Por Rangel Alves da Costa
Quando cangaceira
Quando Maria Adília de Jesus (a ex-cangaceira Adília e
companheira de Canário no bando de Lampião) faleceu em 2002, aos 82 anos de
idade, eu contava com 39 anos. O falecimento ocorreu 64 anos após sua saída do
cangaço em 38. A mulata trigueira da família Mulatinho do Alto de João de
Paulo, nos arredores da cidade de Poço Redondo, também era irmã do cangaceiro
Delicado (João Mulatinho). Mas minhas recordações com Adília remontam a anos
anteriores, quando a ex-cangaceira tecia profundos laços de amizade com minha
família, principalmente minha mãe Dona Peta e meu pai Alcino. Todos os dias
Adília atravessava o riachinho de pouca água que separa a cidade de sua
comunidade e adentrava pela Rua de Baixo, local de moradia de meus pais. Por
ali ficava horas e mais horas, em proseados e relembrando causos sertanejos.
Suas memórias cangaceiras não tinham lugar de destaque, principalmente pelo
fato de que minha mãe não gostava de fazê-la relembrar um tempo tão difícil em
sua vida. Mas com meu pai era diferente, pois sempre que podia ia puxando os
fios da teia da memória da amiga ex-cangaceira e anotando tudo para depois
contextualizar em seus escritos. E eu, meninote por ali, sequer imaginava estar
cotidianamente convivendo com pessoa tão marcante na história nordestina. Não
sabendo nada de seu passado, não conhecendo sua luta, não imaginando que aquela
mulher já havia se vestido em véu de sol e de sangue, já havia vivido o drama
da incerteza do instante seguinte e sentido na pele o queimor lancinante da
bala faminta. Um tiro na perna ainda era visível no osso afundado. Mas eu não
estava – e até porque não sabia das causas e consequências no seu passado -
diante da cangaceira, mas sim da amiga. E uma grande amiga, como uma figura
materna doce e cativante. E de repente eu já estava seguindo os seus passos em direção
à sua moradia no Alto de João Paulo, e tantas e tantas vezes assim. Ao lado
dela, era algo totalmente inusitado o que o meninote Rangel mais gostava de
fazer. Pedir que a ex-cangaceira sentasse no chão batido, depois estirasse as
pernas, para despejar água naquela pequena fundura onde a bala havia deixado
sua marca. E depois simplesmente beber. Um tiquinho de água na ponta da língua.
E, sem imaginar a dimensão daquele gesto, também experimentando o sabor da
história e de um passado de eterna, aflitiva e dolorosa memória.
Rangel Alves
da Costa
Publicado no facebook por Volta Seca
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