Por Bruno Yacub Sampaio Cabral
"A arma
preferida dos facínoras era o bacamarte, sendo muito usado o boca de sino, de
cano de bronze, reforçado e curto."
Sempre foi de
notória agitação o clima na região sul cearense. No Cariri, região que de certa
forma, lhe corresponde, desde seus primórdios, registraram-se disputas e
conflitos, a partir mesmo do período da posse da terra, na época das Sesmarias.
Muito mais conturbado, todavia, surgiu o século 19.
A seca de
1877, com seu cortejo de miséria, arruinou a província do Ceará. Milhares de
retirantes percorriam as estradas em demanda de vilas e cidades onde imploravam
a esmola para matar a fome.
No Cariri, a
despeito de ser região privilegiada, a fome fazia devastações. Morriam,
diariamente, no Crato, de 12 a 16 pessoas. Os famintos não tinham força para
mendigar. Às vezes, antes de recolher a esmola, caiam agonizantes, com as
feições convulsas, no transe derradeiro.
No meio dessa
calamidade, surgiam bandos de cangaceiros que se apoderavam dos bens alheios.
Os próprios retirantes invadiam as propriedades em busca de alimento. Furto,
roubo, tomada de presos, assassinatos, prostituição e morte por falta de pão,
eis as consequências desse flagelo.
Vários grupos
de cangaceiros andavam sobre o chão do povoado de Brejo dos Santos. O flagelo
começou nos fins de 1874, com o bando de Inocêncio Pereira da Silva, vulgo
Inocêncio Vermelho, foragido da vila de Misericórdia (atual Itaporanga), na
província da Paraíba, onde assassinara Andrelino Araújo.
Perseguidos
por Antônio Tomás de Araújo Aquino, irmão da vítima, passavam-se os criminosos
para a Comarca confinante de Jardim.
Residiam, ora
no Salgadinho, do termo de Milagres, ora na povoação de Brejo dos Santos, do
termo de Jardim. Gozando da proteção do Juiz Municipal de Jardim, Dr. Antônio
Augusto de Araújo Lima, Inocêncio chegou a exercer funções policiais contra
criminosos desvalidos, em toda zona banhada pelo riacho dos Porcos.
Logo depois,
fugido da cadeia de Crato, juntou-se ao grupo de Inocêncio Vermelho, o
criminoso João Calangro, natural de Milagres, onde era conhecido por João
Senhorinha. Seu verdadeiro nome, porém, era João de Sousa Calangro. Ele era de
estatura baixa, sardento e de cabelos cor de fogo, e não deve ser confundido com
o negro João Calangro, perverso cangaceiro de Antônio Quelé, abatido no dia 27
de novembro de 1910 por companheiros seus, nas proximidades de Jati, entre a
ladeira do Pacífico e a fazenda Oitis.
Com isso, os
salteadores, transformados em agentes policiais, mantinham a ordem nos povoados
e prendiam os criminosos desvalidos. O banditismo político chegava ao ponto de
uma autoridade regeneradora encarecer ante o Governo Provincial, os serviços
que Inocêncio Vermelho tinha prestado, e pedir, ao mesmo tempo, para o bandido,
remuneração por iguais serviços, ou promover a sua livrança.
A Comarca de
Jardim tornava-se um viveiro de criminosos, no qual José Ataíde Siqueira (Zuza
Ataíde), Inocêncio Vermelho, João Calangro, Barbosas, Brilhantes, Viriatos,
Agostinho Pereira, Pedro Simplício, Carneiro, Manuel Tomás e outros representam
o papel de peixe-rei, cuja força estava na razão das façanhas.
Em junho de
1876, Inocêncio foi morto na região do Poço, por Sebastião Pelado, que agia a
mandado de Antônio Tomás de Araújo Aquino, irmão de Andrelino de Araújo. Morto
Inocêncio, João Calangro assumiu a chefia do grupo, ao qual se incorporou
Antônio Vermelho, irmão de Inocêncio, a fim de liquidar Sebastião Pelado, que,
por sua vez, formava outro grupo.
A luta entre
esses bandos rivais, cuja zona de operações se estendia ao território
paraibano, atingiu seu clímax quando Dinamarico e José Pombo Roxo, do grupo de
Pelado, eram mortos por João Calangro e Gato Brabo, e Manuel de Barros, do
séquito de Calangro, foi morto por Pelado.
Naqueles
velhos tempos, o Brejo era o lugar preferido pelos bandoleiros que infestavam o
Cariri, por motivo de suas condições naturais. No meado de 1876, procedente da
vila de Várzea Alegre, ali se encostou o facínora Luís de Góis, acompanhado de
Zuza Ataíde.
Dentro da
povoação de Porteiras, os dois grupos se defrontavam e travavam forte tiroteio,
morrendo na luta José Roberto, que ali se reunira com Pelado. O morto, famoso
sicário, vivia sob a proteção do capitão José Mateus Pereira da Silva, morador
na comarca de Vila Bela, da província de Pernambuco.
O capitão José
Mateus exigia de Sebastião Pelado a orelha de João Calangro, ameaçando-o de
morte caso não se desincumbisse logo a tarefa.
Para agravar
ainda mais a situação dos habitantes da região, forças irregulares do capitão
José Mateus chegaram ao Brejo, em perseguição ao grupo de Calangro. Num
encontro entre os dois grupos, Sebastião Pelado recebia mortal ferimento,
enquanto João Calangro, sabendo do estado do capitão José Mateus em Porteiras,
ia até a povoação, no dia 02 de agosto de 1877, e lá diria-lhe toda sorte de
impropérios e ameaças por espaço de dez horas.
O capitão José
Mateus seguia com destino ao Pajeú, região baluarte dos Pereiras, e de lá
trazia mais de cem homens, encontrando-se entre eles grande número de
delinquentes.
O 2° suplente
de Juiz Municipal de Jardim, capitão Juvenal Simplício Pereira da Silva,
sobrinho legítimo de José Mateus, assumia o exercício e autorizava a Força de
Mateus a capturar João Calangro.
A Força era
divida em três grupos. Seguia um para Brejo dos Santos, outro para Missão
Velha, e outro, comandado por Mateus e seus genros Galdino Alves de Araújo
Maroto e Manuel Pereira da Silva, para Milagres.
Em 15 de
agosto de 1877, o grupo comandado por Mateus assassinava a Manuel Valentim e
espancava barbaramente a Trajano de tal, pelo simples fato de agasalharem o
grupo de Calangro.
A Força
pernambucana, a pretexto de perseguir Calangro, praticava uma série de delitos.
O tenente Alfredo da Costa Weyne, que se achava em Milagres, deliberava por
cobrança a tais atrocidades. Aceitava, porém, a sugestão do Dr. Antônio Augusto
de Araújo Lima, que julgava mais acertado enviar Balduíno Leão, amigo de
Galdino Maroto, a fim de encontrar uma solução honrosa.
Balduíno,
amigavelmente, conseguia que dez homens de Mateus se incorporassem à Força de
Weyne, o que ocorria no sítio Bela Vista, distante meia légua de Milagres.
De volta de
sua excursão, os Mateus chegavam a Milagres no dia 23 de agosto, em número de
40, depois de terem cometido as maiores violências contra sertanejos indefesos.
A permissão
dada ao capitão Mateus, para, com Força irregular, perseguir os Calangros,
criava péssimo precedente e aumentava a insegurança individual na região.
Os grupos de
Mateus preocupavam sobremaneira as autoridades cearenses. Um dos grupos tinha
por comandante a José Rodrigues e o outro a Vila Nova, ambos conhecidos
assassinos.
No dia 29 de
agosto, o tenente Weyne recebia requisição dos Juízes de Direito de Barbalha e
Crato, cujas cidades estavam ameaçadas de ser assaltadas por mencionados
grupos.
A exemplo dos
bandos de Mateus formavam-se outros grupos que se diziam gente do aludido
Capitão, mas que visavam ao roubo e ao furto.
O sul cearense
vivia dias incertos. Além dos Calangros, operavam os Viriatos na Boa Esperança
e os Barbosas no Salgadinho.
À parte, mas
sob os comandos de João Calangro, havia surgido, em Milagres, o grupo dos
Quirinos, chefiados por três irmãos, o mais velho dos quais se chamava Quirino.
Agiam também, sob a proteção de Calangro, Jesuíno Brilhante (Jesuíno Brilhante
de Melo Calado) e Gato Brabo, os dois últimos também no comando de grupos.
Por
conveniência, esses bandos agiam separadamente. Havia, entre eles, porém, um
“tratado de aliança defensiva e ofensiva de sorte que, quando receavam alguma
conspiração, reuniam-se imediatamente, tomando João Calangro o comando gera”.
João Calangro
acabara por expulsar os Mateus do Ceará. As populações caririenses
responsabilizaram o capitão Mateus pela quase extinção de gados. E com isso,
passavam a confiar em João Calangro.
Essa confiança
“subiu ao ponto de desejar-se pelos povoados, sobretudo em dias de feira, a
presença de João Calangro para garantia daquilo que cada um trazia ao mercado
publico. Ultimamente povoados, senhores de engenhos e fazendeiros disputavam,
como ainda disputam, à porfia, a sua presença sempre que sabem que se aproxima
algum grupo de malfazejos, ou temem qualquer assalto. Por isso ele foi obrigado
a aumentar o número de seus policiais... E desse modo nulificou-se entre nós
completamente a autoridade publica que foi substituída por João Calangro, que
entende que a ele e tão somente a ele, o Cariri deve não ter sofrido maiores
desgraças” (em “Cearense”, edição de 11 de outubro de 1877).
Correspondências
de Barbalha publicadas em Cearense diziam que a cidade estava
"sendo garantida pelo grupo do célebre João Calangro, protegido pelas
autoridades". Compunha-se o grupo de 22 homens "que trajava a
casimira, notando que quase todos os outros são subordinados, pelo fará 100
homens a qualquer hora". Um dos correspondentes concluía: "Hoje
é perigoso ser rico, pois o povo pobre (os bandidos) lhes hão declarado guerra
de extermínio" (em Cearense, 24.02 e 17.03.1878).
No Cariri, os
particulares garantiam o direito de propriedade com armas nas mãos. Em
Barbalha, as casas Sampaio, Santiago e outras estavam convertidas em
quartéis.
Em Constituição,
de 17 de fevereiro de 1878, publicava carta de Missão Velha, na qual o
correspondente afirmava que os ladrões de gado aumentavam dia a dia, e que a
cadeia estava cheia deles. Carta de Barbalha, publicada na mesma edição,
comunicava que o gado, a cana e a mandioca não podiam mais produzir,
"porque o furto é por demais". E finalizava: "A seca é a causa
de tudo".
Aliás, por
toda a Província flagelada pela seca, o direito de propriedade recebia
tremendos impactos. O gado, retirado para o Piauí, ao voltar para o Ceará, na
Serra Grande, não conseguia atravessar a linha de salteadores. No centro da
Província, outros bandos de salteadores "acometem a propriedade com a
maior ostentação, dir-se-á que se proclamou entre nós o comunismo". Na
vila de União, o célebre José Rodrigues, à frente de um bando, assaltava os
carros nas estradas, tomava os víveres e os distribuía "como se fosse
coisa sua" (em Cearense, de 22 e 27.02 e 01.03.1878).
Continua...
Vista da região do Poço, em Brejo Santo - CE. Cenário
de atuação de João Calangro e seu séquito.
Região do Poço, em Brejo Santo - CE. Local de divisas entre os estado do Ceará, Pernambuco e Paraíba.
Caldeirão natural em rocha, utilizado por João Calangro, segundo a tradição oral.
Localizado na região do Poço, em Brejo Santo - CE.
Localizado na região do Poço, em Brejo Santo - CE.
Entrada da famosa "Gruta de João Calangro", na
região do Poço.
Interior
da gruta que serviu de esconderijo para João Calangro e seu bando, durante o
século 19.
Fonte bibliográfica:
- Montenegro, Abelardo Fernando,
História do Cangaceirismo no Ceará, Expressão Gráfica Editora, 2011;
- Montenegro, Abelardo
Fernando, Fanáticos e Cangaceiros, Expressão Gráfica Editora, 2011;
- Silva, Otacílio Anselmo e, Esboço Histórico do Município de Brejo Santo, em revista Itaytera N° 2, Instituto Cultural do Cariri, 1956;
- Macêdo, Joaryvar, Império do Bacamarte, Universidade Federal do Ceará, 1998;
- Araújo, Padre Antônio Gomes de, Povoamento do Cariri, Faculdade de Filosofia do Crato, 1973.
- Silva, Otacílio Anselmo e, Esboço Histórico do Município de Brejo Santo, em revista Itaytera N° 2, Instituto Cultural do Cariri, 1956;
- Macêdo, Joaryvar, Império do Bacamarte, Universidade Federal do Ceará, 1998;
- Araújo, Padre Antônio Gomes de, Povoamento do Cariri, Faculdade de Filosofia do Crato, 1973.
Enviado pelo autor: Bruno Yacub
http://blogdomendesmemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário