Por Rangel Alves
da Costa*
Os tempos são
outros, e como foram modificando tudo. E na esteira dos tempos novos a negação
das tradições, dos costumes, dos afazeres próprios de um povo. Logicamente que
os avanços tecnológicos e os modismos relegaram ao esquecimento até mesmo os
hábitos mais sublimes e os ofícios mais singelos. Como disse o velho na sua
calçada, antigamente se passava e retornava, e hoje apenas se vai sem olhar pra
trás.
Somente nas
distâncias interioranas, naqueles lugares onde as porteiras do progresso ainda
não foram completamente escancaradas, ainda é possível encontrar alguns
costumes que fincaram nos povos como raízes. Mas apenas alguns, pois tantos
outros já foram, em nome das facilidades da vida, devidamente expurgadas do dia
a dia das pessoas, até mesmo as mais humildes.
Muito há que
se recordar. O remédio recolhido ali mesmo no quintal, o fogão de lenha com a
panela de barro por cima, a vasilha de leite à porta esperando o leiteiro
chegar ao alvorecer, o cuscuz sendo ralado para depois perfumar os quintais
sertanejos, o café sendo batido em pilão e depois fazendo a festa do sabor na
chaleira bonita, o lavatório de mãos, a goiabada com queijo após a refeição, a
moringa à janela, as vizinhas debulhando feijão de corda pelas calçadas, as
senhoras rendeiras com suas almofadas de bilros, os velhos senhores pinicando
fumo de rolo para o cigarro de palha de milho, o arroz doce sendo oferecido
pelas ruas, o tacho de cocada defronte às casas, a vendedora de araçá, o
retratista com seu tripé mágico, a chegada do circo sendo anunciada em festa, o
bilhete de amor deixado à janela, a menina bonita toda faceira com seu vestidinho
de chita. Mas os tempos são outros.
Não há mais
pomar no quintal, não há mais fruta madura ao amanhecer. Não há mais feijão
sendo batido pelos arredores nem aquela imensidão de grãos espalhados pelas
calçadas. Não há mais caçada que resulte em preá, codorna, nambu ou qualquer
outro animal de caça. Não há mais passarinho pulando de galho em galho nem
gorjeios pelos quintais. Não há mais ferreiro fazendo chocalhos nem velha
senhora preparando um xarope bom. Desde muito que não se faz sabão de cinzas
nem manteiga de garrafa da boa. Até o leite de hoje não tem serventia à
coalhada. Poucos são os carros de bois que ainda rangem pelos estradões, raros
são os transportes no lombo de burros. Quando a noite cai, ao invés de acender
o candeeiro ou a lamparina, basta apertar o botão da energia elétrica. O
radinho de pilha deu lugar à televisão, o fogo de chão ao fogão a gás, o pote e
a moringa à geladeira. Até mesmo lavanderia já não é comum pelos quintais.
Mas ainda
recordo do muito que havia e hoje foi relegado ao esquecimento. É como se ainda
avistasse aquelas sertanejas passando com latas ou baldes na cabeça em direção
aos tanques e barragens pelos arredores. Seguiam em grupos, num converseiro
danado, e voltavam já molhadas de suor e da água que escorria, em passos lentos
e cuidadosos. E também outras mulheres passando com imensas trouxas de panos em
direção ao riachinho. Num tempo sem água encanada, sem energia elétrica e
máquina de lavar, não havia outro jeito senão lavar as roupas nas águas das
chuvas ou nos poços grandes formados no riachinho. Um local ideal tanto para
lavar como bater e estender as roupas molhadas.
Aquelas
lavadeiras dificilmente levavam para o riacho os panos sujos de casa, pois
procuravam sobreviver lavando roupas de outras famílias. Os panos de casa
tinham de aguardar os afazeres em troca do dinheiro do pão, da farinha, do
açúcar. Por isso mesmo que logo cedinho seguiam com trouxas imensas em cima das
cabeças. Além das roupas, sempre carregavam o sabão em pedra. E caminhando iam
até chegar às pedreiras em cujos lados as poças grandes se formavam após as
enchentes. Então começavam a lide. Molhar os panos, passar sabão, esfregar,
bater, enxaguar e depois estender nas pedras ao redor. E cantavam enquanto
exerciam seus ofícios de lavadeiras:
O meu amor
partiu
diga comadre
se alguém viu
o meu amor
quando partiu
o meu amor me
deixou
numa tristeza
sem fim
para mim tudo
acabou
só há tormento
em mim
onde está meu
bem querer
cadê comadre
cadê
já não posso
mais sofrer
Debaixo do sol
sertanejo, com rostos avermelhados dos esforços para esfregar e com suores
caindo como gotas d’água, ainda assim não se cansavam de cantar:
Sou a fulô
mais bonita
de rosto
rosado e vestido de chita
sou a fulô do sertão
e você
jardineiro do meu coração
O trabalho
todo era ensaboar e esfregar aquele monte de roupa. Não só passar sabão como
bater cuidadosamente na pedra para que a sujeira espanasse. Tudo isso era um
dureza danada, até mesmo para quem quase todo santo dia estava naquele ofício.
Mas depois era só estender as roupas em cima das pedras, ter o cuidado para o
vento não levar, que não demorava muito e tudo já estava pronto para ser
dobrado. Depois retornavam deixando para trás o eco de suas canções: Sou a fulô
mais bonita, de rosto rosado e vestido de chita...
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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