Rangel Alves
da Costa*
A
representação visual de Virgulino Ferreira da Silva se acentua no seu óculo de
armação arredondada e no seu olho direito meio fechado. Em desenho, pintura ou
fotografia, a confirmação maior vem de tais aspectos. Igualmente a John Lennon,
não há que se falar no líder cangaceiro sem se ter em mente o rosto triangular
adornado pela famosa armação. E também pelo olho semicerrado.
Se Lampião era
completamente cego ou apenas de pouca visão no olho direito, de pouca valia
terá na sua outra cegueira, aquela que tantas vezes se fez tão verdadeira que
talvez ele não tenha conseguido enxergar nem dentro de si mesmo. E foi esta que
colocou em dúvida sua qualidade de líder, de indiscutível comandante.
Ora, cegueira
não significa apenas um distúrbio na visão, uma perda total ou parcial da
capacidade de avistar, mas também o não querer enxergar aquilo que está
adiante, não só dos olhos como da percepção. E em muitas situações era esse
tipo de cegueira, a pessoal, que mais afligiu Lampião, conscientemente ou não.
Verdade é que
muitas vezes, diante de muitos fatos e acontecimentos, Lampião se mostrou
completamente cego perante a realidade. O problema no olho não o impedia de
divisar sombras escondidas na mataria, não dificultava seu alvo certeiro, não
causava nenhum problema nos momentos mais precisados. Mas a sua outra cegueira
sim.
E por que a
outra cegueira? Considerando-se, de modo figurado, que cegueira é também
distúrbio da razão, falta de discernimento, falsa percepção da realidade,
obcecação, falta de lucidez ou de capacidade de raciocinar, logo se tem que
Lampião se mostrou completamente cego. E cego, por exemplo, quando confiou
demais na sua fama, na rede de proteção que havia firmado e na descrença
perante aqueles que o alertavam para os perigos rondando os coitos e as
veredas.
Mas nada disso
causa estranheza diante de outras demonstrações de absoluta escuridão íntima,
pessoal, confrontando mesmo todo aquele arcabouço consciente, intelectivo e
estratégico do guia maior dos cangaceiros. É de causar verdadeiro espanto
quando o grande estrategista, o astuto catingueiro, o sábio da luta, de repente
comece a agir como se nenhuma valia desse mais ao seu mando, ao código de
conduta imposto, ao que considerava de essencialidade para a luta e
sobrevivência do cangaço.
Mas vamos aos
fatos. Mas antes disso respondam: Lampião era homem de duas faces, de duas
caras como se diz por aí, ou era cabra de palavra, que exigia respeito, ordem e
obediência? Mais uma pergunta: Será que Lampião passava uma imagem exterior de
uma forma e no âmbito familiar cangaceiro, perante o seu bando, agia de modo
totalmente diferente e a ponto de perder força de comando?
Prefiro
acreditar no homem de pulso, severo diante de erros, no verdadeiro líder.
Prefiro continuar acreditando no homem que jamais se desnorteou das linhas do
destino traçadas em sua mão. Contudo, também não posso deixar de afirmar sobre o
irreconhecível Lampião diante de tantas façanhas macabras recontadas pelos
historiadores e pesquisadores. Somente na mais completa cegueira pessoal o
líder maior aceitou que verdadeiros absurdos acontecessem.
As atrocidades
de Zé Baiano, o Carrasco Ferrador, contra aquelas mocinhas de Canindé, ocasião
em que as três faces sertanejas foram impiedosamente marcadas com ferro em
brasa. A torpeza e a traição praticadas contra a cangaceira Rosinha,
covardemente morta pelos próprios companheiros de bando - e dizem até que a
mando do próprio líder. As mortes de inocentes durante os ataques empreendidos
pelo bando nas povoações interioranas. E sem desprezar os relatos dando conta
das sanhas bestiais da cangaceirama e de suas ações de violências ilimitadas
contra o pobre homem da terra, tudo isso demonstra que talvez os dois olhos de
Lampião estivessem fechados. Ou completamente cegos, mas pela outra cegueira.
E
verdadeiramente cego porque inadmissível que o homem que pregava uma guerra
justa permitisse que seus comandados fizessem qualquer um de inimigo,
principalmente quando se tratava de desvalidos da terra. Absolutamente cego
porque não se admite que um líder, ainda que não esteja presente em todas as
ações dos seus, não os tenha alertado sobre as consequências das violências
extremadas e dos atos impensados. Cegueira total em Lampião ao saber que seria
responsabilizado por toda maldade praticada pelos seus cabras e ainda assim
permitiu que tudo perdesse o controle em muitas situações.
Por isso mesmo
que a cegueira do olhar é um quase nada diante da cegueira humana, da perda de
clareza na sua ação. O seu olho afetado - e apenas um - não o impedia de
enxergar claramente as ações de seus comandados. Como condutor máximo,
absoluto, ou foi convivente com as atitudes tomadas ou simplesmente foi
aceitando, assim como uma bola de neve ou de espinho. E ao agir assim, ferindo
a visão de sua própria consciência, logo se mostrou completamente cego.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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