Personagens de uma época que marcou o Nordeste
Setenta anos depois da morte de Lampião em Angicos, a memória é mantida por poucos sobreviventes. Pessoas com mais de 90 anos de idade ainda se lembram com detalhes de um tempo em que as privações e o risco de morrer de bala ou punhal faziam parte do cotidiano. Para o sertanejo, a aparição de cangaceiros ou volantes era sempre significado de violência e saques. Até as vestimentas se confundiam. Quem participou destas batalhas reconhece que foi a melhor época da vida. A aventura de ser protagonista da própria história.
O filho de Corisco e Dadá
No bairro do Farol, em Maceió, um homem próximo dos 73 anos guarda com cuidado pequenas roupas que têm a sua idade. Elas são a lembrança material do carinho dos seus pais, que não chegou a ver, a não ser em fotografias, já adolescente. Sílvio Bulhões, economista, nascido em agosto de 1935, é filho dos cangaceiros Corisco (Cristino Gomes da Silva Cleto) e Dada (Sérgia Ribeiro da Silva), com quem só permaneceu por nove dias. Foi entregue para ser criado por um padre em Santana do Ipanema, também em Alagoas, de quem assumiu o sobrenome. “Fui cangaceiro por nove meses e nove dias”, conta, enquanto guarda o enxoval que foi enviado por Dadá, junto com uma carta de Corisco, para o religioso.
Sílvio Bulhões prepara um livro que conta a sua história. Nele, narra como, em 1944, teve um sonho com um homem vestido com roupas estranhas, que se dizia seu pai. Mais tarde, ao ouvir escondido uma conversa do padre com visitantes, em que este revela que o menino era realmente filho de Corisco, entra em um quarto proibido paraele, e descobre, dentro de um baú, uma revista Noite Ilustrada que narrava os últimos dias do cangaceiro. “Lembro que corri para o quintal e subi numa árvore. Fiquei horas lá em cima, vendo aquelas fotografias. O homem se parecia com o do sonho”, relata.
O primeiro encontro com a mãe se deu quando Sílvio já tinha 18 anos. Dadá, que se locomovia com dificuldade por causa da sua perna amputada, pôde finalmente contar mais detalhes sobre Corisco. “Ela disse que ele tinha muitas saudades. Encontrei mais tarde um homem que, quando soube que eu era filho de Corisco, abraçou-me e disse que eu tinha salvado a vida dele. Aprisionado pelo cangaceiro, contou que havia me visto na casa do padre, em uma cadeira que depois se transformava em um carrinho. Como Corisco queria mais detalhes, começou a inventar histórias sobre mim. Acabou libertado”.
Da outra margem do Rio São Francisco, Corisco, alagoano de Matinha de Água Branca, nascido em 1907, chegou a ouvir os tiros em Angicos, para onde se dirigiria no dia 28 de julhode 1938 com o objetivo de se encontrar com Lampião, o homem que, além de chefe, era inspiração para ele também se autodenominar “capitão”. Depois de confirmadas as mortes de 11 cangaceiros, entre eles Lampião e Maria Bonita, mandou degolar seis pessoas de uma mesma família.
Corisco tentou assumir o posto de Lampião, mas não tinha a mesma habilidade para reunir os grupos restantes de cangaceiros. No dia 25 de maio de 1940, em Brotas de Macaúbas (Bahia), já abandonado pelos companheiros, com um braço gravemente ferido e sendo amparado pela mulher, ele é morto pela volante de José Rufino. Já não podia nem segurar uma espingarda. Dadá, baleada, tem que amputar uma perna. Ela é libertada apenas em 1942. Com o homem que lhe levou ao cangaço com apenas 12 anos de idade, teve sete filhos. Além de ter sido a única mulher que verdadeiramente pegou em armas, contribuiu com sua arte para embelezar os apetrechos usados pelos bandos. Dadá morreu em fevereiro de 1994
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Sílvio Bulhões ainda guarda com cuidado o enxoval que Dadá mandou entregar ao padre que o criou. As peças foram temas de uma reportagem de O Cruzeiro em 1956 (abaixo). Acima, o menino em sua cadeira que se transformava em carrinho. A peça acabou salvando a vida de um prisioneiro do pai
Odisseia macabra de cabeças
Depois de mortos, cangaceiros do bando de Lampião foram degolados e os “troféus” levados em triunfo para Maceió e depois para a capital federal na época, o Rio de Janeiro. Sepultamento definitivo ocorreu em 1969.
Os moradores de Piranhas, cidade alagoana às margens do Rio São Francisco, na fronteira com Sergipe, foram acordados pelo tiroteio distante naquela manhã de 28 de julho de 1938. Horas mais tarde, puderam confirmar que era verdade o boato que circulava: Lampião estava morto.
Dentro de uma lata de Querosene Jacaré repousava a cabeça do homem mais temido do Nordeste. O troféu macabro e os outros dez trazidos de Angicos na mesma condição foram arrumados para uma foto na escadaria da prefeitura, junto com armas e objetos usados pelos cangaceiros. Muitos não acreditaram que o grande estrategista das caatingas tivesse sido morto sem nenhuma reação. Euclides Flor, um dos Nazarenos (da vila de Nazaré, atual Carqueja, distrito de Floresta) que deixaram Pernambuco para caçar Lampião em outros estados, chorou quando viu o que restou do homem responsável pela morte de dezenas de parentes e vizinhos. Um choro de raiva, de quem não conseguiu cumprir com sua própria promessa.
Depois da exposição em Piranhas, as cabeças foram levadas para Santana de Ipanema e depois para Maceió, em um caminhão fretado. A carga só chegou à capital alagoana às 20h do dia 31 de julho. Mais de dez mil pessoas se aglomeravam diante do Palácio do Governador. De acordo com o Diario de Pernambuco de 3 de agosto, “os despojos dos cangaceiros chegaram empapados de sangue e terra, inteiramente irreconhecíveis.
Lavados cuidadosamente, arranjados para a festa trágica de satisfazer a curiosidade popular, foram, então, expostos numa bancada”. Depois de alguns dias, o governo Vargas iria acabar com a publicação das fotos das cabeças cortadas pela imprensa através de um decreto do Ministério do Interior.
O médico-legista de Maceió, professor Lages Filho, efetuou exames antropométricos nas cabeças de Lampião e de Maria Bonita. Sobre a mulher do chefe dos cangaceiros, Lages Filho afirmava, em seu relatório, de que a degradação não lhe permitiu “apreciar os traços fisionômicos, os quais, aliás, não pareciam desmentir o apelido que lhe deram”. Sobre Lampião, que teve o crânio destruído por um projétil que lhe desfigurou parte do rosto, o especialista apontava que não havia elementos que o incluíssem na galeria dos tipos criminosos especificados pelo italiano Cesare Lombroso a partir de estudos de crânios.
No início de agosto, o Instituto Guilherme II, de Berlim, chegou a enviar telegrama solicitando a cabeça de Lampião para sua coleção de “criminosos célebres”, mas o destino de todos os cangaceiros trucidados em Angicos seria o Museu de Antropologia Criminal do Instituto Nina Rodrigues, em Salvador, mesmo local que abrigou, até um incêndio em 1905, as cabeças de Antônio Conselheiro e de Lucas da Feira.
Em 1959, o jornalista Severino Barbosa, em artigo publicado no Diario de Pernambuco em 31 de maio, afirma que as cabeças no Nina Rodrigues eram “biscuit macabros” e nunca haviam sido estudadas cientificamente.
Começava a ganhar força uma campanha iniciada três anos antes, pelos familiares das vítimas, para garantir o sepultamento das peças. Ex-comandantes de volantes também se expressaram a favor da reparação aos ex-inimigos. Em 25 de maio de 1965, o Congresso Nacional aprovou o decreto 2.867 que estabelecia o sepultamento, em 15 dias, das cabeças dos cangaceiros e proibia a exibição de órgãos humanos de pessoas mortas. A execução desta ordem só aconteceria em fevereiro de 1969 – no dias 6, no caso de Lampião e Maria Bonita, e 13, no caso dos outros mortos de Angicos, além de Corisco, no cemitério Quinta dos Lázaros, em Salvador. Posteriormente, as cabeças de Lampião e Maria Bonita foram exumadas a pedido da família e levadas para Aracaju, onde reside a filha do casal, Expedita.
Para a antropóloga Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a imagem que deve ficar de Lampião e do ciclo do cangaço é a de bandidos aliados das classes dirigentes, responsáveis em parte pelo atraso no desenvolvimento do Nordeste. “Enquanto em São Paulo os pequenos e médios proprietários investiam cada centavo poupado em melhorias das casas e propriedades, os cangaceiros dilapidavam, seja em bebedeiras, seja corrompendo certas autoridades, seja ‘comprando’ a grandes protetores armas e munições pelo preço monopolístico. Ao longo do meu livro mostro o êxodo de pessoas fugindo do cangaço”, afirma, referindo ao seu A derradeira gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no sertão.
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