Por: Rangel Alves da Costa*
Uma casa velha
no sertão. Não na cidade nem nos povoados, mas na beira da estrada de chão
batido, lá nas distâncias de tudo.
Uma casa velha
e empobrecida, de barro batido e cipó, telhado de pouca telha e muita palha
ressequida, em cujas brechas davam para se avistar uma lua imensa, bonita. E
também por onde entravam raios de sol escaldante.
Na casa velha
uma pequena família. O marido e a esposa e dois filhos. Ele sem ter o que
plantar nem colher, desempregado de tudo, aperreado de enlouquecer. Ela também
sem ter o que fazer. Sem barro no barreiro não havia como moldar nem pote nem
panela.
Os dois filhos
vivendo o sofrimento da inocência esquecida pela sorte e pelos poderes
públicos. Sem escola nas redondezas, não tinham como estudar. Sem comida na
panela, com apenas uma pedacinho disso ou daquilo, também quase não tinham o
que comer.
Casa de barro
e a família também, não seria engano dizer. E barro prestes a despedaçar,
estilhaçar a qualquer momento. Ele com uma dor escondida. Ela com uma dor
remoendo. Os filhos na dor chorada. A fome. A fome também causa dor na barriga,
no estômago, no pensamento.
Nem precisava
falar da fome. Ela estava em todo lugar, nua, gritando, impossível de ser
suportada. Mas tinha de ser. Gente grande suporta essa dor, mas os pequeninos
não. Dor danada de acontecer. Fome terrível por todo lugar.
Duas panelas
de barro, porém emborcadas, em cima de uma mesa velha. Também duas de alumínio
penduradas numa trempe de canto de canto de parede. Pratos de alumínio
arrumados um sobre o outro e as colheres por cima. Tudo empoeirado. Quase sem
uso.
Dois potes e
uma moringa. Em apenas um pote se avistava o barro do fundo molhado. Sinal que
ainda tinha água, mas bem pouquinha mesmo. Como costumeiro acontecer, não havia
cobra enrodilhada por trás do fundo do pote. Diante da situação, certamente que
havia preferido morrer debaixo do sol.
A moringa
estava fazia, mas colocada no umbral da janela. Segundo a crendice daquele
povo, mesmo vazia ele tinha de ser mantida ali. A boca vazia, virada pra cima,
acabava gemendo de sede. E tal gemido era ouvido pelas forças da natureza. E
somente assim a chuva poderia cair mais depressa.
Desse modo,
dia e noite e noite e dia e a moringa ali de boca aberta, sedenta, no umbral da
janela. Só que os dias passavam, também os meses, e nada de seus rogos serem
atendidos. Nenhuma nuvem de chuva, nenhuma gota d’água caindo.
Preocupados
apenas em olhar a moringa de vez em quando e lançar os olhos sem brilhos para o
céu azulado e o sol escaldante, jamais atentaram para o que acontecia logo ao
lado da moringa, num cantinho do umbral.
Ali, calma e
silenciosamente, foi crescendo uma plantinha. Mesmo sem gota d’água derramada
por cima, mesmo sem jamais qualquer adubo, verdejou a ponto de fazer surgir uma
florzinha vermelha. Apenas uma.
Os dias
passavam, a preocupação aumentava com a seca, a fome e a sede se alastrando
cada vez mais. E quando olhavam em direção à janela procuravam enxergar apenas
a moringa como salvação. Mas a florzinha estava ali.
Mas o que fez
com que aquela flor vermelha brotasse daquela plantinha estranhamente nascida
ali, sem qualquer grão ter sido jogado por cima do barro duro? Sim, como uma
planta poderia ter surgido das raízes do barro petrificado, como o existente
naquela janela?
Se a fé do
povo ainda não havia surtido efeito com relação aos rogos saídos da boca da
moringa, outra coisa aconteceu. Tanto o pai como a mãe, fugindo do olhar das
crianças, corria para chorar na janela. No cantinho da janela.
Não chorava do
lado que estava a moringa, mas do outro. E neste lado, cada lágrima caída foi
sendo acolhida pelo barro como semente. Até vingar, brotar e virar flor. Uma
flor vermelha na janela.
E a natureza,
tão encantada com a florzinha ficou que passou a temer pelo seu futuro naquele
mundo de sequidão. E por isso fez a chuva cair por todo lugar. Um mundo de
benção caída do céu para alimentar o jardim do lugar: o povo, a terra, a
vida...
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta
e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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