Por: David de Medeiros Leite (*)
Primeiro, a notícia por um telefonema; em seguida, uma retrospectiva, como se assistisse um filme em preto-e-branco. O cenário, como não poderia deixar de ser, fazenda Barrinha dos Duarte. Não existe sequência lógica e cronológica bem retratada, pois sou como um telespectador que que pegou o filme pela metade e tenta entender o reconstituir o pedaço perdido. Falarei apenas do pouco que vi e vivi, pois o enredo construído pode ferir a belíssima história que um dia será resgatada.
Antonio Néo Pereira
Antonio era uma espécie de curinga. Foi por anos a fio responsável pelas compras. Sua viagem diária a Mossoró era uma rotina incorporada aos hábitos da fazenda, tal qual a ordenha na madrugada. Ele saía pedalando
sua bicicleta antes do do sol nascer - aí surge o inevitável questionamento: será que o percurso antes dos anos sessenta era a cavalo? Voltava cheio de encomendas e recados antes do pôr-do-sol, ou com ele. Regresso tranquilo e prestação de contas idem.
Dona Chiquinha Duarte - proprietária da fazenda Barrinha
O entendimento com Madrinha Chiquinha, e outros que porventura lhe haviam encomendado, era macio. Tudo sempre em ordem com respostas precisas. Débitos e créditos correspondentes.
Era a grande companhia da Casa Grande. Vigia, segurança, ou coisa do gênero, são termos inadequados. Companhia amiga, daqueles que inspiram bem-estar. Também sem alardes. Jantava, ouvia a
"Voz do
Brasil". participava, como ouvinte, das conversas no alpendre e logo,
recolhia-se.
No jantar, principalmente quando tinha muitos convidados, em meio a conversas animadas e histórias do dia, sua postura era sempre a mesma: ouvia e, no máximo, esboçava um ar de espanto ou de sorriso, conforme sugerisse o momento.
Sua rotina de viagens diárias à cidade sofria pequena alteração no período invernoso. Sim, porque ele também atuava como agricultor. Era até estranho vê-lo durante o dia pela fazenda. Mesmo assim intercalava suas atividades no roçado com idas pelos caminhos molhados.
Domingo era diferente. O chapéu era mais alinhado. A camisa de manga longa e a camiseta branca por baixo davam o tom da roupa domingueira. O retorno também era diferente. Voltava para o almoço trazendo um jornal.
Após o almoço ia direto para a casa de Toinha de Mundoca, professora do lugar, para que ela lesse as notícias para ele. Como um homem que só sabia "ferrar o nome" desejava tanto ser bem informado?... Assim era. Tenho certeza de que as reações às notícias não eram diferentes daquelas que costumava esboçar nas rodas do alpendre ou ouvindo a "Voz do Brasil".
Toinha de Mundoca
Com a morte de Madrinha Chiquinha e a consequente venda da Fazenda, foi morar na cidade, bairro Nova Vida ou Malvinas, como é popularmente conhecido. E lá viveu esses últimos 13 anos. Longos anos. Mais longos do que os setenta, antes vividos. Lembranças. Recordações. Velhice instalada. Vida abjeta. Como ir à Mossoró se já estava lá? Como fazer compras para alguém se na cidade todos as fazem? Cadê o roçado? E a lamparina?
Nesta fase só estive com ele uma única vez.
- Como vai, Antonio Néo?
- Ultimamente ando sempre adoentado, respondeu.
Voltou com a pergunta inevitável:
- Tem ido por lá?
Nem sei se respondi ou se apenas balancei a cabeça. Fiquei embaraçado ao vê-lo com os olhos rasos d'água. Tentei mudar o rumo da prosa. Falamos de sua vida nova. Disse que era bem cuidado e que contava com a atenção e o carinho de seus irmãos, sobrinhos, etc. Tentou passar tranquilidade, mas a saudade era visível...
Por fim, um esclarecimento necessário: o título poético desse artigo não é meu. Valho-me do belíssimo poema Isabel, do grande norte-rio-grandense João Lins Caldas, por um certo paralelo que me permiti fazer em relações aos personagens. Isabel, desconhecida pelo poeta, Antônio conhecido e familiar. Ambos cansados e com linhas nas mãos. Sortes diferentes, destinos iguais.
UM POUCO SOBRE O AUTOR:
(*) David de Medeiros Leite nasceu em 17 de Junho de 1966, em Mossoró-RN. É bacharel em administração pela UERN e em direito pela UFRN. Possui pós-graduação em administração pela UNP. Já exerceu vários cargos em empresas privadas e públicas. É Advogado e
professor da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte.
David de
Medeiros Leite nasceu em Mossoró-RN, em 17 de Junho de 1966. É advogado, administrador de
empresas e professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte -- UERN.
Em fevereiro de 2006, David Leite iniciou sua jornada na Espanha, onde cursou o
Máster em Democracia y Buen Gobierno, como também, doutorou-se em Direito
Administrativo pela Universidade de Salamanca -- USAL, cuja defesa de tese
ocorreu em 24 de janeiro de 2011, obtendo a nota Sobresaliente cum laude.
Durante o período vivido em Salamanca, David Leite escreveu as crônicas que
agora reúne neste livro. A maioria delas foi publicada na Revista Papangu.
Houve ainda publicações no jornal Gazeta do Oeste, jornal De Fato, na Revista
Oeste e blogs.
Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte --
IHG-RN e do Instituto Cultural do Oeste Potiguar -- ICOP, além de pertencer à
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Norte -- AMLERN e à Academia
Mossoroense de Letras -- AMOL.
PUBLICOU OS SEGUINTES LIVROS:
Companheiro Góis -- Dez anos de Saudades, Coleção Mossoroense, 2001;
- Os Carmelitas em Mossoró, Coleção Mossoroense, 2002 (em co-autoria com Gildson
Souza Bezerra e José Lima Dias Junior);
- Ombusman Mossoroense, Sebo Vermelho, 2003;
- Duarte Filho: Exemplo de Dignidade na Vida e na Política: Sarau de Letras, 2005
(em co-autoria com Lupércio Luiz de Azevedo);
- Incerto Caminhar, Sarau de Letras, 2009 (Premiado no II Concurso de Poesia em
Língua Portuguesa, promovido pela Universidade de Salamanca - USAL e pela
Escola Oficial de Idiomas de Salamanca -- Espanha).
- Casa das Lâmpadas - 2013 - Último
http://www.youtube.com/watch?v=OoyDWB6ikw4
Este artigo foi extraído do livro: "OMBUDSMAN MOSSOROENSE", mas com autorização do autor.
Autor: David de Medeiros Leite
Páginas: 41, 42 e 43.
Setembro de 2003
Nota do administrador deste blog:
Antonio Néo Pereira era irmão do meu pai: Pedro Nél Pereira Ele faleceu solteirão, aos 83 anos. Geralmente quando os seus conhecidos lhe perguntavam porque não havia se casado, ele respondia: "-Não me casei porque nunca tive tempo para isto".
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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