Por Rangel Alves
da Costa*
Costumeiramente
a Rede Globo de Televisão recorre ao sertão nordestino para garantir um produto
de boa aceitação nos seus folhetins, minisséries e reportagens. As paisagens,
os cenários, os costumes e as tradições sertanejas, sempre provocam fascínio no
telespectador. O mundo rural, matuto e simples, mas pujante e sedutor, em
contraste com a mesmice urbana de socialites e desajustados, torna a produção
televisiva muito mais acessível às camadas sociais que tanto se reconhecem
naquelas imagens e tramas.
Por isso mesmo
- e mais uma vez - a Globo vai buscar no Rio São Francisco e suas veias que se
espalham e adentram os sertões nordestinos, com seus personagens ribeirinhos,
lendas e histórias, o principal mote de sua superprodução programada para ir ao
ar após a atual novela das oito (nove, ou mais...). Acaso se mantenha fiel à
riqueza histórica da região, certamente que a trama irá ser de sucesso
absoluto. Tenha-se, por exemplo, Cordel Encantado, que explorou apenas uma
parte da saga nordestina e ainda assim teve imensa aceitação.
Intitulada
Velho Chico, a novela - que passará por quatro gerações - traz como trama a
saga de amor sertaneja marcada por uma intensa rivalidade familiar à beira do
Rio São Francisco, a partir da fictícia Grotas do São Francisco. O que se terá,
então, ao menos na sua vertente nordestina, serão famílias rivais, amores
proibidos, mocinhos e jagunços galopando pelos carrascais espinhentos, donzelas
suspirando, velhos coronéis comandando vidas de seus casarões, enquanto o
destino vai cuidando de tudo resolver, ou embaralhar ainda mais.
O sertão
sergipano sempre esteve sob as câmaras cinematográficas e televisivas. Canindé
do São Francisco recebeu locações de Cordel Encantado e de diversos
documentários retratando suas belezas naturais. O Cânion de Xingó e a paisagem
exuberante ladeando os montes até se molhar nas águas do velho rio são motivos
suficientes para as escolhas. Com menos suntuosidades paisagísticas, porém com
mais riqueza histórica e mais autenticidade sertaneja, logo vem Poço Redondo,
localidade que já serviu de cenário a muitas produções.
Poço Redondo
foi cenário, em 1975 e 1976, respectivamente, dos cinedocumentários O Último
Dia de Lampião (de Maurice Capovilla) e A Mulher no Cangaço (de Hermano Penna),
ambos para o Globo Repórter, e do premiado filme Sargento Getúlio. Pelos idos
de 1977, Penna retornou com grande equipe para as filmagens da película baseada
na obra homônima de João Ubaldo Ribeiro. Sargento Getúlio, porém, somente seria
lançado em 1985 e é tido como um marco de cinematografia nacional. Pelos idos
de 2010, o mesmo cineasta retoma Poço Redondo para contar a história do
ex-cangaceiro Zé Olímpio, filme baseado em fatos reais e que recebeu o título
de Aos Ventos que Virão, lançado em 2014.
Ao menos em
Poço Redondo, as equipes que ali chegaram - desde diretores, produtores,
atores, técnicos a ajudantes - sempre mantiveram um bom e cordial
relacionamento com a população, tecendo mesmo laços de amizades. Durante as
filmagens de Sargento Getúlio, por exemplo, Lima Duarte brincava e conversava
com todo mundo, sem distinção. Tomava sua cachacinha nos botequins e proseava
como um velho sertanejo debaixo de pé de pau. Os atores de Aos ventos que virão
também sempre se mostraram muito acessíveis, tendo Luis Miranda como verdadeiro
brincalhão. O próprio Hermano Penna afirma que tem aquela povoação sertaneja
como verdadeiro lar.
Contudo, muito
diferente ocorreu durante os poucos dias em que a superprodução global chegou
às margens ribeirinhas de Curralinho, nas proximidades da sede municipal. Nos
dois dias de filmagens, o que se observou foi um verdadeiro apossamento de toda
a povoação, como se aquele rincão não fosse sequer do seu povo, mas apenas da
Globo. As ruas do pequeno povoado estavam tomadas por seguranças, vigilantes e
até pela polícia estadual. Ruas fechadas, pessoas estranhas apontando aonde
veículos e pessoas poderiam seguir. Da rua da frente em diante, defronte ao
rio, então é que o nativo ou visitante era submetido às proibições mais
severas: nada do rio e seus arredores eram mais do sertanejo. Alguém chegou a
perguntar se havia alguma ordem judicial.
Para uma ideia
maior do acontecido, os bares na areia estavam sob ordens da Globo. Portanto,
não havia cerveja, peixe assado, tira-gosto, nada. Toda a margem até adiante do
rio também estava sob o comando da Globo. Assim, ninguém podia se aproximar,
deitar sob o sol ou tomar banho de rio. Aliás, todos os barcos ali presentes
estavam a serviço da poderosa. Há de crer-se, então, que até as águas do rio
estavam submetidas ao império global. Passavam mansamente porque a Globo assim
queria.
Logicamente
que não se poderia obter as melhores filmagens sem os cuidados necessários.
Nenhuma crítica às providências tomadas para que a população e visitantes não
atrapalhassem o desenvolvimento das cenas. Tratando-se de produção global,
realmente prima-se pela qualidade. Contudo, inaceitável que todos aqueles
envolvidos se comportassem como se estivessem numa terra de mando deles, onde
os sertanejos eram meros e indesejados forasteiros. E, portanto, tratados com a
máxima indiferença.
Era um mundo
somente deles no mundo que não era mais nosso. E enquanto o grande Lima Duarte,
naqueles idos, proseava com um e outro, Rodrigo Santoro mantinha segurança na
porta da casa onde se abrigava. Garanto que o Velho Chico entristeceu.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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