Por: Rangel Alves da Costa*
QUANDO EU FOR PASSARINHO
Feito João Gibão, personagem da novela Saramandaia, não tenho a menor dúvida que qualquer dia desses subo na minha montanha, converso demoradamente com o meu Deus e depois abrirei os meus braços, estenderei minhas asas e voarei por todo norte onde houver um sul.
Para não ter surpresa quando chegar esse dia, verdade é que já fiz até estágio passarinheiro. Daí que já subi na árvore, mirei ao redor e adiante, visitei o ninho, imaginei a distância azul suportando o meu corpo, senti a lufada do vento agitando as asas que ainda não tenho. E o mais importante é que fiz amizade com passarinho de verdade.
Passarinho me disse que era muito perigoso e cansativo voar, principalmente porque as pousadas de descanso e os galhos seguros estão cada vez mais distantes, e também porque não há mais floresta nem mata que garanta um descanso acautelado e confortante. E o pior a ser suportado é a triste e cruel solidão de passarinho, um vazio terrível por não ter mais revoada para acompanhar.
Solidão de passarinho, continuou meu amigo de pena e bico, é a coisa mais dolorosa que existe. Quanto mais canta e inventa um canto novo, mais a melodia parece sumir no vento; quanto mais voeja e faz piruetas pelo ar para chamar atenção, mais se torna vítima da indiferença; quanto mais sobe no alto da árvore ou sai pulando de galho em galho, mais tomará o destino dos que não encontrarão nada que chegue ou que esteja esperando.
Tudo isso me fez pensativo demais. Contudo estava decidido e insisti que o meu sonho era voar, ser passarinho de qualquer jeito, e que nada do relatado me impediria de sair por aí tropeçando no ar, passando pertinho das nuvens, fazendo meu ninho em qualquer lugar. E então ele me respondeu com um piado triste que até gostaria de me acompanhar em qualquer voo, mas temia não poder alcançar esse dia.
Quase cantando um canto de passarinho, disse então que não se preocupasse pois no dia seguinte alçaria voo lá da montanha perto de Deus e na primeira curva que fizesse no ar seria naquela direção, pousando ao seu lado e chamando para o desafio da liberdade nas distâncias azuis. Ele disse que teria o maior prazer, mas não falou, não piou mais, simplesmente bateu as asas e voou.
Voltei pensativo e tristonho ao meu ninho humano. Se tudo aquilo fosse verdade seria melhor ser pedra e me fazer jogado por aí do que ser passarinho. Mas se ele, com a vivência de passarinho que tinha, contava parte de seus sonhos desfeitos de modo tão entristecido, então é porque deveria ter suas razões. Verdade é que até passarinho tem que fingir a liberdade no voo para esconder sua dor.
No dia seguinte, antes de seguir até a montanha e cumprir o prometido a mim mesmo, resolvi passar antes na mata moradia do meu amigo passarinho e pedir para que esperasse um pouco até que voltasse voando. Dali seguiríamos até onde a natureza estivesse tão virgem e difícil de penetrar que até passarinho tinha de voar passando perigosamente nas folhagens das árvores mais altas.
Encontrei apenas umas penas na galhagem, porém nem sinal do meu amigo. Talvez o encontrasse nas alturas, quando já estivesse voando, pensei sem ter certeza se isso poderia ser mais possível. Não sei por que, mas me veio uma certeza que não. E por isso mesmo segui até a montanha com outra certeza, a de adiar o meu voo de passarinho.
Lá no alto, recebendo no espírito as bençãos celestiais e na face a lufada de vento, ergui os braços para os céus e até pensei em bater as asas naquele mesmo instante. Rapidamente desfiz essa vontade e comecei a gritar, fazendo ecoar pelos montes, montanhas e vales, mataria, descampados e além, meu canto de pássaro sem nunca ter sido:
“Quando eu for passarinho, e jamais um pássaro sozinho, seguro será cada descanso, cada voo e cada ninho, pois antes de voar implorarei ao meu Deus, que é também o Senhor de todos os pássaros, para que o homem, que já tem seu caminho, viva a sua vida e deixe em paz o passarinho”.
Rangel Alves da Costa*
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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