Lampião
Em começos de
fevereiro, uma comitiva deixou Poço do Negro, donde ficou somente D. Jacosa com
seu filho Manuel. Montada de silhão num burro manso e puxado por José Ferreira,
ia D. Maria Lopes. Escanchada na garupa, a sua caçula Anália de oito anos de
idade. Ezequiel de dez, e Mocinha, de quatorze anos, iam de escancho noutro
burro, ora puxado por João, de dezoito anos, ora tangido por Livino, o braço
esquerdo na tipóia. No final, ia o terceiro burro, chamado Condave, que fora o
primeiro burro comprado para a almocrevia e muitos serviços prestara. Hoje,
estava um caco velho, mas sempre na estimação. Encangalhados nele dois caçuás
contendo as “arrumação” ou troços: coisas de arranjos domésticos, isto é, tudo
aquilo a que ficara reduzida a de antes bem arremediada família de José
Ferreira. Ele, que fora dono de um sítio e sucessivamente de duas boas
situações, com suas casas e agregados, que possuía uma tropa de doze burros bem
arreados e com cangalhas e apetrechos para carcarejar, que criara mais de
trinta reses, vários animais e um ror de criação, estava agora tangido pelo
destino, despatriado e decadente!
Condave era tangido, a relho, pelo agregado, esse um de toda confiança,
Luís Gameleira, que com outros ia no xaxo da apragata. Sacrificoso o espiche
dessa retirada de mais de vinte léguas, cheias de travessias, até o momento de
esbarrar no destino. A marcha ia segura, mas não podia ser solta na pisada, a
modo de não incomodar D. Maria Lopes, e também por causa da quentura do dia
alto e do ar duro, mormacento. Mais vantagem e deleitoso viajar no de noite,
principalmente sendo clara e doce como vinha sendo. Despaireciam os viandantes
diante da contemplação, se sucedendo e sempre de poesia, das paisagens do
sertão.
Depois de vários dias, perto de
Espírito Santo do Moxotó, foram, na surpresa, atacados por gente de Zé
Saturnino. Segundo informações posteriores, vinham com partes de querer passar
a mão nos burros. A comitiva que seguisse a pé pela estrada tirana, a
matalotagem na cabeça...
Gameleira, cabra ditriminado,
sobrando coragem até para mamar em onça, assumiu a defesa, ripostando com
seguridade na troca encarrilhada de bala por bala. Com dificuldade, Livino
atirava de pistola com a mão direita. José Ferreira, enquanto pelas rédeas
continha os espantos do burro em que estava sua esposa montada, levantando a
voz indignado com tamanha covardia gritava os nomes que lhe vinham na hora:
Miserave! Miserave! Amolestado da bexiga! Bando de covardes! Satanás!... O
outro burro, dos meninos, João dominava.
De repente, Condave, assustando-se, desembestou
no chouto pela catinga a dentro. Repelidos os atacantes, correu Gameleira atrás
dele, pegando-o onde ele parara enganchado pelo cabresto. Recompôs a carga e
voltando, pôs-se novamente em marcha a comitiva, vez em vez olhando para trás.
Somente no fim da viagem, quando do desarreio
dos caçuás, é que se deu fé da falta de um saco, precisamente o que continha a
véstia de vaqueiro de Virgulino. Véstia confeccionada a capricho por ele
próprio, debruada, cheia de bordaduras coloridas e com suas iniciais VFS bem
vistosas no peitoril. Obra-prima sertaneja de beleza e acabamento! Na carreira
do burro assustado o saco caíra, e fôra percebido pelos assaltantes, que logo o
furtaram.
Enfim, depois de sobressaltada e vagarosa viagem, chegaram a Alagoas, à fazenda
Olho d’Água de Fora, pertencente a Manuel Francelino. Com alegria e a abraços
foram recebidos por Virgulino e Antônio. “Agora espero viver em paz!” – foi a
primeira frase do otimista José Ferreira. No entanto, deu vontade a Virgulino
de desiludir o pai de tão espevitada crença, mas se teve.
Ali fizeram arranchação, ocupando casa de taipa, piso de terra batida, apertada
e escura. Alguns dias depois, sem descoroçoar um nada, José Ferreira alugou
dois burros, formando com os seus uma tropa de cinco, e mandou seus três filhos
almocrevarem. Fizeram algumas viagens sob a proteção do Coronel José Abílio,
entretanto, só puderam dar poucas viagens, aliás com bom rédito e lucro. Logo,
novos insultos, perseguições e ataques. Os ordeiros irmãos Ferreiras careciam
do delegado de Água Branca, Tenente Pedro Nolasco, permissão por escrito a modo
de andar armados. Conseguiram, não porém dentro da cidade, o que para eles não
constituía dificuldades, pois já costumavam fazer assim.
O inimigo porém, não dormia...
Zé Saturnino provocava cada vez mais e escreveu cartas a coronéis, delegados,
comissários de polícia e à Baronesa de Água Branca, denunciando os irmãos
Ferreiras e Antônio Matilde como “bandidos perigosos”, “assassinos”,
“salteadores e ladrões”, contando nos exageros e falsos, vários “causos”. A
baronesa foi a única que levou a sério e chamou o delegado e exigiu providências.
Este, influenciado pelo Comissário Amarílio, que havia recebido dinheiro de Zé
Saturnino, que era um modo de apertar os “bandidos”, e mesmo prendê-los,
expediu ordem imediata para em dia de feira, três soldados desarmarem os irmãos
Ferreiras na ocasião em que esses tivessem dando as armas para guardar, como de
costume, numa casa da ponta da rua. Ora, desarmar um homem publicamente, sempre
significou, no sertão, desmoralizá-lo.
Não somente os soldados não tomaram as armas, como vergonhosamente apanharam
dos valentes e ágeis irmãos Ferreiras. Foram todos os Ferreiras proibidos de
entrar na cidade, pouco importando o pretexto sob pena de prisão. Diante de
todos esses maus acontecidos provocados pela incessante perseguição de Zé
Saturnino, resolveram Antônio Matilde e os irmãos Ferreira dar-lhe uma lição
adequada, quebrando-lhe o rabicho pelo cotoco.
Depois de cinco anos aturados só na defensiva iriam agora tomar a ofensiva,
atacar para acabar, na bala e na ponta da faca, com aquela infernização. Juntando
Virgulino os seus e mais cinco cabras, dos bons, que conseguiu com Sinhô
Pereira, formou um grupo de quinze homens fortemente armados. Dentro de um
plano fulminante traçado por ele, foram arrasadas as fazendas Serra Vermelha,
de João Nogueira, Pedreira, de Zé Saturnino, e Mutuca, de Venâncio Barbosa,
derrubadas as cercas e depois incendiadas, com as casas, os roçados e o mato.
Grossos novelos de fumaça, subindo de uma danação de fogo desparramado, turbava
a vista do sol. Nos currais queimados e nos campos crepitando amontoavam-se
reses e criações, mortas a tiro ou sangradas, esquartejadas e tostadas, uma
carnificina dos diabos, dentro de um inferno de urros e berros de bichos,
sofrentes nos estertores e braiados aos gritos e hurras dos atacantes em fúria!
No ar o cheiro insuportável da chamusca. Desgraceira completa!...
Arrasados e inconformados os inimigos, iniciaram-se novas batalhas, tiroteios, ferimentos, agora com o apoio total da polícia. Num daqueles dias, havia necessidade de uma mezinha urgente para um dos filhos de Virtuosa, netinho de José Ferreira, doente de dor de ouvido. Não havia outro jeito senão enviar João a Água Branca para comprar na botica. Era ele apenas um rapazote. De certo respeitariam. Assim que João chegou na rua, foram mais logo uns espias dar conhecimento ao delegado que, no mesmo contenente, mandou prendê-lo, sob dito e alegação que, burlando as autoridades, tinha ido, sim, para comprar munição.
Depois, certo o Comissário Amarílio de que viriam os corajudos irmãos Ferreiras buscar o preso, ajuntou gente e foi botar emboscada no caminho mais para perto da casa deles. Na casa de José Ferreira todos viam as horas passando e nada de João chegar. Preocupados, queriam os três irmãos ir buscá-lo. O pai não deixou. As horas correndo, apreensivo e angustioso, chegou a tarde e nada do menino. Perderam os três irmãos a paciência e resolveram ir atrás de João, desse no que desse. Ao se achegarem bem próximo da emboscada, descobriu Virgulino o inimigo ensubacado e avisou aos companheiros: “Estamos emboscados”. Num vupe, rompeu tiroteio feroz. Ao cabo de duas horas de fogo, o delegado azoretado e contando goga – que era homem, que fazia isto e aquilo – pisou na poeira!
CONTINUA...
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