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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

“O GLOBO”- 20/11/1958 - PARTE XIV

Material do acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho

COMO SE FORJA UM CANGACEIRO

TIPOS DO CANGAÇO

Azulão Nasceu Bandido – O Amigo de Corisco – A Crueldade de um Sargento de Polícia – Levou Pai e Filho Para o Cangaço – Minhas Conversas com Pai Véio na Prisão.

APESAR de muitos “cabras” do bando terem nele ingressado vítimas de injustiças, muitos ali foram parar por não prestarem mesmo. Eu nunca me aprofundei em estudá-los, e no relato que faço de meus companheiros de cangaço procuro ser sempre imparcial. Conto as coisas conforme as vi e ainda me lembro. Se faltam detalhes, não se deve culpar a minha memória, pois quando deixei de ser cangaceiro tinha apenas quinze anos incompletos. Não é uma idade boa para ser recordada quase aos quarenta, especialmente tendo eu sido naquela época um selvagem, menino do interior, e que aos onze anos deixa a família e passa a viver à sua própria custa, solto no mundo.

AZULÃO E PORTUGUÊS

ASSIM mesmo ainda me recordo de vários “cabras”, e falarei neste capítulo dos que mais me chamaram a atenção. Havia um mulato escuro no bando, conhecido por Azulão, cujo nome era Mariano. Era natural da Bahia, de Várzea da Ema, e ingressou no cangaço porque nunca foi boa coisa mesmo, desde menino. Sua família era decente, ainda que pobre mas ele era o “galho podre”, a ovelha negra do rebanho, e sempre viveu como um “incompreendido”.

Quando já tinha seus dezoito anos, Azulão seduziu uma de suas irmãs. Teve que fugir do local para não ser morto pelos moradores do povoado, ou mesmo pelo pai, que era um caboclo direito e enérgico. Da fuga ao cangaço do capitão Virgulino, foi um passo. Esse fato da sedução da irmã, porém, não era do conhecimento de Lampião, e Azulão nem por sonho gostava de comentá-lo. Eu descobri tudo porque várias vezes o bando passou por Várzea da Ema, lá ninguém o admirava. Mas o respeitavam, e ele, tão cínico era, que sempre visitava a família. Todos os parentes falavam com ele, menos o pai, que o detestou até morrer, mas a mãe e os irmãos, inclusive a irmã seduzida, conversavam com Azulão. Era um tipo alegre e valente, mas dado a perversidades. Não teve muito tempo de cangaço, no máximo três anos, pois as balas da volante puseram-lhe termo à vida numa refrega em Monte Alegre.

Outro “cabra” ruim que conheci foi Português, um caboclo forte que andava muito com Corisco. O seu apelido nada tinha a ver com o aspecto físico, salvo a parte de força. Era calado e perverso, tão calado, que ninguém sabia sua origem. Durou muito tempo no bando e foi morto pouco antes de Lampião, quando cercado por soldados, resolveu se entregar. Sua rendição foi a última asneira que fez, pois a volante deu cabo de sua vida tão depressa, logo que o teve nas mãos. Na prisão, contaram-me que o esfolaram depois de morto.

PAI E FILHO

DOIS tipos curiosos eram o velho Faustino e seu filho Hortênsio. Faustino era apelidado de Pai Véio, mas não se trata de outro cangaceiro degolado pela volante, muito conhecido também por Moitinha, e que atendia pelo mesmo apelido. Seu filho Hortênsio era conhecido por Arvoredo, e deixou nome no Nordeste por suas estripulias.

Era o único caso do bando de pai e filho se entregarem ao crime, e a razão disso merece ser contada. Faustino era um homem pobre, mas que vivia bem, trabalhando em Salgado Melão. Era, se não me engano, tio de Corisco, mas como viviam tão distantes, creio que só foram conviver mesmo no bando.

Faustino cuidava de sua terra, e o que tirava dela dava para sustentar a mulher, filho Hortênsio e uma filha. Como o caso de Lampião, um tal sargento Otaviano resolveu apoderar-se de suas terras e invadiu com a “força” a fazenda, num dia em que Arvoredo lá não se encontrava. Soldado do Nordeste e cangaceiro é a mesma coisa, pois, para mim, soldado é cangaceiro com farda... Eles pegaram o velho Faustino e, sob as ordens do sargento Otaviano, deram-lhe uma coça daquelas que só se dá no assassino de nossa mãe. Deixaram o pobre velho quase sem vida e, para tirarem o ânimo dele em permanecer naquelas terras, agarraram a mulher e a filha e levaram-nas para o curral. Um a um, todos violaram as infelizes, inclusive o famigerado sargento, um dos tipos mais nojentos que a Polícia abrigou em suas fileiras. A moça, irmã de Arvoredo, apesar de donzela, resistiu ao monstruoso ato da soldadesca, mas a velha faleceu logo após. Faustino também recuperou-se e, quando ficou bom, compreendeu não ser possível viver mais ali, pois tudo fora devastado e os soldados voltariam, sempre numerosos e sanguinários. Arvoredo compreendeu a desgraça e concordou com o pai, que findou por propor ao filho ingressarem no cangaço e dali por diante não deixarem mais um soldado vivo. O filho, fortemente abalado com a morte da mãe e a violação da irmã, concordou e, depois de deixarem a irmã entregue a parentes distantes, entraram com fúria no crime e cedo estavam sob o comando do capitão Virgulino, ávidos de levar sua vingança adiante.

FÚRIA SANGUINÁRIA

FORAM dois cangaceiros terríveis Pai Véio e Arvoredo. Não que tivessem ódio de tudo e de todos, mas sempre que se tratava de matar “macacos”, eles estavam prontos. Soldado que caísse ferido, os dois liquidavam com prazer. Qualquer coisa poderia ser perdoada por eles, salvo a vida de um soldado. Eram as recordações das crueldades praticadas pelo sargento Otaviano que mantinham acesa aquela fúria sanguinária, que durou enquanto puderam ser cangaceiros.

Fora disso, porém, eram criaturas calmas, muito embora o cangaço embruteça qualquer um, e Arvoredo não escapou à regra. No final de sua vida era um demônio, já fascinado por tirar com crueldade a vida de todos. Mas Faustino não se alterou. Seu caso era com os soldados. Eram, porém, tristes, e Faustino costumava dizer, quando se falava em cangaço, que “Deus não andava com aquela gente”... E era verdade, não andava para não ver do que eram capazes. Pena é que não viu também as estripulias do sargento Otaviano...

PAI VÉIO FOI POUPADO

NUMA refrega no interior da Bahia, pegaram o velho Faustino e, talvez por já ser idoso, levaram-no preso. Seu filho morto traiçoeiramente por “dois amigos” em Canoas, pois sua cabeça estava a prêmio. Encontrei o velho Faustino na Penitenciária de Salvador, e apesar de ele e eu sermos caladões, conversávamos muito... Eu gostava dele e ele só me chamava de filho, não se conformando em que me prendessem, sendo eu um garoto. Nunca mais soube de sua filha e, quando lhe contaram que Arvoredo fora assassinado, sofreu muito.

Morreu pouco depois, e fui um dos que pegaram na alça do seu caixão. Teve morte calma, tal como sempre desejou, quando tinha sua fazenda, mulher e filhos. Apenas não pôde morrer em liberdade, o que não é nada demais, pois ninguém precisa estar livre para morrer. Liberdade só faz falta a quem está vivo!

Próximo Capítulo: Um “Cabra” Covarde

Fonte: facebook
Página: Antônio Corrêa Sobrinho

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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