Por Sued Carvalho – Cariri | Ceará
CÍCERO ROMÃO BATISTA ( 24 DE MARÇO DE 1844 — 20 DE JULHO DE 1934 )
Em uma manhã de 11 de abril de 1872, chegava à pequena Tabuleiro Grande um padre recém-ordenado de nome Cícero Romão Batista, inicialmente apenas para rezar uma missa pedida por dois ilustres locais. O jovem de 28 anos ansiava ir para Fortaleza trabalhar na Diocese ou continuar seus estudos, afinal, há pouco tempo, em 1854, havia sido criada a Diocese do Ceará e ainda estava no cargo de bispo aquele que foi o primeiro a ocupá-la, Dom Luís. Seria, então, a oportunidade para padres jovens da antes esquecida província do Ceará ascenderem na hierarquia da Igreja. O destino de Cícero, porém, não viria a ser tão harmonioso.
Pela noite, Padre Cícero acorda de um sonho, onde afirma ter visto Jesus Cristo a pedir que cuidasse dos pobres da região. Crente (ou não) de seu devaneio noturno, Cícero decide ficar em Tabuleiro Grande, onde exerceu com bastante dedicação a batina, praticando a caridade, visitando os idosos e orando missas com regularidade. Tal veemência em suas atividades, associadas à força da Igreja Católica enquanto parte do antigo Estado Imperial e escravista brasileiro lhe renderam influência local, que usou para cercear e atacar as manifestações culturais do povo negro do distrito, proibindo o samba, considerado como dança sensual de “escravos”, como ressalta Ralph Della Cava (1976, p. 42).
As coisas seguiam tranquilas até que, em 1º de março de 1889, a beata Maria de Araújo, uma das várias mulheres solteiras que se dedicaram a uma vida de “esposas de Cristo”, verteu, segundo dizem, uma hóstia em sangue. Tal evento já ocorria e viria a se repetir pelos dias seguintes. Não cabe à História afirmar se milagres existem ou não, mas sim analisar o contexto no qual nasce o fenômeno social que resulta do evento. Um movimento se inicia e, três meses depois, ocorre a primeira romaria, vinda do Crato, trazida por Monsenhor Monteiro. Cerca de três mil pessoas ocuparam o pequeno vilarejo, crentes de que o sangue vertido era o sangue do Messias.
A informação chega atrasada ao segundo bispo do Ceará, Dom Joaquim, que fica sabendo apenas oito meses depois do suposto milagre e de um movimento de catolicismo popular que sai de seu controle. Em um momento de perda do papel da Igreja Católica enquanto religião oficial, havia um esforço para romanizar as manifestações católicas da população, que misturavam, em uma dinâmica de circularidade cultural, misticismo e religiões de matriz afro com o catolicismo apostólico, construindo superstições e tradições particulares (como é o caso das renovações e das novenas, por exemplo). Frustrado nesse inglório trabalho por seus próprios subordinados, entre eles o Padre Cícero, o bispo reage com todo rigor, ordenando imediatamente que os párocos não se manifestem a respeito do suposto milagre e submetendo a beata, maior vítima da polêmica, a diversos testes.
Tudo terminou com Maria de Araújo enclausurada e desacreditada. Padre Cícero perdeu seus privilégios de rezar missas e ouvir confissões após diversas tentativas de se explicar para a Diocese e para o Vaticano, porém foi exaltado pelos milhares de romeiros que agora ascendiam e tinha o favor dos comerciantes que prosperavam com esses “turistas”. O suposto milagre foi também atribuído ao padre (por seu crescente poder e por ser branco e homem), e não à beata, que morreu esquecida em 1914, tendo seu corpo desaparecido nos anos 1950 e nunca mais encontrado.
Nos anos que se seguiram, Cícero Romão Batista percebeu que sua influência foi diminuindo entre os seus irmãos padres e todos seus privilégios eclesiásticos se foram. Porém, como dito acima, os comerciantes e a nova elite da vila, agora chamada de Juazeiro do Norte, eram-lhe muito gratos e, por razões de sobrevivência, o padre se alia a eles. Mais do que isso: torna-se um deles, defendendo seus interesses. Contribui com os latifundiários, naturalizando sua dominação econômica ao mandar romeiros pobres e desempregados para suas fazendas como mão de obra barata, assim como enche as oficinas que prosperavam na região com trabalhadores desesperados por um meio de vida. Sem o Padre Cícero, famílias influentes em Juazeiro do Norte até hoje, como a Bezerra, não seriam o que são, alimentadas por camponeses colocados em regime de semiescravidão que barateavam e muito seus custos de produção.
Não demorou menos de 20 anos para que Juazeiro do Norte tivesse uma pujante economia baseada no comércio religioso, que possibilitava também trabalhadores em “busca da terra Santa” para tornarem-se camponeses nas terras dos coronéis. As romarias, fruto da crença popular em um milagre supostamente manifestado através da boca de uma mulher negra que se encontrava presa, fizeram com que a maré subisse os barcos de todos os ricos, gerando uma desigualdade social tremenda, permitindo, segundo dados do Atlas Brasil, que Juazeiro do Norte tivesse, até 1991 uma taxa de mortalidade infantil de 80,6 por mil crianças de até cinco anos de idade e um IDH pífio de 0, 419, realidade que só viria a mudar em meados dos anos 2000.
Juazeiro do Norte tornou-se maior do que a cidade da qual era distrito, Crato, e tornou-se independente em 1911, sendo o Padre Cícero, vejam só, seu primeiro prefeito. Três anos após a Independência, os pobres tornaram-se, mais uma vez, buchas de canhão para os interesses das elites. O pároco emérito, associado às elites agrárias do Cariri e do Ceará e tendo, para elas, grande valor, filiou-se ao PRC (Partido Republicano Conservador), partido do governador do Ceará, Nogueira Accioly, membro e representante das elites coronelistas e tradicionais do Estado. Havia uma contradição entre a nova burguesia liberal da belle époque, cuja riqueza advinha do comércio, e a burguesia agrária e rural coronelista do estado. Este segundo grupo havia conseguido manter no poder, por mais de uma década, Nogueira Accioly e transformava o PRC no partido dominante da política estadual. A oposição, cada vez mais fortalecida, porém, consegue, em 1912, dar um golpe e colocar no poder o liberal Franco Rabelo.
Franco Rabelo, então, cuida de consolidar seu poder e consegue um grande inimigo, o Padre Cícero e seu aliado, o político conservador Floro Bartolomeu. O novo governador chega até mesmo a enviar tropas para as proximidades de Juazeiro, estacionando-as em Barbalha, para garantir que a nova ordem, das elites comerciais, fosse estabelecida e mantida em todo o Ceará. A isso Padre Cícero reage, junto aos coronéis e ao “Dr. Floro”, aproveita-se da movimentação das tropas para convencer romeiros de todo o Nordeste que a “Jerusalém do Sertão”, Juazeiro do Norte, estava ameaçada pelas tropas mundanas. Romeiros, policiais da cidade e jagunços dos coronéis formam um exército para defender a autoridade de seus exploradores tradicionais, os latifundiários, contra outro modelo de exploração (mesmo que mais progressista), convencidos de que lutavam por uma causa sagrada. É o mais cru exemplo do uso da religião usada como ideologia e forma de reprodução, como havia pensado Marx e como pensaria Lukács anos depois.
O evento ficou conhecido como Sedição do Juazeiro. Em 1914, milhares de fiéis do Padre Cícero cavaram uma trincheira em volta da cidade usando panelas e algumas pás, e venceram as tropas estaduais usando armas de fogo, facões, foices e enxadas. Atitude heroica, a incrível força popular usada para a permanência da exploração do trabalho. Os romeiros perseguiram as tropas até Fortaleza e, lá, foi destituído Franco Rabelo, sendo o poder devolvido ao PRC. As forças conservadoras que haviam feito sua fortuna sobre o trabalho escravo no Império estavam mais uma vez no poder, graças ao “Santo” popular. O “maior cearense do Século” tornou-se o que é, até nossos dias, mais por sua atuação política do que por sua atuação paroquial. Padre Cícero também se tornou grande proprietário de terras, fazendo jus ao título de “coronel de batina”.
Sued Carvalho – Cariri | Ceará
BIBLIOGRAFIA.
ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO NO BRASIL. Juazeiro do Norte, disponível em: http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_m/juazeiro-do-norte_ce, acesso em 24/03/2020.
DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Juazeiro. 2ª ed. Paz & Terra, Rio de Janeiro, 1976.
ENGELS, Friedrich. Anti-Duhring. 1º ed. Boitempo Editorial, São Paulo, 2015.
PEREIRA, Cláudio Smaley Soares. DA “CIDADE DO PADRE CÍCERO” A “CIDADE DO CAPITAL”: A MORFOLOGIA E A CENTRALIDADE URBANAEMJUAZEIRO DO NORTE/CE, disponível em: http://www.cbg2014.agb.org.br/resources/anais/1/1403638206_ARQUIVO_DACIDADEDOPADRECICEROACIDADEDOCAPITAL-MORFOLOGIAECENTRALIDADE.pdf, acesso em 24/03/2020.
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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