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sábado, 12 de novembro de 2011

ADÍLIA, A CANGACEIRA QUE CONHECI (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa

Conheci Adília dentro da minha casa, no convívio cotidiano com minha família em Poço Redondo.


Lembro como se fosse hoje da morena trigueira, chegando ao escurecido, alta, esguia, esbelta, de rosto alongado, queixo fino e olhos negros sempre brilhantes, cabelos também negros e aquele jeito simples de mãe de família que nem de longe parecia aquela mesma Adília que ainda mocinha, quase menina, entrou para o


bando do Capitão Virgulino; a mulher/menina companheira do cangaceiro Canário.

Pena que a historiografia, os estudiosos e pesquisadores tratam os seus personagens com a frieza da conveniência, muitas vezes traçando um painel muito diferente daquilo que a pessoa pesquisada realmente foi. Pedindo desculpas aos cangaceiristas (a moda é cangaceirólogo, vixe Maria!) das academias, não tenho dúvidas em afirmar que Adília, mesmo durante as batalhas sangrentas, sempre foi muito mais aquela menina meiga e pacata do Alto de João Paulo, do que uma sedenta e furiosa figura de arma em punho.

Com o pouco que convivi com ela posso afirmar isso, pois é impossível que aquela doçura de mulher tivesse mudado repentinamente seu comportamento após a morte de Lampião (28 de julho de 1938, na Grota do Angico, em Poço Redondo), sem ter sido sempre, em qualquer lugar e circunstância, a dedicada mãe de família e alegre amiga, sem jamais deixar transparecer resquícios da vida passada, mágoas ou ressentimentos.


Nascida Maria Adília de Jesus, entrou para o cangaço com menos de dezesseis, influenciada pelo grande amor de sua vida, o conterrâneo e também cangaceiro Canário. Como a sua família não aceitava o namoro, a menina prometeu ao namorado que iria com ele até o inferno se fosse preciso. Se não foram para as agonias dos subterrâneos de Hades chegaram bem perto disso, pois a vida no cangaço teve na dor e no sofrimento algumas de suas principais características.

Como afirmado anteriormente, lembro como se fosse hoje.


Meu pai, Alcino Alves Costa, prefeito à época, a casa da Rua de Baixo sempre cheia de familiares e amigos, no entra e sai de pessoas uma destas sempre se demorava mais ali, ficava horas e até o dia inteiro ajudando minha mãe D. Peta. Era a ex-cangaceira tomada de amizade à nossa família, numa consideração que de repente eu já estava chamando ela também de mãe.

Falando e sorrindo com suas duas covinhas no rosto, mandava que eu sentasse no seu colo e começava a fazer cafuné e contar histórias, mas coisas muito diferentes do que poderia muito bem falar. Mas o menino nada tinha a ver com sua vida cangaceira, nem ela gostava de revirar baús curtidos pelo resto do embornal. E contava que era uma vez, e dizia que um dia, mas tudo bonito e sem sofrimentos, balas e mortes no meio.

E foi num desses momentos de intenso convívio que um dia descobri em Adília um pequeno detalhe que jamais esquecerei e que me uniu cada vez mais a ela, num amor de filho e mãe. Eis que atirado pelo chão e ela sentada, enxerguei na sua perna, não lembro bem se direita ou esquerda, já próximo ao pé, uma parte mais funda na pele, que chegava adentrar o osso. Era como se a perna tivesse sido fortemente ferida naquele ponto e que, depois da ferida curada, ficou uma visível cova.

Perguntava o que tinha sido aquilo e num sorriso bonito dizia sempre que já tinha nascido com aquela barroquinha na perna, porém talvez recordando a cada momento a saraivada e a bala da volante atingindo o local e os instantes seguintes de dor e desespero. Mesmo que pensar nisso ainda lhe doesse no espírito, respondia com o sorriso e deixava que brincasse com aquela marca na pele e osso das durezas da vida cangaceira.

 As companheiras Adilia e Sila. Tempo de guerra.

Nossa amizade ficou tão fortalecida depois dessa descoberta que nem se importava quando eu mandava ela sentar no chão e estirar a perna para que eu colocasse água na barroquinha. E veja o que menino faz: enchia e sugava a água na perna da ex-cangaceira. Assim, muitas vezes brinquei com aquela marca e bebi água dali sem saber que a minha boca experimentava o verdadeiro sertão. Era uma cacimba cangaceira!

Depois fui crescendo e a sede da meninice foi indo embora. Pensei que havia crescido e nunca mais atravessei o riachinho e fui ao Alto de João Paulo ao menos visitar Adília na sua casa simples e aconchegante. Morando na capital, soube de sua morte em março de 2002, aos 82 anos.

Fui ingrato Adília, perdoa-me.
Só quando a gente tem sede é que lembra que existe água...


Rangel Alves da Costa é Poeta e cronista.
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com



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