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terça-feira, 7 de agosto de 2012

BIOGRAFIA DE ALGUÉM (Crônica)


                                               Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

BIOGRAFIA DE ALGUÉM

Nasceu numa manhã ensolarada dos anos 50 e faleceu numa noite mais ensolarada ainda do dia seguinte. Noite ensolarada? Pois é, não só ensolarada como tomada de uma tempestade terrível.

Depois de dada como morta pelo médico da família foi crescendo saudável, porém com um gravíssimo problema de saúde: era completamente anormal. Logo se contatou que a menina era completa louca, tomada de absoluta insanidade.

E o pior: tão anormal que não sabia mentir, não gostava de falsidades, odiava mimos demais, dizia na cara do outro o que sentia. Porém o mais grave, fato que à época serviu até de estudo laboratorial, não aceitava a realidade mentirosa de jeito nenhum e chorava diante das tantas injustiças vistas por todo lugar.

Nesse passo já se pode dizer que nunca mais deixou de chorar. Aos olhos dos outros, chorava pelo probleminha de doidice que infelizmente era acometida, mas um olhar mais atento logo perceberia que pranteava mesmo por tudo ruim que acontecia na realidade da vida.


Um dia, aproveitando um amigo da família que estava de visita, mandou que levantasse pois iria fazer umas perguntas e não admitia que respondesse estando sentado. Ora, queria receber respostas inteiras e não dobradas, curvadas. O visitante se assustou, mas levantou altivo e ouviu:

“Por favor, me responda por que o povo conhecendo o bem e o mal, mente diante do bem e só vive praticando o mal; por que o gato é gato e não é cachorro e por que tem gato que late e não há um só cachorro que mie; por que todo mundo fala em amor e ninguém sabe amar completamente; por que todo mundo sabe encontrar o que deseja na escuridão e não sabe procurar debaixo do sol; por que o vidro é feito de areia, mas se alguém se puser a se espelhar na areia todo mundo vai dizer que enlouqueceu; por que ainda não foi criado um mundo para habitar nele somente os personagens dos livros e suas histórias;  por que o gato é gato e não é cachorro e por que tem gato que late e não há um só cachorro que mie. Perguntei de novo foi? Então me responda essa: por que você se acha gente quando todo mundo sabe que é um rato? Responda. Mas antes diga se você sabia que na verdade o gato não é um gato nem o cachorro é um cachorro. Mas todo mundo sabe que você é um rato, e de esgoto...”.

O visitante desabou botando os bofes pela boca, enquanto ela era levada para o hospício, onde permaneceu por mais de cem anos. E nessa casa de doidos fez uma verdadeira revolução. Fazendo perguntas cada vez mais intrigantes aos psiquiatras, acabou enlouquecendo todos eles. Numa bela tarde em que o galo cantava, o último médico entrou numa solitária puxado por uma coleira e levando um velho osso na boca.

Quando deixou o hospício ainda se sentia na flor da idade. Já estava com mais de cento e cinquenta anos, mas continuava chupando bico, usando fralda e carregando sempre uma bonequinha de pano no braço. Chegava aos botequins pedia uma feijoada bem caprichada e depois mandava passar tudo no liquidificador. E exigia ainda que lhe fosse servida numa mamadeira.

Sendo muito bonita desde criança, antes de morrer no dia seguinte ao nascimento, já havia namorado mais de vinte. Nunca havia chegado perto de nenhum namorado não, apenas namoro de compromisso futuro, pois dizia que o mundo seria uma maravilha se todo mundo namorasse pensando em se apaixonar amanhã, pois o amor se desgastava a cada momento que os dois estivessem juntos. Se tudo ficasse para mais tarde, o amor seria completo na expectativa de ser amado.


Verdade é que nunca beijou nem deu as mãos a homem nenhum. Quando encontrou um rapaz que realmente achou bonito, jogou fora a boneca de pano e saiu correndo mundo afora. Correu cinco dias seguidos até encontrar um grande mosteiro abandonado. Ali se manteve até o fim da vida como monja, casta e devota.

Mas a solidão lhe atormentava tanto que depois de morrer ainda tentou o suicídio por cinco vezes. Foi obrigada a retornar ao mundo terreno porque ninguém suportava tanta loucura lá em cima. E retornou como uma mulher tão feia que passava os dias, nos mais de quinhentos anos ainda vividos, limpando e lustrando um velho espelho para ver se refletia alguma simpatia.

Jamais conseguiu. E por isso mesmo amaldiçoou todos os espelhos velhos, amarelados, carcomidos pelo tempo. E quem neles se mira a estará refletindo.
   
(*)Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com





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