Por Rangel Alves
da Costa*
Com a última
seca que se abateu na região, o sertanejo, antes dono de rebanho abastado, foi
se desfazendo, uma a uma, de sua criação, e só restou um boi e uma vaca. Já
estavam colocados à venda quando o horizonte sombreou, nuvens negras e prenhes
foram se aproximando, os trovões começaram a roncar e uma chuvarada boa começou
a cair.
De tão magros
que estavam, bastou que a trovoada caísse por cima do couro ossudo e logo se
arriaram. Fracos demais, sem forças suficientes para levantar, quase morrem na
enxurrada que veio inundando tudo. Desesperado, o dono pediu ajuda a vizinhos e
enfim conseguiram levantar e fazê-los ficar sustentados numa espécie de rede de
couro cru. Comendo no cesto, bebendo no balde, dois dias depois já andavam
trôpegos pela pastagem já brotando com feição verdejante.
Solitários e
entristecidos, ainda que seus olhos brilhassem diante dos brotos que iam
surgindo sobre a terra, ruminavam nostálgicos o dia inteiro. Talvez a saudade
do restante do rebanho, ou talvez a visão angustiada na pastagem agora tão
vazia e solitária. Mas não era para ser assim, eis que o boi e a vaca não
estavam distantes nem dava para um não sentir a presença do outro.
O boi avistava
a vaca, se aproximava, ficava por ali focinhando a terra, remoendo pedaços, mas
nada que os fizesse dialogar com aqueles mugidos próprios dos animais. Com a
vaca acontecia a mesma coisa. Ao cair da tarde, quando o sol vai deixando as
sombras avermelhadas, quem estivesse ao longe podia claramente avistar aquelas
duas imagens se sobressaindo na paisagem nua. Tão próximos e tão distantes.
Numa situação
como tal, a lógica dos relacionamentos aponta uma aproximação. Ali estavam um
boi e uma vaca, mas poderia ser um rapaz e uma moça. Ademais, a solidão e a
tristeza eram sentidas a cada mugido, a cada mirar o horizonte, a cada passo
que davam em busca de alguma coisa. A vaca, talvez carente, desejosa de
companhia, de afago e calor, de amor; o boi na mesma situação, eis que novo,
cheio de vitalidade, o parceiro ideal para qualquer fêmea ruminante.
A verdade é
que ninguém sabe o que se passava na cabeça daqueles dois solitários. Com o ser
humano já é difícil imaginar o que pensa e o que deseja, ainda mais complicado
quando se trata de bicho. Mas inegável que possuem sentimentos, que desejam,
que sabem buscar o melhor para cumprir seus destinos. Ora, se mugiam
entristecidos, se mostravam olhares angustiados, também sentiam solidão e
desejavam companhia. E bastava uma maior aproximação para o problema ser
resolvido.
Um dia choveu
e os dois acabaram debaixo do mesmo umbuzeiro. A vaca olhou no olho do boi, o
boi fotografou o corpo inteiro da vaca. O boi logo imaginou algo e soltou um
berro triste; a vaca mirou a chuva caindo, levantou a cabeça e mugiu
desesperadamente. Gritos de tristeza, de solidão, de angústia. Depois deitaram
bem próximos um do outro, com cada um exalando o cheiro de couro viçoso,
certamente imaginaram coisas e depois adormeceram. Na vastidão enegrecida,
enquanto a chuva caía, os dois sonhavam. Mas o que?
E a noite
inteira chuvosa transcorreu entre sonhos indecifráveis. E apenas isso, sem
mugido no ouvido, sem segredo revelado. Ao amanhecer, ainda chuviscando a vaca
foi para um lado e o boi para o outro, mas a cada passo se viravam para se
lançarem aqueles olhos cheios de indagações. Um dia a vaca jurou ter ouvido um
berro com o seu nome; e o boi guardava certeza de ouvido ser chamado pelos
berros da vaca. Mas nenhum foi confirmar junto ao outro.
Mas por que
acontecer assim, quando os dois solitários bem que poderiam se unir, se
enamorar, compartilhar aqueles momentos? Assim na vida dos bichos, assim na
vida dos homens. Quando o destino quer não há solidão a dois que faça unir, não
há desejo que seja despertado o suficiente para a mútua confissão. E mesmo
enamorados, mesmo desejando uma proximidade maior, eis que os caminhos cuidam
de afastá-los.
E por isso
mesmo que tantas pessoas e bichos vivem nos descampados da solidão, ainda que
estejam na multidão. Aquela vaca era tão bonita, aquele boi era tão garboso,
mas não haveriam de deitar no mesmo leito debaixo do umbuzeiro. Ao menos ali o
destino lhes reservara a solidão. Assim em todos os pastos e passos da vida.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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