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domingo, 17 de maio de 2015

O GLOBO – 14/10/1930 EPISÓDIOS DA VIDA DOS CANGACEIROS UMA SEMANA DA VIDA DE LAMPIÃO

Por  Leonardo Mota

Foi uma tarde pressaga aquela em que na fazenda Corituba, de Sergipe, Ezequiel – irmão de Virgulino Lampião – com este se desaveio e o desafiou para uma luta, a punhal, injuriando-o com os epítetos de “cego frouxo”, fazedor de mal a moças donzelas”, ladrão de beira de estrada”, “dador de surra em homem desarmado” e “cabra covarde que só tem fama por via dos companheiros”... Devido à oportuna intervenção de Corisco e de Pai Velho, um duelo fratricida se não verificou. Mas, desde esse dia, Lampião passou a se mostrar taciturno e se tornou ainda mais irascível e cruel. O olho direito, que ele tem cego e esbranquiçado, estava sempre lacrimoso, e isso neurastenizava e enfurecia o celerado.

Por outro lado, Virgulino sentia que a maioria do bando não recebera bem a sua decisão contra Corisco, no incidente deste com Volta Seca. Fora o caso que, dias antes, estando Volta Seca a torturar uma pobre velha, cujo rosto já arranhara com o punhal, Corisco o repreendeu, e como o perverso insistisse na sua maldade, pespegou-lhe uma bofetada, que o atirou desacordado ao chão. Virgulino metera-se entre os dois, mas desgostara Sabino, em lhe não reconhecendo razão. Só por estarem atropelados mui de perto pela polícia, os cangaceiros não se separaram, fragmentando o bloco. Tais ocorrências obrigavam Virgulino a procurar escaramuças que dissipassem o mal-estar que ensombrava os ânimos da malta. Fazia-se mister que a luta novamente os solidarizasse.

A 29 de junho do ano passado, quando todo o sertão baiano guardava, tranquilo, e feliz o dia de São Pedro, Virgulino, a três léguas do arraial Várzea da Ema, do município de Curaçá, assaltou a fazenda Formosa, de propriedade do coronel Petronilo Reis. Aí incendiou duas casas e, afora outras depredações, matou, à faca, três vacas de leite e cento e sessenta e oito ovelhas que encontrou presas num curral. Em seguida, fez juntar grande ruma de esterco, empilhou sobre ela rezes e lanígeros abatidos, o ateou fogo ao sinistro montão de animais sacrificados. Por muitos dias, um cheiro nauseabundo de carnes podres e queimadas empestou as redondezas da fazenda reduzida a ruínas.

Após a selvageria desses desatinos, Lampião partiu com o seu séquito, declarando na fazenda Curundundu que ia “desgraçar” a vila de Uauá. Então, persegui-o mais de perto a volante comandada pelo tenente Arsênio Alves de Souza. Verdadeira marcha batida, em a qual, sem descanso, os cangaceiros venceram trinta e uma léguas e a polícia vinte e quatro!

Foi assim que Lampião logrou escapar aos que se lhe haviam “escanchado no rastro: - perto da fazenda Lagoa Escondida, numa bifurcação da estrada, rumou para a direita, indo pernoitar, a 30 de junho, em “Poço de Fora”, iludindo, pois, o contingente policial que prosseguiu pela esquerda, a fim de entrar pelo lado sul em Uauá.

Auxiliado por sequazes incorporados à sua alcateia em território baiano e perfeitos conhecedores da região, Virgulino novamente deu às de vila-diogo na madrugada de 1º de julho, empreendendo um “raid” ainda mais exaustivo e ousado. Egresso das caatingas e grotões, o bandoleiro-fantasma teve a audácia de voar sobre Itumirim, onde chegou ao lusco-fusco do dia 2, depois de em trinta e seis horas haver vencido quarenta e cinco léguas! Aí reduziu a cinzas a estação ferroviária, cortou as comunicações telegráficas com a localidade, bebeu à farta e tentou formar um samba na casa da Escola Pública! Mas, medroso duma surpresa dos seus perseguidores, arribou logo mais e foi refugiar-se, durante o resto da noite, na serra dos Morgados. O dia 3 assinalou o seu assalto á fazenda Piabas e o seu pernoite no lugar Buraco da Água.

Coincidiram tais fatos com a fuga de cinco soldados criminosos, recolhidos à cadeia de Bomfim. Esses fugitivos, em bilhete irônico e malcriado que deixaram ao capitão José Galdino avisavam que se iam reunir a Lampião.

Em atividade, no encalço dos detentos foragidos, a manhã de 4 de julho veio encontrar os destacamentos da zona.

Procedentes de Campo Formoso, o cabo Antônio Militão da Silva e os soldados Pedro Sant’Ana, Cecílio Benedito, Manoel Luiz de França e Leocadio Francisco da Silva pararam em Brejão de Dentro e ali aguardaram a chegada de outros companheiros, por ser aquele o ponto combinado de junção das forças.

Como devessem dali ingressar na região de Gruna, penetrando em lugares insidiosos e de penoso acesso – “lugares esquisitos”, como eufemisticamente por lá se diz -, os soldados abandonaram as armas e aproveitaram o tempo de espera, escrevendo bilhetes para suas famílias, em Campo Formoso, dando-lhes conhecimento da direção que iam tomar. Estavam todos no interior da residência de Alfredo Monteiro, e, fora, o cabo Militão consertava os loros duma montaria. Seriam onze horas da manhã.

Em dado momento, Militão avistou longe, na estrada, diversos homens armados e avisou: - “Lá vem nossos camaradas!” E continuou, despreocupadamente, no reparo dos arreios. A estrada faz uma curva fechada e vem desembocar abruptamente junto à casa, motivo por que Militão logo perdeu de vista os indivíduos que julgou serem soldados.

De súbito, o troço aparece. Num ápice saltam das selas Lampião, Volta Seca, Ezequiel, Pai Velho, Corisco, Arvoredo, Moderno, Esperança, Moirão, Gato, Pernambuco e Labareda. Virgulino já está intimando o cabo Militão:

- “Se prepare, cabra, se prepare para apanhar!”

- “Pra apanhar, não, que em homem não se dá! Homem se mata!”

- “Apois, então, tire a cartucheira, que é pra não melar de sangue!”

Mas, não findara o curto diálogo entre Virgulino e Militão e já Volta Seca desfechava neste um tiro de parabélum no ouvido.

Com o estampido, acorrem os soldados, atordoados e sem os fuzis e são recebidos por uma saraivada de balas, quase a queima-roupa. Um deles tomba, tendo como arma nas mãos a caneta com que inconscientemente estava a mandar o derradeiro adeus à família. Outro, o único que logo não caiu, baleado que fora ligeiramente num braço, retrocede á casa e procura refugiar-se numa alcova. Cerrada descarga atravessa a porta, prostrando-o morto pelas costas. Muitos outros disparos alvejam ainda os moribundos, um dos quais escabuja e é sangrado. Esse infeliz chegou a receber no corpo nove balas. Tudo isso não durara mais que instantes.

A horda penetra na casa e Lampião, não saciado, indaga se não resta escondido por ali mais algum “macaco” do governo. Alfredo Monteiro responde que os soldados todos foram mortos e implora compaixão para si e os seus. Lampião grita-lhe que nunca mais dê rancho a “macaco” e volta ao terreiro. Dá um pontapé no cadáver de Militão e arranca-lhe do braço as divisas de cabo, presenteando uma das fitas a Moderno e outra a Arvoredo. Esta lastima que nenhum dos mortos usasse bigode comprido: é que ele queria “tirar e amarrar na fita, mode enfeitar o rabo do cavalo em que vinha montando...” Ezequiel vasculha os bolsos dos soldados. Tal busca de dinheiro resulta infrutífera e o miserável desanda na torpeza duns insultos pornográficos.

Estarrecido, o dono da casa pergunta que deve fazer com os cinco cadáveres, Virgulino sacode os ombros:

- “Querendo, enterre; não querendo, deixe a urubuzada comer!”

Pai Velho saúda com uma risada o dito de sarcasmo do chefe feroz.

Lampião pede cachaça, cachaça muita que dê para ele o grupo festejarem a caçado do dia.

Alfredo Monteiro, receoso de ter de testemunhar nova chacina, adverte que outra força de polícia está a chegar. Virgulino exalta-se e deixa a esses policiais um recado obsceno. Depois, olha raivoso e tigrinamente as suas cinco vítimas e determina a Alfredo Monteiro que enterre “os pestes” todos numa cova só, sob pena dum ajuste de contas em regra, noutra “visita” inesperada. Alfredo Monteiro promete que assim o fará e pede licença para ir buscar a aguardente. Lampião diz que não quer mais...

Todo o bando torna a montar.

Nisso, o soldado Cecílio Benedito, nos últimos estertores, bole ligeiramente com um pé. Lampião observa o movimento e saca de novo a pistola:

- “O diabo desde macaco inda está se mexendo? Macaco mexeu, quer chumbo...”

E, mesmo montado, desfecha-lhe um tiro na cabeça, que lhe arranca parte do frontal.

E esporeando as alimárias, a cantar, alegremente, o “É lampa... é lampa...”, os Cavaleiros do Crime galopam, fugindo pusilanimemente a um encontro com os milicianos esperados.

Quando o tropel da cavalhada e a toada do hino de guerra de Lampião não se faziam mais ouvir, foram se reabrindo as casas do Brejão e das portas e janelas umas cabeças assustadas, perscrutam se o vilarejo já se encontra restituído à sua quietude e pacatez.

Alfredo Monteiro, de olhos marejados, estava a espantar uns cães famintos que lambiam o chão inda rubro, aqui e ali, do sangue dos cinco mártires do banditismo nefando.

O sol pompeava na sua escalada para o zênite.

O cabo Militão tinha os olhos esbugalhados para o céu, como à indicar que aquele, cuja firmeza de olhar não se curvara ante à crueldade vilã do Rei do Cangaço, também era capaz de fitar o sol, o grande sol flamejante dos sertões!

Texto de Leonardo Mota

Fonte: facebook

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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