Material do acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho
A partir de
hoje, compartilharei com os amigos a excelente matéria do jornal “o globo”
sobre o cangaceiro Volta-Seca, assinada pelo jornalista Bruno Gomes, sob o
título “Como se Forja um Cangaceiro”, publicada nas edições de Novembro de
1958.
Miséria e
abandono é que geram o cangaço
“Volta-Seca”
Ainda Teme a Justiça, e Com Certa Razão – A Culpa do Cangaço Não Está Apenas no
Coronelismo – O Fenômeno Existe Pelo Menos Desde o Século XVIII.
Duas foram as
razões que me fizeram escrever a vida de Antônio dos Santos, o Volta-Seca. A
primeira, humana, em sua essência, foi a pena de vê-lo passando miséria com
mulher e quatro filhos, sem outra fonte de renda além de três mil e oitocentos
cruzeiros mensais, proveniente do seu emprego de servente da Estrada de Ferro
Leopoldina. A segunda, foi a vontade de escrever alguma coisa interessante e
que pudesse ter utilidade para os estudiosos do fenômeno cangaço. Tenho lido
bastante a esse respeito e creio que muito ainda falta dizer para que os
prósperos possam ter uma ideia mais exata do que foi aquela terrível época de
banditismo que abalou o norte do País.
Não foi fácil, porém, convencer Volta-Seca a contar-me sua vida. E isso porque ele ainda teme o passado. Não as vinditas apenas, mas especialmente a Justiça. Por mais incrível que pareça, apesar de ter passado vinte anos trancafiado na penitenciária da Bahia, Volta-Seca ainda tem medo da Justiça. Medo compreensível não resta dúvida, já que sua própria condenação não passou de uma arbitrariedade que só mesmo no Brasil, onde tudo é possível, poderia acontecer.
O ERRO
CLAMOROSO
VOLTA-SECA
ingressou no bando de Lampião aos onze anos de idade. Ainda não tinha
completado quinze quando foi preso e remetido para Salvador. Com essa idade, de
acordo com o Código Penal Brasileiro, jamais poderia ser julgado, no que
concordaram as autoridades baianas, mas esperaram que o rapaz completasse 21
anos atrás das grades e assim, seis anos após a sua captura, submeteram-no a
julgamento numa cidadezinha do interior do Estado, por onde Lampião deixara
rastro de sangue e dor. O júri dessa cidade condenou-o a 145 anos de cadeia!
Retornando a Salvador, a pena foi reduzida para trinta anos, dos quais
Volta-Seca cumpriu vinte, tendo sido indultado pelo Presidente Getúlio Vargas,
em 1954.
Aí está a razão pela qual Volta-Seca ainda tem medo da Justiça, de nada valendo dizer-se que era menor naquele tempo, pois a cadeia ainda lhe está bem viva na memória. Tem sofrido o diabo por aí afora, e só mesmo a miséria e a confiança depositada em mim fizeram-no contar a sua vida para que eu a escrevesse.
Penso que destas memórias muita coisa poderá ser aproveitada pelos estudiosos. Não me iludo pensando que todos concordarão com as histórias do Volta Seca, mas é preciso que se diga desde início que, a respeito do cangaço, existem muitas contradições. E quero ressaltar que nesta narrativa tive todo o cuidado em não recorrer à fantasia. Não é o meu estilo que se verá aqui mas uma forma simples e jornalística de contar os fatos. Muitas vezes preferi reproduzir “litteratim” frases de Volta-Seca. Não procurei tampouco ir a arquivos ou coleções de jornais para conformar fatos com nomes e datas: escrevi o que Volta-Seca narrou. Se ele não se lembrava do nome de certa cidade, mas acrescentava que ficava perto de determinada localidade, era assim que eu punha no papel. O que ele não sabia ou não se lembrava, eu não inventei, nem procurei completar.
O APELIDO DE
“LAMPIÃO”
A HISTÓRIA de
Lampião, por exemplo, transcrevi conforme Volta Seca disse que a ouviu do
próprio Virgulino Ferreira. Não sabe qual a origem do apelido de Lampião, e
assim ficou na narrativa. Preferi não recorrer a José Lins do Rego, que
explicou o apelido de Lampião desta forma: “No fogo do tenente Levino, o rifle
do menino Virgulino parecia um Lampião na noite escura. O bicho atirava que só
metralhadora. Veio daí o apelido que por mais de dezesseis anos encheu os
sertões de pavor.”
Com a devida licença, cremos que o grande José Lins fantasiou um pouco a origem do apelido. Mas o que ele disse já não é o mesmo que outros escritores disseram, e o que existe, afinal, é uma grande confusão em torno do assunto. Como casa um diz uma coisa e Volta-Seca tem também o direito de dizer, pois é a única testemunha dos acontecimentos ainda viva, vamos dar um pouco de crédito ao rapaz.
QUEM TEM
CULPA?
NÃO
concordamos com os que põem a culpa do cangaço exclusivamente no coronelismo,
nos famosos senhores de engenho, como se desses indivíduos viesse todo o mal do
banditismo dos sertões. A meu ver, não passaram os coronéis de simples efeito
da verdadeira causa das desgraças daquela parte do País. Todo o mal dos
sertanejos está na miséria que assolou e assola ainda aquela região. Num lugar
onde ainda hoje, devido á seca, um pai troca uma filha por uma mula para poder
alimentar o resto da família, tudo pode acontecer. Quê dizer de gente que
atualmente vem comendo as mais extravagantes comidas, como jaca verde cozida?
E, finalmente, quê pensar de um Governo que ainda atualmente permite que
políticos inescrupulosos, diante de toda essa desgraça, manobrem as verbas
votadas para auxiliar os flagelados em campanhas eleitorais? Naquela época
ainda era pior, graças à política que também andava pior (será possível?) do
que hoje. E para se saber o que era a lei então, basta ler a vida dos
cangaceiros. Basta ler a do próprio Lampião, cujos pais foram assassinados por
tropas estaduais que assim procederam em causa própria, em disputa de terras.
Quem se dispuser a ler as crônicas e reportagens daquele tempo, saberá das
atrocidades narradas pelos repórteres, dos crimes praticados por sargentos e
soldados, e mesmo por oficiais.
O CANGAÇO É
ANTIGO
Pôr culpa de
tudo isso nos “coronéis” é um pouco de exagero. A culpada é a miséria, o
abandono que o Governo inexplicavelmente sempre votou àquela região. Digo
sempre, porque o cangaço é muito antigo, visto que o primeiro cangaceiro de que
se tem notícia remonta ao fim do Século XVIII, era conhecido por Cabeleira.
Depois dele, muitos vieram, mas sobre todos se destacou (já no Século XIX),
Jesuíno Brilhante. Era um nunca acabar de bandidos, mas sobressaíam os
protegidos pelos políticos. O que mais tempo durou como cangaceiro foi Antônio
Silvino, que chegou a ganhar fama de bom bandido. Dizem mesmo que no fim da
vida se converteu religioso e pregava o protestantismo. Silvino cumpria quase
trinta anos de prisão e, se vivesse, estaria com mais de noventa anos.
O mais famoso de todos os cangaceiros, porém, foi Lampião. Tanto pela ferocidade, como pelos conhecimentos de tática de combate, pois centenas de vezes derrubou as tropas regulares, muitas delas com inferioridade de homens e atacado de surpresa. Lampião inscreveu seu nome na história do Nordeste da forma mais brutal que um ser humano seria capaz de fazê-lo. Tudo que se imaginar de cruel, Lampião seria capaz de executar. E, no entanto, por dar de quando em vez esmolas aos pobres, em certos lugares, a lenda o transformou em bom moço. Já li inúmeras histórias em verso de poetas nordestinos, dizendo que ele era o “grande protetor da pobreza”...
PASTO PARA A
PSICANÁLISE
Não iremos
mais além. O cangaço já não existe, felizmente, naquelas regiões, muito embora
a miséria ainda perdure. Os que têm vocação para cangaceiro preferem emigrar para
as capitais, onde abraçam a carreira do crime. Mas, nas memórias de Volta-Seca,
uma coisa ficará para estudo. São os tipos que compunham o cangaço e um pouco
de sua vida, para que se possa fazer uma ideia de como se tornavam bandidos.
São histórias muito parecidas, mas que sempre diferem um pouco no que toca à
formação moral de cada um. Veremos que naquele amontoado de criminosos,
existiam os que não matavam padres, nem maltratavam crianças, nem mulheres. E
existiam os que faziam tudo isso, eram ótimos maridos e não podiam ver um
animal sofrer... Um psicanalista que leia esta narrativa deliciar-se-á com os
“cabras” Lampião.
O DESTINO VAI
ME EMPURRANDO
A Infância de
Volta-Seca – Influência da Madrasta – O Menino Foge de Casa – De aldeia em
Aldeia, Até o Arraial de Goloso – Em Contato Com
Dois “Cabras” de Lampião
Dois “Cabras” de Lampião
A RAZÃO pela
qual meu pai me pôs o nome de Antônio nunca me foi contada. Aliás, não sei por
que me chamo Antônio, nem também porque meu apelido, no bando de Lampião, era
Volta-Seca. O fato é que eu era o sexto de treze filhos. Meus irmãos, pela
ordem de nascimento, se chamavam: Maria, Felismina, Laura, Otília, Fausta,
José, Marcolino, João, Pedro, Francisca, Jovelina e Santa. Éramos uma família
grande, coisa muito comum onde nasci, em Itabaiana, cidadezinha distante umas
quinze léguas de Aracaju. Todos naquela localidade tinham família numerosa,
sendo que o recordista do local era um vizinho nosso, seu Manuel Tenório, pai
de 22 filhos, dos quais, vinte do sexo feminino e apenas dois homens.
Meu pai, que se chamava Manuel Antônio dos Santos, era proprietário de um pequeno sítio que dava para sustentar a família, muito embora nada sobrasse para amealhar. Ele negociava com o que o sítio produzia: algodão, cana, feijão, milho, banana e frutas. Minha mãe, que se chamava Arminda Maria dos Santos, era uma santa! Ajudava muito meu pai, além de cuidar com carinho de todos os filhos.
Nós nos sentimos felizes, vivendo bem à moda nordestina, e todos os anos, também à moda nordestina, aumentando de número... De todos, fui eu que mais trabalho dei para nascer. Vim ao mundo no dia 18 de março de 1918.
TEMPERAMENTO
DORMENTE
POUCO lembro
dos meus primeiros anos. Uma ou outra recordação passa desbotada, imprecisa,
pela minha lembrança, muitas quase desconhecidas, tal a margem de anos que me
separam delas. Mas sei de uma coisa: sempre fui um menino calado e que gostava
de brincar sozinho. Jamais gostei de grupinhos, e isso me valeu a pecha de
sonso. Era, porém, meu temperamento. Nunca fui brigão. Não me lembro de nenhuma
briga com meus irmãos ou com meninos da vizinhança. E seria difícil que isso
sucedesse, pois, solitário como sempre fui, não haveria jamais oportunidade.
Mas por trás desse temperamento pacato, sempre fui genioso. É que não se
apresentava o momento de me mostrar. Sem motivo ninguém se zanga, e eu vivia
bem, feliz, não precisando lançar mão da violência. Só vim a dar pelo meu gênio
quando já era crescido. Descobri essa faceta do meu temperamento aos nove anos
de idade. Eu já era então bem desenvolvido, ainda que miúdo. Por esse tempo já
auxiliava meu pai nos serviços leves do sítio. Aconteceu então um fato que até
hoje me causa um nó na garganta, sempre que o recordo: minha mãe morreu! Eu
gostava demais dela, e sua morte foi um choque muito violento. Mamãe foi-se com
36 anos de idade, deixando-me com nove apenas. Ela morreu cedo e me deixou cedo
demais... Vivíamos muito bem e ela me compreendia como ninguém me compreendeu
até hoje. Aliás, compreendia a nós todos, mas falo por mim. Ela adivinhava tudo
que eu pensava e queria. A lembrança de seus carinhos ainda é a coisa mais pura
que trago no coração. Pobre mãe... Não imaginava que seu Toninho, cuja cabeça
com tanto carinho ela acariciava, ia ser arrastado pelo turbilhão do mundo e
tornado pelo destino no famigerado “Volta-Seca”... Não, boa como ela era, não
poderia jamais supor uma coisa assim. Mas tenho certeza de que ela, de onde
está, pode ver o que foi a minha vida e saber que, de tudo que fiz, fui talvez
o menos culpado. E vivesse ela mais uns dez anos, provavelmente eu não me teria
tornado cangaceiro.
A GÊNESE DO
ÓDIO
DESCOBRI o
ódio em mim quando meu pai, após a morte de minha mãe (três meses apenas), pôs
uma mulher em casa. Naquela época, sua decisão foi encarada por mim e por meus
irmãos como a mais antipática possível, mas hoje em dia compreendo o desespero
do velho ao ver treze crianças sem mãe. Minha madrasta chamava-se Maria e não
era uma mulher feia. Podia dizer-se até que era bonita. Era de uma energia à
toda prova e tinha consciência da sua função de madrasta. Logo se fez senhora
absoluta da casa e vivia a manobrar meu pai, que não a contrariava em nada. Era
violenta, e desde cedo começou abater nos meus irmãos, que aceitaram a nova
vida. Eu, o mais calado de todos, não gostei... Eu não podia aceitar a ideia de
ela bater em gente que não pôs no mundo. Com resmungos e atitudes ofensivas, eu
ia demonstrando a minha reação, até que um dia, diante de minha resistência às
suas ordens, ameaçou bater-me. Ameaçou, apenas! Mas foi o bastante, pois senti
o que jamais havia sentido: ódio! Como não pude fazer nada, pois meu pai estava
perto, limitei-me a olhá-la fixamente. Eu estava passando mal. Corria pela
minha espinha um calafrio e os cabelos chegavam a arrepiar. Perdi o apetite e
não consegui dormir direito. Passei a odiar minha madrasta, a que me ameaçou
bater, coisa que minha mãe nunca fizera antes.
Num ambiente assim, com o sentimento novo que surgiu em mim, a coisa não poderia ir muito além. E não foi mesmo. Chegou ao máximo num dia em que ela bateu em Jovelina, a irmã que eu mais gostava. Ao vê-la espancando Jovelina, pus-me entre as duas e, espumando de raiva, falei-lhe: “Não bata mais nela. Se quiser bater, ponha gente no mundo. Não bata nos filhos dos outros”. Ela me olhou surpresa, mas como era disposta e sabia que era a dona da casa, respondeu-me: “Você apanha, quanto mais ela...” – “Por quê não tenta?” respondi em desafio, passando a mão num tamanco que estava no chão, próximo de mim. Ela não esperou mais e investiu furiosa. Mas foi investir e levar com o tamanco na cara! O choque deixou-a tonta e o sangue que jorrou de sua testa chamou-me à realidade. Ao vê-la sangrar, recobrei a razão e pensei logo nas consequências. Garoto, com apenas nove anos de idade, logo imaginei a reação que meu pai teria. Ele era um homem bom, mas, açulado por minha madrasta, virava fera. Foi quando decidi fugir e me dirigi para a casa de um tio, em Pinhão, seis léguas dali.
A FUGA
NA CASA de meu
tio passei pouco tempo. Meu pai foi buscar-me e, apesar de meu tio tentar
impedi-lo de levar-me, eu acabei regressando a casa. Tenho a impressão de que o
velho preferia me ver longe da minha madrasta, pois o incidente deixara uma
marca na testa dela, e marca na cara ninguém esquece facilmente, pelo menos
enquanto houver espelhos... Mas levou-me de volta, e atendeu ao pedido de meu
tio para não me espancar. Deu-me um sermão longo e exaltou as virtudes de minha
madrasta, que ele insistia em me impingir como mãe. Quando me deixou em paz,
pus-me a pensar e cheguei a dolorosa conclusão de que não continuaria em casa.
Ir-me-ia para longe, pois não conseguiria mais afinar com a mulher de meu pai.
Assim pensei e assim fiz. Nem um mês se passou e, graças à carona de um caminhão, fui para Aracaju. Meu pai tentou encontrar-me, mas não foi feliz, pois a cidade não é um arraial. Mesmo porque não fiquei perambulando pelas ruas. Arranjei, no mesmo dia da chegada, um emprego na casa de uma senhora, D. Joana, doceira das melhores que já conheci. Meu trabalho consistia em vender, num tabuleiro, os doces que ela fazia, sendo meu ordenado de trinta mil réis mensais.
Vendi doces para D. Joana durante seis meses. Meu pai depressa se esqueceu de mim, pois não me procurou mais. E mais tempo eu ficaria vendendo doces, não fosse D. Joana ter o meu hábito de não pagar os empregados. Nunca tinha dinheiro trocado para me pagar.
- Dona Joana, dizia eu, preciso de dinheiro pra comprar roupa.
- Não tenho miúdo, meu “fio”, era a resposta da velha. Nunca tinha miúdos. Dos seis meses de trabalho, consegui receber dois apenas, e assim mesmo sabe Deus como. Não vendo futuro naquilo, resolvi mudar de pouso. Ia fugir novamente. Tracei um plano. Fugiria, mas levaria algum dinheiro do que D. Joana me devia. Como ela não pagaria de forma alguma, certo dia falei-lhe: “D. Joana, amanhã faça bastante doce. Faça doce de leite, de groselha, de ovos, muito, mesmo, porque vai chegar um trem da Bahia e eu vendo tudo. O trem vai a Propriá e volta”. O trem voltaria, eu é que não. D. Joana, diante disse, trabalhou aquela noite com uma rapidez nunca vista. Encheu o tabuleiro, que tinha dois andares, (...) fui falar com o Delegado, seu Josias, a fim de explicar o caso dos doces, pois sabia que D. Joana não tardaria a aparecer. O delegado ouviu tudo e disse que eu fizera bem, que não tivesse medo, e acabou me oferecendo um emprego na casa dele. O serviço constava de pôr barris com água no lombo de um burro, para consumo da casa. Serviço duro demais para um garoto de dez anos. Faltavam-me forças, e o delegado compreendeu. Assim mesmo fiquei na casa de seu Josias ajudando. Um ou dois meses depois chegou o Natal. A cidade estava em festa e eu passeava pela feira quando vi D. Joana em minha frente, juntamente com um soldado.
- “Sordado”, pode “prendê” esse “minino” aqui, ordenou ela.
- Quê fez o menino? – perguntou o soldado.
- “Me robou”.
- Você é mais ladrona que eu, respondi zangado.
Diante disso o soldado levou-nos à Delegacia, onde seu Josias, ao ver-nos entrar, logo compreendeu tudo. Fez-se, porém, de desentendido e ouviu a queixa de D. Joana, para, em seguida, dirigir-me a mim.
- Então? Quê me diz o “senhor” da queixa que esta senhora veio dar? O “senhor” era empregado dela e sem motivo algum “arribou” com o tabuleiro e os doces. Quê fim o senhor deu ao tabuleiro?
- Ora, seu Josias, perdido pela metade, perdido de vez, respondi. O tabuleiro eu joguei dentro da maré. O caso é que ela me devia dinheiro, não pagava... Quer dizer, na justa razão, eu ainda tenho prejuízo.
- Ele não teve paciência de esperar, falou D. Joana. Eu ia pagar tudo. É que... não tinha trocado na hora...
O delegado olhou-me sério e disse:
- Quanto apurou nos doces?
- Cem mil réis, respondi; mentindo, é claro.
- Quanto ela lhe devia?
- Cento e vinte mil réis.
O delegado olhou para D. Joana e falou:
- Dê ao menino os vinte mil réis que falta. Você é que é ladrona.
- Mas... e o meu tabuleiro? – reclamou d. Joana.
- Joguei no mar, deve estar boiando, respondi cinicamente.
A pobre mulher ainda quis protestar, mas vendo que seu Josias já estava decidido a fazê-la pagar-me, puxou vinte mil réis da bolsa e pôs na mesa, seu Josias então disse para ela:
- Pode puxar daqui que eu não quero vê-la mais!
Bom homem, seu Josias. Gostava de mim e eu muito dele, mas eu não queria ficar em São Cristóvão. Queria viajar, mudar de lugar, muito embora ele insistisse para que eu ficasse. Mas, tanto insisti, que ele me deu passagem para a cidade de Simão Dias.
OS “MENINOS”
DE LAMPIÃO
NESSA cidade
trabalhei num armarinho quase um ano. A loja era de propriedade de seu Adauto,
boa criatura, que juntava o dinheiro. Quando resolvi, depois de um ano, deixar
o lugar e internar-me no mato, seu Adauto deu-me seiscentos mil réis meus,
fruto do meu trabalho, e mais trezentos mil réis de gratificação. Deixei Simão
Dias e andei muito. Estava farto da vida de cidade e queria voltar para o mato.
Andei tanto, que saí do estado de Sergipe e entrei na Bahia, precisamente a 25
léguas de Simão Dias, no arraial de Goloso.
Pouca gente sabe onde fica esse arraial, mas posso dizer que está localizado no interior da Bahia, a umas cinco léguas da cidade de Antas. Goloso estava reservado pelo destino para mim. Estava à minha espera para arruinar-me a vida. Quando cheguei, porém, não tive essa impressão. Pelo contrário, achei um lugar ótimo pra ficar. Gente boa, hospitaleira. Logo arranjei trabalho numa fazenda com uma família pequena, constituída de quatro pessoas. O dono era seu Danilo e a fazenda ficava afastada do arraial um quilômetro, mais ou menos. Tinha duas filhas, Lindaura, de dezoito anos e Rosália, de dezesseis. Foram as moças que me convidaram para ficar, no dia em que passei por lá e pedi água para beber. O pai aprovou a ideia e comecei no mesmo dia a trabalhar. Trabalhei bastante, fiz uma roça, plantei milho, feijão, abóbora, melancia. Seu Danilo e sua esposa gostaram muito de mim, e eu fui ficando com eles. Quase um ano se passou, até que um dia aconteceu o que eu nunca podia esperar.
Seu Danilo havia saído para o campo, e não voltaria senão dali a alguns dias. Eu disse a Rosália e Lindaura:
- Vamos à roça que preciso colher umas melancias para vender.
A roça ficava a uns duzentos metros da casa e eu e as moças fomos até lá. Enquanto eu apanhava as melancias, as moças ficaram um pouco distantes, em baixo de um pé de umbu. Elas cantavam, ainda me lembro bem. Eu, enquanto trabalhava, me afastava das meninas, mas de repente elas pararam de cantar e correram para o meu lado.
- Veja, Toninho! Disseram.
Dois homens a cavalo aproximaram-se de nós. Pensei que era a força volante, famosa pelas tropelias que fazia nas fazendas. As moças quiseram fugir, mas eu lhes disse que nada adiantaria. Eu estava assustado.
Os dois homens estacaram os cavalos perto de nós e vi então que usavam chapéu de couro, roupa mescla, cinturões de balas cruzados, parabélum e fuzil. Ao ver-nos assustados, um deles disse:
- Não corre ninguém que aqui é o mininos de Lampião. Não tenham medo que não vamos fazer nada com vocês. Só queremos um animal pra viajar.
Longe de nos tranquilizar, a ideia de que Lampião estava no arraial mais nos assustou...
CONTINUA...
Fonte: facebook
Página: Antônio
Corrêa Sobrinho O
Cangaço
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário