Por Rangel Alves
da Costa
“Capitão, já
tamo arranchado aqui pra mais de três dia, e adescupe dizê mai já tô achano
tempo demais a gente num mermo lugar. Quano o Capitão pensa em levantar
coito?”. Lampião baixou a cabeça, um tanto pensativo, e sem nada responder
naquele instante, mas não demorou muito, depois de levantar os olhos em direção
aos horizontes da noite, para afirmar: “Cangaceiro nunca tem hora de chegar nem
de partir. É o sopro do vento, o desassossego do bicho e o zunido da mata quem
tudo diz. Sinta o que tô dizeno e vai saber a hora da gente levantar coito”.
Noite fechada,
de breu. Vaga-lumes voejavam pelo coito sem imaginar sobre quem jogavam suas
faíscas de luz. Lampião chamou Maria Bonita e juntos seguiram até a encosta de
um lajedo grande mais adiante. A companheira do Capitão se mostrava inquieta,
nervosa, assombrada com qualquer coisa. E foi por esse motivo que seu
companheiro logo lhe perguntou: “O que lhe aperreia, Maria. Tô sentindo uma
estranheza e não gosto que teja assim. Me diga, o que tá acontecendo?”.
“Meu Capitão,
nada não. Nem em todo momento a gente se mostra despreocupada. Preocupada eu
num tô não, mai também num deixo de tá. Nessa madrugada me veio um sonho que
nada lhe contei sobre ele, mai depois que a noite caiu eu comecei a sentir
quase tudo que se passava no sonho. Uma noite fechada como essa, com vaga-lumes
pelo coito, e também um silêncio estranho que parece trazendo voz, que parece
anunciar a presença de gente vigiando a gente. Outra coisa. Também ouvi um
piado tão assombroso de passarinho que mais parecia o anúncio de um tempo ruim
que chegava. Ainda bem que esse piado não apareceu...”.
Maria Bonita
ainda falava quando um piado medonho, o mais arrepiante e espantoso que pudesse
existir, surgiu tão alto que mais parecia de um pássaro agourento pousado no
meio do coito. Não se sabe sequer de qual lado veio, mas trinou como um
terrível prenúncio de algo muito ruim. Maria Bonita se lançou nos braços do
Capitão e não pôde conter as lágrimas. Trêmula, perguntou: “Ouviu, meu
Capitão?”. Lampião não respondeu. Abraço ainda mais forte a sua Santinha, mas
sem demora já estava dando o sinal por todos conhecido. Era hora da retirada, e
naquele mesmo instante, sem qualquer demora.
Toda a
cangaceirama parecia permanentemente preparada para receber esta ordem a qualquer
momento. No coito, o repouso não contava com a total retirada da roupa pesada
nem com o descanso das armas. Mesmo sem as cartucheiras e embornais, sem os
chapéus e jabiracas, a cangaceirama mantinha sobre o corpo o necessário ao
enfrentamento dos contratempos. Sempre uma arma ao redor, sempre um olho aberto
enquanto o outro tentava dormir, sempre a constante vigília daqueles que nunca
descansavam na paz e na despreocupação. Até mesmo os encontros sexuais se davam
por entre roupas.
Assim, poucos
instantes depois da ordem do Capitão e todos já estavam prontos para a partida.
E não havia tempo sequer de perguntar o que tinha acontecido e o porquê daquela
pressa toda. Os apetrechos foram juntados nos embornais, as cartucheiras
apressadamente repostas, os armamentos deitados ao largo do corpo, as pequenas
tendas desfeitas e os canecos e cantis dependurados. “Seguir por onde?”, um
cangaceiro perguntou. Mas nem houve tempo de qualquer resposta. Quando a mata
adiante se abriu e a bala começou a zunir, então a direção tinha que ser ao
contrário.
Mas assim não
ocorreu. Quando o primeiro tiro inimigo faiscou na pedra e a cangaceirama
sentiu que estava sendo atacada, a voz de Lampião se fez mais alta e uma ordem
inesperada ecoou: “Sem recuar. Atacar de frente!”. Então a cangaceirama começou
a abrir fogo frente a um inimigo invisível. A terrível escuridão não permitia
avistar quase nada que estivesse à frente. Os vaga-lumes agora eram os cuspidos
das armas chispando no meio da noite. Numa vontade cega de lutar, de atacar o
que estivesse pela frente, as armas vomitavam de lado a lado e os gritos
anunciavam as investidas e os açoites recebidos. Brados de dor, urros e
silêncios mortais.
A mataria
amanheceu em estado de devastação. Galhos retorcidos, troncos cravejados de
balas, folhagens tingidas de sangue. O combate travado fora tão violento que
urubus e outras aves carnicentas despontavam pelos ares em busca de sangue
ainda latejante. Mas nenhum morto por ali, nenhum cangaceiro ou volante
prostrado em suas dores e aflições. Ora, em guerra tão feroz as vítimas teriam
de estar por ali. Mas nenhum morto e nenhum ferido.
As marcas da
guerra ainda continuam pelos arredores daquele coito. Até hoje, contudo,
ninguém sabe o final daquela vindita travada em meio à escuridão. Entre
vencidos e vencedores, apenas a certeza de que os heróis não se eternizaram. Os
cangaceiros colocaram a volante em forçado recuou, ou a soldadesca fez com que
os homens do Capitão abrissem fogo somente para fugir? Ninguém sabe. Não
precisa saber. Não há nenhum herói nem bandido nessa história. Apenas homens
que nem sempre sabiam a bandeira de luta que carregavam.
Apenas ficção.
Mas bem que poderia ter acontecido assim.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário