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terça-feira, 27 de janeiro de 2015

“O GLOBO” – 26/06/1957 - PARTE FINAL

Material do acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho

FORNECENDO A PISTA DEFINITIVA

- Aí eu perguntei: “Os cangaceiros estão por aqui?” Ele, antes de proferir qualquer frase, olhou para o irmão, que o encorajou: “Diga tudo, meu irmão, senão nós vamos se acabar!” Ele virou-se, então, para mim e se abriu: “Estão, sim, seu tenente. Os cangaceiros estão lá”. E eu: “Como é que você sabe que estão lá?” E ele, rápido: “Porque eu estive lá, na boquinha da noite, para ver uma máquina de costura que o capitão (Lampião) me prometeu, mas dona Maria (Maria Bonita) estava cosendo e ele me disse que eu fosse buscá-la bem cedinho, devendo eu, então, procurá-la no pé da pedra, debaixo das macambiras, onde ele, se não estivesse mais lá, deixaria o aparelho escondido”. Sorri: “Então vamos ver logo, senão você perde a sua máquina”. E o cabra, tremendo: “Ave Maria! Nesse caso, eu preferia perder!” Fiquei, por motivos óbvios, com esse coiteiro, entregando seu irmão ao aspirante. Sentenciei, logo depois: “A camisa é branca; se correr, é um bom alvo”.

PREPARANDO A TROPA PARA O COMBATE

Perguntamos ao coronel João Bezerra qual era o seu estado de espírito, naquele momento. Ele nos olha de lado: “Nenhum nervosismo. Eu tinha a tranquilidade de quem vai para um batizado de cabra que acaba de nascer”. Reintegra-se na história:

- Voltamos para junto da tropa: clareando-os com uma pilha elétrica, acordei os praças que já dormiam: “Vamos embora”. Subimos a margem do São Francisco, num lugar muito íngreme, pelo lado, justamente, em que não esperavam a tropa, pois me julgavam já em Moxotó. Na chegada, esperei todo o contingente, que vinha em coluna por um, e, após reuni-lo, em círculo, 3h30m da madrugada, dei-lhes ciência de que, se Deus ajudasse, dentro de mais trinta minutos, se decidiria a parada entre a força e os cangaceiros. Grande parte dos presentes respondeu, de uma só vez: “Já andamos desesperançados de brigar; essas pestes são encantadas”. E num segundo tempo: “E porventura qual é o grupo a que o senhor se refere?” E eu, lacônico: “O de Lampião”. Ao que eles se admiraram: “É o cego?” Confirmei: “Ele mesmo”.

EM MARCHA RASTEJANTE

- O coronel João Bezerra poderia mencionar o número de homens que tinha a seu dispor, naquela noite? – indagamos.

- Eu tinha 45 homens.

E adivinhando o nosso quesito seguinte:

- Lampião tinha 48 homens. A minha tropa, eu a dividi em quatro grupos: três de 10 homens e um de 15, sendo este o meu, pois dele partiria o ataque. Assim foi que ao grupo capitaneado por Ferreira de Melo eu ordenei que seguisse com o coiteiro Pedro de Cândida, que conhecia toda a disposição do adversário, e rumasse em direção ao riacho, onde se achava o sentinela, colocando-se entre o mesmo e o grupo. Em sequência, seguiria ainda riacho acima, em marcha rastejante, até avistar os cangaceiros, que dormiam ao ar livre. Ali deveriam aguardar o aviso da minha metralhadora.

CANGACEIROS EM PILHÉRIAS

- Segui margeando o riacho pela direita – chovia ainda torrencialmente e, meia centena de metros adiante, mandei descer outro grupo de 10, para ficar à direita de Ferreira de Melo, aguardando as mesmas ordens. Segui com 25 homens, realizando prodígios de equilíbrio, pelos bicos das pedras, e abaixando-me pelos matos. Aí eu já batia com a testa em celas dos cangaceiros, as quais, juntamente com as dos coiteiros que com eles foram ter, estavam dependuradas. Lembro-me que um cavalo, que se achava apeado e tinha um grande chocalho ao pescoço, espantou-se com a tropa e deu um formidável sopro pelas narinas. Tive que recuar quase uns trinta metros para que o animal não corresse, espavorido, balançando o chocalho. Os cangaceiros já estavam acordados, pilheriando uns com os outros, falando em trocar o bornal e reclamavam contra o café, que estava frio. O ataque de surpresa já iria desencadear-se.

DEFLAGRA-SE O COMBATE

O coronel João Bezerra chega ao ponto culminante da entrevista:

- Disposta toda a tropa, quando eu me preparava para transpor uma pedra comprida, da altura de 1 metro, ouvi diversos disparos pelo lado em que colocara a tropa do aspirante e outros tentos para o nosso lado. Recebi, nesse momento, uma pancada na perna e outra na mão: vi o sangue descer, o que provava que eu tinha recebido umas balinhas. Porem, quando me levantei, fazendo força na perna, constatei que o osso estava íntegro. Olhando para a direita, vi sair fogo de quatorze fuzis, cadenciadamente, na altura de metro abaixo. Gritei, então: “Avancem!” Cinco minutos depois, notei, com satisfação, que a tropa se misturava com os cangaceiros, que, desse modo, tiveram que passar a lutar em várias frentes.

PISANDO SOBRE CADÁVERES

O coronel Joao Bezerra ainda alisa a lâmina da faca, mas tem os olhos postados sobre as notas do repórter. Acompanhemo-lo:

- Fui passando, então, por cima dos cangaceiros mortos, cujas vestes estavam ensopadas de sangue e de água de chuva. Lembro, também, que um soldado meu, de nome Adriano, exclamou: “Estou baleado, tenente!” E, antes que eu pudesse auxiliá-lo, ele estava com a barba serenada.

- Que significa barba serenada, coronel?

- Morto. Logo a seguir, outro soldado, Antônio Jacó, me preveniu: “Seu tenente, o cabra lhe mata!” E, de fato, o cabra atirou, mas, como o mosquetão estava descalibrado, a bala foi alojar-se num toco de catingueira, ao meu lado. Apontei a metralhadora para ele, mas logo o vi caindo por cima das macambiras, pois Antônio Jacó – cuja pontaria parecia uma olhada de machado – já o havia alvejado.

O GRITO DE VITÓRIA: “O CEGO MORREU!”

O chão e as macambiras cobriam-se de sangue. Luiz Pedro, cabra valente pra danar, vinha ao nosso encontro, sem nos ver. Fui, de dentro do riacho, enquadrando-o na mira da metralhadora, até 10 metros. Quando me preparava para matá-lo, vi, com tristeza, que um soldado atirou primeiro. Com mais vinte metros, vimos quatro cangaceiros caídos. Junto a eles, um soldado gritava: “O cego morreu!” Eu respondi que o cego (Lampião) não morreria assim. E ele, convicto: “Se este não for Lampião, quero ser cabra da peste, pois eu fui coiteiro dele durante dois anos”. E eu, ainda desconfiado: “Verifiquei se o olho direito dele é cego”. Ao que ratificou o praça: “É cego, sim, tenente”. Mandei trazer o cangaceiro, no caso Lampião, mas o praça trouxe a cabeça. Alguns cabras, entrementes, conseguiam escafeder-se, enquanto as cabeças de seus comparsas rolavam pelo barro.

MEDIDA ACERTADA

O coronel João Bezerra observa que a lembrança do degolamento de Lampião e de seus sequazes ainda constitui um impacto. Elucida, por isso:

- O degolamento se enquadrou perfeitamente num processo antigo. Demais disso, não poderíamos trazer todas as cabeças. Quando os meus subordinados cortaram as cabeças, não protestei também por um outro motivo: uma falange de dedos amputada não modificaria uma fisionomia. Determinei fosse feito o reconhecimento dos cadáveres, mandando respeitar os mortos.

E repisou o entrevistado:

- O degolamento foi uma medida acertada. Se não tivesse ocorrido, muita gente, até hoje, não acreditaria na morte de Lampião.

VERSÕES QUE DIVERGEM

O nosso entrevistado vai além.

- Um dos ex-combatentes da época, coronel Manuel Neto, da Polícia de Pernambuco, e ex-prefeito de Irajá, escreveu, levantando dúvidas quanto às reais circunstâncias que rodearam o fim de Lampião. Forçou, com isto, os meus colegas das Alagoas a censurá-lo e levou-me igualmente, a lhe escrever uma carta, que dizia, a certa altura, mais ou menos o seguinte: “Deixe, meu bom colega, que os paisanos venham em cima de nós, militares, com seu despeito, sua inveja, não um velho militar, nas suas condições, que, muitas vezes, imitando-me ou tentando imitar-me, se amparou no seu mosquetão, aguardando o pronunciamento da Justiça. Você sabe bem, está bem lembrado, de quando lhe telegrafei, chamando-o, e que você, em lugar de comparecer, para me ajudar, mandou o sargento Davi Surubeba (que ainda hoje é vivo e está lembrado), que chegou retardado, encontrando-me nas mãos de dois médicos, que me pensavam dos ferimentos recebidos no combate meia hora antes. E Davi Surubeba e o sargento Odilon Flores, de saudosa memória, pegaram as cabeças dos cangaceiros, tendo o primeiro, ao erguer a de Lampião, asseverado, chorando: “Queria que fosse eu que tivesse morto Lampião. Mas foi o meu amigo, tenente João Bezerra, quem o matou”.

MEMÓRIAS EM TERCEIRA EDIÇÃO

Perguntamos ao coronel Joao Bezerra sobre Volta Seca, atualmente no Rio de Janeiro, onde até se iniciou como cantor. A resposta é áspera: “É um cachorro!” Narra-nos, então, um episódio, impublicável, marcado pela maior brutalidade, cujo protagonista principal foi aquele ex-integrante do grupo de Lampião. E arremata o entrevistado, após acentuar que a fita “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, foi uma pantomima, sem guardar qualquer relação com a verdade histórica, e que pretende figurar, em breve, como ator, num filme sobre a vida e a morte de Lampião, produzido pelo seu amigo, deputado, Tenório Cavalcanti.

- Dessa forma é que vou publicar a terceira edição do livro sob o título “Como dei cabo de Lampião”, com capítulos interessantes para o momento, inclusive o desmentido a algumas notas escritas irrefletidamente por pessoas inescrupulosas.

Terminara a entrevista, quatro horas e dez minutos após se haver iniciado. Conduzimos o entrevistado até à porta do hotel. “Não lhe ficou, portanto, qualquer remorso da liquidação de Lampião e seu bando?” – reinquirimos. E o coronel João Bezerra, firme:

- Nenhum remorso. O degolamento enquadrou-se, como já disse, num processo histórico. Depois, era mais cômodo trazer as cabeças que os corpos, dada a distância em que nos encontrávamos. Trazer os corpos seria impraticável.

O coronel João Bezerra pede que lhe enviemos exemplares do número de O GLOBO em que foi publicada a entrevista. Quando apertava a mão do repórter, um hóspede do hotel, identificando-o, comentou com o companheiro:

- Olhe o degolador de Lampião...

E o coronel João Bezerra, já ganhando a calçada:

- Aí começa a lenda. A verdade termina no que lhe contei. Foram feitas as despedidas e o coronel João Bezerra afastou-se, tranquilo, como se estivesse na santa paz dos céus, sem que lhe angustiassem o espírito aquelas cabeças que rolaram, um dia, pelo chão calcinado dos sertões, há quase duas décadas. Certamente os espectros não transpõem a porteira da sua fazenda, onde se erguem as sombras dos cafezais e dos canaviais e onde o gado muge as suas mágoas – as únicas existentes na queda 

 “O GLOBO” – 26/06/1957

Fonte: facebook
Página: Antonio Corrêa Sobrinho

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Um comentário:

  1. Anônimo10:45:00

    Mendes amigo este texto que o pesquisador Corrêa encerrou hoje sobre a entrevista com o Coronel Bezerra, é uma matéria de grande importância, onde nela podemos dirimir certas dúvidas. Parabéns pesquisador Corrêa Sobrinho.
    Antonio Oliveira - Serrinha da Bahia.

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