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terça-feira, 1 de março de 2016

SE EU NÃO VOLTAR...

Por Rangel Alves da Costa*

A vida é mistério, o viver é segredo. Ninguém tem certeza de nada. Ninguém sabe o que acontecerá no instante seguinte. Basta abrir a porta e tudo se transformar numa distância sem fim. Por isso é que sempre mantenho um escrito abaixo do copo com água e ramo de flor. E diz:

Se eu não voltar, peço que não se esqueça de acender uma vela aos pés do oratório assim que o sino da igrejinha tocar ao cair da noite. E, acaso deseje e sua fé permitir, que ore o Pai Nosso, no silêncio da voz e no diálogo com Deus.

Se eu não voltar, peço que dê alpiste e água ao passarinho e aos demais pássaros que chegarem ao redor da janela. Logo ao pé da parede, junto ao jardim ressequido, há um local apropriado para a comida e a bebida. Ele chega sempre depois que a alva da manhã começa a chamar o sol.

Se eu não voltar, peço que abra o meu guarda-roupa e espalhe bolinhas de naftalina pelos cantos. Não importa que mais tarde minhas vestes fiquem com cheiro docemente envelhecido. Também não importa que o cheiro forte faça lembrar roupa velha, pois só se guarda aquilo que se ama e só se preserva para o uso aquilo que se gosta.

Se eu não voltar, peço que abra o meu baú e reúna num só álbum todas as fotografias que restam espalhadas. Encontrará o pequeno baú em cima do guarda-roupa e a chave dentro da gaveta da escrivaninha. Só peço que tenha o cuidado de não misturar retratos mais novos com aqueles já amarelados de tempo. Meus pais e meus avós, com feições já desgastadas de afago, logo no início, e somente depois o restante das vidas que restaram fotografadas. A minha, de meus irmãos, de meus parentes e amigos.

Se eu não voltar, peço que de vez em quando passe um espanador por cima das molduras espelhadas que se alongam pelas paredes. São retratos antigos, também já amarelados, mas representando os bens mais valiosos de toda uma história familiar, desde antigas raízes. Não se importe acaso encontre alguma que pareça sorrindo, outra que pareça chorar ou ainda outra de tristeza pujante. São assim mesmo, pois ainda vivem. Ao menos em mim continuam eternizados.


Se eu não voltar, peço que não deixe às traças os meus livros na estante. Sei que não tem tempo para isso, mas de vez em quando eu puxava um Jorge Amado e ficava dialogando com aquelas moças brejeiras, com os coronéis do cacau, com os meninos de cais e sofrimento. Fazia o mesmo com José Mauro de Vasconcelos. Com este era quase uma briga, pois jamais aceitava tamanho sofrimento como aquele infligido ao menino Zezé e seu pé de laranja lima.

Se eu não voltar, peço que guarde todos os meus cds e discos de músicas clássicas. Pode ouvir se quiser, mas depois tenha o cuidado de não deixar nenhum por cima de qualquer lugar. Sonatas, noturnos, cantatas, missas, valsas, prelúdios, tudo que possa encantar ao entardecer e quando a noite cai. Por mim - e também por Tchaikovsky, Brahms, Bach, Vivaldi, Beethoven, Dvorak e muitos outros -, peço que não permita ao desalento o que há de mais doce à humana alma.

Se eu não voltar, peço que vá recolher as frutas no quintal ao amanhecer. Após a porta dos fundos, após o velho pilão e o tronco de baraúna deitado ao chão, há uma diversidade de árvores que brotam frutos nas estações. Um mamoeiro, uma mangueira, uma goiabeira, um sapotizeiro. Não requer nenhum trabalho, basta olhar para o chão e encontrará uma colcha apetitosa de frutas caídas e prontas ao saborear.
Se eu não voltar, peço que de vez em quando me substitua num ato solene de vida, de existência, de necessidade espiritual. Na beira do cais, já quando o horizonte entristecer de seu fogo, espere a sombra da noite chegar e a luar começar a passear ao redor de tudo. Então caminhe descalço por aquela areia, enquanto escreve palavras desconexas na língua das ondas. E depois ouça o murmúrio das palavras escritas. E assim ouvirá a mais bela poesia.

Se eu não voltar, peço que não se preocupe e não pense em me procurar. Estarei bem onde estiver. Talvez apenas do lado de fora da casa ou numa estrada longínqua. Talvez escondido na copa de alguma árvore ou ajoelhado contrito perante o altar da igreja mais distante. Ou já de retorno depois de haver colhido a flor e o espinho. Ou permanecendo numa cruz de breve epitáfio: Ele a Deus retornou!

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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