Por Ana Francisca Ponzio - Especialpara A Folha
Hoje dona Sila tem medo de cobra e sapo. Nem parece a cangaceira que, há quase 60 anos, participou do bando de Lampião, o mito das caatingas, misto de bandido e justiceiro, que morreu em uma emboscada em 1938.
Costureira aposentada, Sila é viúva de Zé Sereno, homem de confiança de Lampião. Foi ele quem a sequestrou, quando ela tinha 14 anos, para transformá-la em companheira e cangaceira.
Os dois tiveram quatro filhos e ficaram juntos até que um enfarte o matou, em 1981. Na época, já viviam em São Paulo, para onde vieram em 1945, após a anistia concedida por Vargas aos cangaceiros sobreviventes.
Alheia às versões sobre o cangaço, Sila está lançando um livro de memórias.
``Sila - Memórias de Guerra e Paz" narra as experiências da autora desde a entrada no cangaço. ``A partir de meus depoimentos, foi lançado um livro sobre minha vida, em 84. Como a assinatura era de outra pessoa e nunca vi a cor do dinheiro, resolvi contar minha história para que meus netos saibam que fui uma mulher corajosa e batalhadora".
Na verdade, Sila é o apelido que Ilda Ribeiro de Souza ganhou na infância. Nascida na cidade de Poço Redondo, interior de Sergipe, era filha de um fazendeiro. Com oito irmãos, ela perdeu a mãe aos seis anos e o pai aos 13.
Aprendeu a costurar e bordar -habilidade que continuou praticando no cangaço, durante os curtos períodos de trégua policial. Apesar da aridez do sertão, os cangaceiros gostavam de vestir roupas enfeitadas, além de usar jóias.
Andar perfumado era outro hábito dos homens e mulheres do cangaço. ``Ganhávamos perfumes estrangeiros dos fazendeiros que nos protegiam. Banho era mais difícil, só tomávamos quando parávamos em algum lugar seguro."
Ao contrário do que já se disse, os homens do cangaço não costuravam. ``Esta era uma tarefa das mulheres. Cozinhar, sim, era costume dos cangaceiros", diz Sila.
Ela conta que teve um filho um ano após se juntar a Zé Sereno. ``Maria Bonita foi a parteira". Como não eram permitidas crianças no cangaço, Sila entregou o filho, que chamou de João do Mato, aos cuidados de conhecidos de sua família. Muitos anos depois, ela soube que o bebê morreu com poucos dias de vida. ``Era uma vida sacrificada. Só cangaceiro aguentava, os soldados não".
Sila acompanhou o bando, ainda que contrariada com Zé Sereno por tê-la raptado.
No segundo dia de cangaço, após muita caminhada, ela presenciou o primeiro
confronto entre o bando de Lampião e os mocas, ou macacos, como eram chamados
os soldados. ``Com o tempo, a gente vai se acostumando com o que é bom e o que
é ruim", comenta Sila, na casa em que mora com o filho mais novo, Wilson,
no Butantã (zona oeste de SP).
Sila nunca entendeu bem os porquês do cangaço. ``Não havia muito tempo para
conversa".
Contudo, ela guarda boas lembranças dos antigos companheiros. ``Éramos uma
família. Todos eram iguais e as mulheres sempre foram muito respeitadas. Os
soldados é que faziam barbaridades e botavam a culpa em Lampião."
O rei do cangaço, afirma Sila, era calmo, leal, honesto, valente, tinha senso de justiça e despertava respeito. Já Maria Bonita, era mais espevitada, na opinião de Sila. ``Sempre foi brincalhona."
Na noite anterior à tragédia que abateu o grupo de Lampião, em Angico, em Sergipe, Sila avisou Maria Bonita de que luzes estranhas piscavam ao longe. ``Ela disse que deviam ser vagalumes. Na verdade, eram os macacos, já posicionados para nos matar."
Boa corredora, Sila escapou ao cerco que matou Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros, cujas cabeças decepadas foram exibidas em cidades do Nordeste. Alguns meses depois, Sila e Zé Sereno se renderam para enfrentar a legalidade no sul do país. ``Naquela época, nunca pensei que um dia relataria essa história."
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/7/30/cotidiano/28.html
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