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segunda-feira, 4 de maio de 2020

EU E ADÍLIA, A EX-CANGACEIRA


Por Rangel Alves da Costa
Quando cangaceira

Quando Maria Adília de Jesus (a ex-cangaceira Adília e companheira de Canário no bando de Lampião) faleceu em 2002, aos 82 anos de idade, eu contava com 39 anos. O falecimento ocorreu 64 anos após sua saída do cangaço em 38. A mulata trigueira da família Mulatinho do Alto de João de Paulo, nos arredores da cidade de Poço Redondo, também era irmã do cangaceiro Delicado (João Mulatinho). Mas minhas recordações com Adília remontam a anos anteriores, quando a ex-cangaceira tecia profundos laços de amizade com minha família, principalmente minha mãe Dona Peta e meu pai Alcino. Todos os dias Adília atravessava o riachinho de pouca água que separa a cidade de sua comunidade e adentrava pela Rua de Baixo, local de moradia de meus pais. Por ali ficava horas e mais horas, em proseados e relembrando causos sertanejos. Suas memórias cangaceiras não tinham lugar de destaque, principalmente pelo fato de que minha mãe não gostava de fazê-la relembrar um tempo tão difícil em sua vida. Mas com meu pai era diferente, pois sempre que podia ia puxando os fios da teia da memória da amiga ex-cangaceira e anotando tudo para depois contextualizar em seus escritos. E eu, meninote por ali, sequer imaginava estar cotidianamente convivendo com pessoa tão marcante na história nordestina. Não sabendo nada de seu passado, não conhecendo sua luta, não imaginando que aquela mulher já havia se vestido em véu de sol e de sangue, já havia vivido o drama da incerteza do instante seguinte e sentido na pele o queimor lancinante da bala faminta. Um tiro na perna ainda era visível no osso afundado. Mas eu não estava – e até porque não sabia das causas e consequências no seu passado - diante da cangaceira, mas sim da amiga. E uma grande amiga, como uma figura materna doce e cativante. E de repente eu já estava seguindo os seus passos em direção à sua moradia no Alto de João Paulo, e tantas e tantas vezes assim. Ao lado dela, era algo totalmente inusitado o que o meninote Rangel mais gostava de fazer. Pedir que a ex-cangaceira sentasse no chão batido, depois estirasse as pernas, para despejar água naquela pequena fundura onde a bala havia deixado sua marca. E depois simplesmente beber. Um tiquinho de água na ponta da língua. E, sem imaginar a dimensão daquele gesto, também experimentando o sabor da história e de um passado de eterna, aflitiva e dolorosa memória.

Rangel Alves da Costa

Publicado no facebook por Volta Seca


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