A obcecação de
um filho, esposo e pai que deseja vingar os vexames sofridos por entes
caríssimos – As atrocidades praticadas por Lampião e os seus bandidos em
Aquidabã – Assassínios, roubos, perversidades – O heroísmo de uma sertaneja –
Homens sem orelhas – Sangramentos.
Quando, há três anos, visitei a Penitenciária de Recife, tive ocasião de palestrar longamente com Antônio Silvino, que, depois de implantar o terror no Nordeste, praticando infindável rosário de crimes, vive naquele presídio inteiramente entregue à criação de bombos e à fabricação de pequenos objetos de uso. Estava velho mas era forte ainda. Conversava com desembaraço e com desembaraço respondia às perguntas que lhe eram feitas. Menos desumano do que Lampião, o velho bandoleiro não deixava de referir-se com remorso a um crime que praticara involuntariamente, matando indefesa moça. Enquanto que o chefe do bando que presentemente tanto mal causa ao Nordeste, não conhece o que é remorso e tem imolado vítimas indefesas, o que a faz sorrir, cruelmente, satisfeito.
Em meio da conversação, perguntei-lhe se tinha esperança de ver Lampião.
- Eu não creio – foi a resposta. A menos que aconteça o mesmo que sucedeu comigo. Eu zombei dos homens mais valentes, pus a correr muita força, não recuava diante do mais destemido, e fui cair nas mãos justamente daqueles que eu julgava mais fraco, daquele a quem eu nunca prestara atenção. É possível que venha a suceder o mesmo a Lampião. O filho, o esposo ou o pai de uma de suas vítimas talvez que lhe venha causar um insucesso irreparável.
Reporto-me a essas afirmativas de Antônio Silvino em virtude de fatos que presenciei durante a minha excursão pelos sertões nordestinos. Vi nas forças volantes que operam sob as ordens do coronel João Felix, filhos sequiosos de vingança; esposos desejosos de ver os autores de seu ultraje supliciado; pais ansiosos por um encontro decisivo com os que privaram do convívio de seus filhos.
Sob o terror que domina os habitantes do sertão freme a sede de vingança. Há indivíduos obcecados, que dariam a própria vida se, em troca, lhes dessem o prazer de ver Lampião e seus sequazes supliciados, por instantes que fosse. E no estado de ânimo dessa gente é que reside o maior perigo para Lampião. Possivelmente, como aconteceu com Antônio Silvino, o chefe do bando sinistro cairá nas mãos de um desses homens, que não sentem fadiga, que não se deixam abater pela fome nem pela sede, que parecem alimentar-se exclusivamente do desejo de vindita.
Em Santa Brígida, eu tive a minha atenção despertada para um rapaz de feições frias, olhar inteligente, boa palestra e que formava entre os soldados que compunham o contingente da polícia sergipana, ali destacado. Fui imediatamente informado sobre a sua identidade. Não se tratava de um sertanejo inculto, de um desses indivíduos que passam a vida inteira sem ter a menor noção do que existe nas cidades civilizadas. Era um jovem, de regular fortuna, educado em bons estabelecimentos de ensino, viajado. Tendo passado algum tempo nesta capital, aqui fizera sólidas amizades. No desempenho do cargo de escrevente da Armada, na ilha da Trindade, travara relações com quase todos os oficiais revolucionários que por ali passaram. Por ocasião da revolução, servira como tenente de uma coluna que atravessou o Nordeste e dava demonstrações de bravura, de resistência e conhecimento da arte bélica. E deixara o conforto do lar, a sua esposa, a sua família, os seus velhos pais, os amigos, para envergar uma farda de contratado, pegar em um fuzil e atirar-se para as caatingas em perseguição a Lampião. Só um motivo muito forte poderia levá-lo a tal. Tratei de apurar que motivos fortes seriam aqueles. O relato que me foi feito é que procurei reproduzir para os leitores dos “Diários Associados”. É uma das inúmeras páginas negras da vida de crimes dos bandidos chefiados por Lampião.
UM GOLPE DE
SORTE EM FAVOR DOS BANDIDOS
Otoniel
Bezerra é o meu jovem informante. Filho de um fazendeiro abastado, morador em
Aquidabã, no estado de Sergipe, o atual controlado da polícia deste Estado é
casado e pai, e é por amor à sua família que atualmente se encontra dela
distante. Atendendo à minha solicitação, dispôs-se a dizer-me quais os motivos
por que deixara o conforto do lar, o aconchego da família, para entregar-se à
vida incerta e cheia de vicissitudes de soldado das volantes sergipanas.
- Eu vivi sempre para a minha família – disse-me. Tinha, para tornar-me feliz a existência, o carinho dos meus pais, a solicitude de uma esposa virtuosa e a inocência de uma filhinha. Por ocasião da revolução, tudo isso se acabou para mim. Eu me empenhara na luta em prol da liberdade do país, quando Lampião e o seu bando invadiram a cidade em que resido. E as barbaridades que praticaram é que me levaram a pegar em armas para combater o banditismo. Não estarei satisfeito enquanto não vingar as ofensas feitas a toda a minha família.
Em outubro de 1930 – prosseguiu – os revoltosos, querendo obter todos os meios de condução para o transporte de forças de uma margem para outra do rio São Francisco, se dispuseram a apreender todas as embarcações que encontrassem em trânsito. Assim, começaram a fazer. Muitas dessas embarcações passaram para as mãos dos revolucionários. Uma houve, porém, que conseguiu burlar a ação daqueles patriotas, e saiu em disparada, ganhando distância em rumo contrário àquele em que se encontravam as forças rebeldes. Distante já do local em que essas forças estacionavam, a embarcação fugitiva cruzou com outra que seguia para Propriá. O barqueiro que fugia avisou aos que seguiam na outra embarcação o destino que os esperava se prosseguissem viagem naquele sentido. Não foi necessário novo aviso, e o barco em questão mudou de direção e foi encostar à outra margem do rio, evitando assim um encontro com os rebeldes. Nessa embarcação viajavam Lampião e 18 bandidos. Um golpe de sorte livrou-se de captura certa, e encaminhou-os a Aquidabã, para desdita de todo o povo da minha pequenina cidade.
O ARDIL DE UM
VELHO E A COVARDIA DE LAMPIÃO
- Há muita
gente que pensa ser Lampião um homem valente, destemido, cheio de coragem e bravura.
Engano completo. O bandido é, como todos os perversos, covarde. Não é capaz de
enfrentar quem esteja em igualdade de condições. Só escolhe para vítimas quem
não pode defender-se, os fracos, os que estão em condições de grande
inferioridade. O fato que se passou à entrada de Aquidabã é um exemplo frisante
do que afirmo. Poucas léguas antes de chegarem à minha cidade, os bandidos
detiveram o fazendeiro José Custódio de Oliveira, mais conhecido por “José do
Papel”, e perguntaram-lhe se havia forças em Aquidabã. A resposta foi negativa.
Mais adiante, um outro sertanejo foi detido. Era um velho sexagenário, de nome
José Vicente. Pergunta idêntica lhe fez Lampião. O velho, desejando livrar a
cidade daquela visita indesejável, não trepidou em enganar os bandidos,
assegurando-lhes que a cidade estava bem guarnecida, com uma força de 20
homens, que ali chegara pouco antes de sua saída. Lampião olhou para José do
Papel, já disposto a matá-lo, certo de que o sertanejo mentira ao lhe negar a
existência de forças em Aquidabã. As explicações e as súplicas do desgraçado o
salvaram, mas não lhe deram liberdade. A informação dada pelo velho José
Vicente deixou Lampião transtornado. Acovardado, o bandido dirigiu-se aos seus
comandados assegurando-lhes que todo o seu plano tinha fracassado. Não mais
atacaria Aquidabã, preferindo retroceder. Não convinha atacar uma cidade
guarnecida. Foi quando um do bando se adiantou para contrariar o chefe. Era
Corisco. Protestou contra aquela covardia. Já que Lampião tinha medo de atacar
Aquidabã, ele sozinho entraria na cidade, ainda que tivesse de morrer aos
primeiros passos. Ficaram todos atônito, e mais ainda se surpreenderam quando
viram Lampião modificar a sua atitude, para seguir à orientação do seu
lugar-tenente. E o velho José Vicente viu, naquele rumo de Lampião, a sua
morte, pois que a sua mentira seria descoberta.
AQUIDABÃ
INVADIDA – A FUGA DE JOSÉ VICENTE
- Esses fatos
se passaram ao anoitecer de 14 de outubro. Nesse mesmo dia os bandidos entraram
na minha cidade. Foi estabelecido o plano de ataque. Dividido o bando, cada
grupo teve a sua ação determinada. Uns atacariam a casa do juiz de direito,
outros a do delegado, enquanto que Lampião pela frente e seu irmão Ezequiel
pelos fundos invadiram o corpo da guarda. Enquanto eram assim distribuídas as
forças, o velho José Vicente tratou de fugir. Foi a sua salvação, pois logo que
verificou não haver forças na cidade Lampião procurou-o para matá-lo. Mas já
ele desaparecera aproveitando as trevas da noite. Assim foi Aquidabã invadida
para ser teatro de cenas vandálicas, incríveis, verdadeiramente indescritíveis.
A FAMÍLIA
XAVIER DO MONTE ULTRAJADA
- O chefe
político local e juiz municipal, Dr. Juarez de Figueiredo estava ausente. Em
sua residência se encontravam o doutor Xavier do Monte e sua família, que para
ali tinham ido fugindo dos revolucionários. Dormiam todos quando Lampião e seus
asseclas invadiram a casa. O que se passou foi horrível. Não respeitavam nem
mulheres nem crianças. Bolos foram distribuídos entre todos além de se praticarem
inúmeras outras selvagerias. Perversos, os bandidos praticaram toda sorte de
barbaridades, sorrindo satisfeitos. O delegado local, Dr. José Lourenço Loia,
foi retirado a seguir de sua residência. Surraram-no também, e não satisfeitos,
fizeram-no montar em um jumento xucro, pondo na cangalha do animal um espeto
para torturar a autoridade, um homem gordo que sofreu resignadamente todo
aquele suplício.
UMA HEROÍNA
- Divididos
pela cidade, os bandidos se entregaram ao saque. Roubaram todas as casas, maltrataram
os respectivos moradores e satisfaziam também os seus instintos lúbricos. Um
grupo de bandidos penetrou na residência do fazendeiro e negociante José Xavier
de Figueiredo, exigindo-lhe dinheiro. O pobre homem quis defender os seus
haveres, afirmando nada possuir. De nada lhe valeu, porém, a negativa. O
esbordoamento a que o sujeitaram levou-o a apontar o local onde guardara 26
contos. Esse dinheiro foi roubado incontinenti. Mas nem assim cessou o
espancamento do pobre homem. A palmatória dos bandidos continuou a cair com
toda a força nas mãos do desgraçado, que suplicava compaixão. Foi quando a
esposa da vítima, dona Celina de Figueiredo, indignada com aquela selvageria
não se conteve e declarou aos bandidos que eles só assim agem por ela ser mulher:
“Bandidos! – afirmou – Bandidos e covardes!”. Lampião segurou-a imediatamente e
mandou que os seus bandidos a esbordoassem também. E a palmatória entrou
novamente a funcionar, brandida pelo braço musculoso do negro Mariano.
Isto na presença do marido da pobre moça, que, desesperado, implorou aos bandidos que não prosseguissem, que o matassem, que o torturassem, mas que não continuassem a supliciar a sua esposa. D. Celina indignou-se com a atitude do marido e, enérgica, para ele se virando exclamou: “Nada peças a esses miseráveis. A bandido nada se deve pedir”! E estendendo as mãos, imperturbável, sem um gemido, sem uma lágrima ordenou aos cangaceiros que prosseguissem na sua covardia. Os bandidos continuaram infligindo-lhe ainda uma dúzia de bolos depois do que se retiraram satisfeitos com a bravata praticada.
BÁRBAROS
- José do
Papel, que fora detido pelos bandidos à entrada da cidade, foi por ele levado.
Entregue à guarda de Ezequiel, irmão de Lampião, o pobre homem tudo fez para
cair na simpatia dos bandidos. E conseguiu-o com relação a Ezequiel, o que mais
tarde só lhe serviu de causa à desgraça que o atingiu.
É que em Aquidabã, Ezequiel e os bandidos sob o seu comando entraram a saquear todas as casas onde podiam encontrar valores. O dinheiro em cédulas, os bandidos guardavam com eles mesmos. Já as pratas e níquéis eram postas nos bolsos do infeliz. Mariano, Volta Seca e Ferrugem constituíam um grupo dos mais perversos. Por onde andavam praticavam selvagerias, e, vendo José do Papel parado no meio de uma rua enquanto Ezequiel levava a efeito um saque, trataram de esbordoá-lo, lançando-o ao solo. Com a queda todo o dinheiro espalhou-se. Os três bandidos avançaram e, insultando-o, entraram a esbordoá-lo. Um seu irmão, de nome Antônio, desejando pôr fim aquele suplício correu a chamar Ezequiel, o que fez com que Volta Seca, Mariano e Ferrugem se exasperassem e cortassem uma das orelhas de cada um dos dois irmãos, espancando-os ainda demoradamente.
A VALENTIA DE
UM ANCIÃO
- O velho
Aurélio Teodoro dos Santos é um homem virtuoso, muito estimado em Aquidabã.
Geralmente quando os bandidos atacam qualquer localidade, entram nas tascas e
bebem e obrigam o povo a beber. Lampião quis que o Aurélio bebesse um copo de
parati. Fez o velho ver que nunca bebera e que, portanto, não podia
satisfazer-lhe o desejo. O bandido exasperou-se e, dando uma retumbante
gargalhada, disse-lhe: “Já sei, o copo é pequeno. Vou dar-lhe outro maior”. O
velho pegou no copo, olhou longamente para o bandido e atirou ao chão,
espatifando-a, a vasilha que continha o parati. Lampião indignou-se e lançando
mão de um litro de álcool despejou sobre a cabeça de Aurélio determinando que
partisse na sua frente, pois fora o único homem que encontrara na cidade. Logo,
com os olhos a arder pelo contato do álcool, o pobre velho foi cair mais
adiante onde uma senhora o socorreu.
O ASSASSÍNIO
BRUTAL DE UM POBRE LOUCO
- Há entre os
bandidos uns mais ferozes do que outros. Dentre todos, porém, ninguém pode ser
comparado a “Volta Seca”, que só está bem, só se sente feliz quando pratica
atrocidades. Mariano e Ferrugem são geralmente os seus companheiros prediletos.
E isto porque são também selvagens. Havia em Aquidabã um rapaz que sofria das
faculdades mentais, filho de um velho de nome Manuel do Norte. Encontrava-se o
pobre louco na cidade no dia em que se verificou o assalto. Vendo Volta Seca e
seus dois companheiros arrombar uma casa comercial, o demente chamou-os à
ordem, com o epíteto de bandidos, ladrões. Os três cangaceiros responderam com
insulto, e o louco para eles avançou, desarmado. Não dera dois passos quando um
tiro lhe atravessou a garganta, fazendo-o cair por terra. Volta Seca, jubiloso,
(...) para o corpo cuja vida se finava e, enquanto Mariano lhe dizia para que
agisse antes que o desgraçado morresse, o bandido sangrou o demente,
fazendo-lhe com a faca uma cruz na testa e outra no peito. E era de ver-se a
satisfação com que praticavam aquelas barbaridades incríveis.
O DELEGADO
INSTRUMENTO DE UM CRIME
Os
espancamentos, os roubos, as deformações a ferro em moças indefesas não
bastavam aos bandidos. Desejavam maiores atrocidades e queriam associar
populares aos seus crimes. Foi o que fizeram com o delegado Lourenço Loia.
Detendo um lavrador conhecido por José Pretinho, Lampião determinou que a
autoridade policial segurasse uma das orelhas do desgraçado e a puxasse com
toda força para que fosse cortada. O delegado quis recuar, mas vários punhais
começaram a picar-lhe o corpo. Teve assim de obedecer e a orelha do desgraçado
ficou nas mãos de um dos bandidos, acompanhada de quase toda a face esquerda.
UM GESTO DE
PIEDADE DE ÂNGELO ROQUE
- Eu tive
também o meu quinhão de dor e de opróbrio. Os bandidos penetraram em minha casa,
onde minha mulher guardava o leito em companhia de minha filhinha. Meus velhos
pais também lá se encontravam. Eu estava ausente, fora da cidade, ao serviço da
revolução. Meus pais tiveram de receber bolos que os bandidos lhes aplicaram.
Eram os três perversos. Mariano era quem brandia a palmatória sinistra. Coube
depois a vez à minha mulher. Os cangaceiros penetraram na minha alcova e
passaram a aplicar bolos na pobre Anísia. As súplicas de meus pais e o choro
assustado de minha filhinha de nada valeram. Foi quando entrou em casa Ângelo
Roque, o cangaceiro conhecido por “Labareda”. Este se condoeu da sorte de
Anísia e mandou que suspendessem o castigo. Mariano quis desobedecer, afirmando
que cumpria ordens de Corisco. Ângelo Roque indignou-se e fez cessar a
selvageria, pois que não reconhecia superioridade em Corisco. E os bandidos
obedeceram, o que fez com que a minha mulher só recebesse seis bolos. Mas até
hoje eu tenho a minha filhinha doente por causa dessa selvageria. O golpe de ar
e o susto apanhados abalaram até hoje a sua saúde. E eu aqui estou de armas nas
mãos, ansioso por combater os bandidos. Não estou satisfeito porque o meu
comandante não quer sair daqui. E eu vou pedir baixa para incorporar-me a uma
das volantes baianas. Só estarei satisfeito quando vir Lampião e os seus
bandidos sem vida. Espero que isto venha a verificar-se breve. Então poderei
morrer satisfeito, pois a minha vingança terá sido alcançada.
No dia em que
eu deixei Santa Brígida, Otoniel Bezerra conseguira a sua baixa e corria a
ingressar em uma volante baiana. Ia correr no encalço dos bandidos.
“Diário de
Pernambuco” – 19/01/1932.
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