veiculados na imprensa, nos quais o escritor tratou do banditismo sertanejo.
 
 CRONISTA
Graciliano escreveu artigos para jornais e revistas de
Maceió e do Rio de Janeiro entre 1931 e 1941.

Haviam causado furor as duas “entrevistas reais”, concedidas por Lampião ao jornalista Otacílio Macedo, em março de 1926. Ao imaginar um diálogo por telepatia, Graciliano ataca a imprensa sensacionalista e, com ironia e tom jocoso, questiona o salteador sobre temas gerais. “Quais são as suas ideias a respeito da propriedade?”, pergunta. E o cabra macho: “Isso por aqui é nosso: gado, cachaça, mulher, tudo. É de quem passar a mão, entende?”. Sobre a família: “Pra dizer a verdade, nunca pensei nisso. E o senhor é danado de fuxiqueiro. Quanto à mulher, hoje a gente pega uma, larga amanhã, arranja outra, casa aqui, descasa acolá, e assim vamos indo.” Segundo o professor de editoração da Universidade de São Paulo (USP), Thiago Mio Salla, que organizou o livro ao lado da doutora em literatura brasileira Ieda Lebensztayn, mais que o estilo é a atualidade que surpreende nos 14 textos (foram acrescentados ainda dois capítulos de “Vidas Secas”, que ajudam a dar corpo ao conjunto de escritos reunidos pela primeira vez nessa perspectiva). “Mudam-se os atores, mas a violência é a mesma, estruturante”, diz Salla, acenando para os linchamentos, execuções e desmandos policiais recentes como exemplo de persistência de uma situação que parece estar no DNA nacional.

Ieda chama a atenção para o fato de essa produção, que durou uma década a partir de 1931, só agora ter sido classificada segundo a cronologia, o que possibilita saber o que veio à luz antes e depois da prisão do autor, em 1936, acusado de comunista. “Antonio Silvino”, por exemplo, é de 1938.
 
 NA MIRA
Lampião e seu irmão Antonio, [em Juazeiro do Norte]: morte prevista
pelo escritor seis meses antes de ser eliminado.

Se não falou realmente com Lampião, a conversa que teve com esse cangaceiro, cujo nome de batismo era Manoel Batista de Moraes, aconteceu de verdade. Silvino entrara para o crime aos 21 anos, após o assassinato do pai, e até os 37 realizou saques e matou muitos. Graciliano encontra-o na cadeia no primeiro ano de sua pena de duas décadas – vai ao presídio junto com José Lins do Rego, que o retrata em cinco livros. É descrito como “um desses pobres-diabos que morrem no eito e não fazem grande falta, aguentam facão de soldado nas feiras das vilas e não se queixam”. Aceitar a opressão sem reclame está, segundo o autor, na origem do conformismo que só precisa de uma coronhada no pé para explodir em revolta cega. Sentimento recorrente, expresso na frase “apanhar do governo não é desfeita”, dita por Fabiano, o retirante preso injustamente em “Vidas Secas”. Na crônica citada acima, o escritor mostra-se aberto à complexidade do que chama de “lampionismo”, já definido em texto anterior como o molde de onde saem sucedâneos em coragem e desventura: “o que transformou Lampião em besta-fera foi a necessidade de viver”, afirma. Como ressalva, registre-se que o autor mais uma vez incorre no preconceito racial ao apresentar Silvino como homem branco não “representante das raças inferiores”.

Publicado originalmente em Revista Istoé

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