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sábado, 11 de julho de 2020

MESTRE NAPOLEÃO TAVARES NEVES O MÉDICO QUE CONTA HISTÓRIAS

 Por Pedro Philippe • 21 de novembro de 2016
 Fotos: Samuel Macedo

Aos [89] anos, Napoleão Tavares Neves cultiva uma memória impecável, um currículo extenso e mil histórias de encantar. Autor de livros sobre o cangaço, cronista talentoso e memorialista por vocação, ele foi também um dos primeiros médicos a se estabelecer em Barbalha, apadrinhado por Pio e Leão Sampaio, que lhe ensinaram que Medicina se faz com o coração. Para a CARIRI, Napoleão resgatou relatos que a história oficial ainda desconhece e que lhe foram contadas pelo povo simples do sertão, gente que pediu a bença a Padre Cícero e que olhou nos olhos de Lampião.

“Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo…”, Socorro Neves interrompe o silêncio mal o carro sai de Barbalha, recitando todo o Salmo 90. Segurando as contas do terço entre os dedos, ela reza por uma viagem segura ao longo dos 137 km até Porteiras, enquanto o marido, Napoleão Tavares Neves, leva no colo um estojo com estetoscópio e prontuário e fala com empolgação sobre o que vê na paisagem já seca de agosto. “Aquele é o ponto mais extremo do sul da Chapada do Araripe”, ele ensina.

Depois se vira para o banco de trás e pergunta, apontando mais ou menos ao leste:

“Já foi em Missão Nova? Todo mundo acha que a primeira igreja do Cariri é a Sé do Crato, mas é uma que foi construída pelos capuchinhos bem ali”. Já chegando ao destino, o doutor mostra um lugar no horizonte: “Ali nas Guaríbas morava Chico Chicote. Sabe a história de Chico Chicote? A manhã em que a tropa do Tenente Zé Bezerra o atacou, em 1927, foi uma verdadeira epopeia nesse sertão”.

O rosário de Socorro durou a distância entre Missão Velha e Brejo Santo, mas a aula de geografia e história com Napoleão, se deixar, dura um dia inteiro. Naquela manhã de domingo, ele visitava as irmãs, Ranilda e Romilda, no distrito do Saco, na casa onde seu pai construiu um dos oito engenhos de rapadura que adoçaram a economia de Porteiras, quando este ainda era um distrito de Jardim. Porteiras tornou-se um município independente, depois veio a ser rebaixado novamente a distrito, ligando-se à cidade de Brejo Santo até se emancipar de vez, em 1953. O sítio foi basicamente batizado pela própria Chapada do Araripe, que o envolve como em um saco – visto de cima, é como se tivessem comido a Chapada em uma dentada. A casa de Joaquim Neves e Maria Tavares, pais de Napoleão, foi erguida justamente no recôndito desse U de 900 metros de altura, um semicírculo de cerca de 20km de comprimento, oito bocas d’água e uma imensidão verde, resistente às mais duras secas.

Do paraíso onde Napoleão passou os primeiros anos de sua infância ainda se avista, a duas léguas, a casa de Manoel Rosendo, seu avô materno, conhecido como Né Rosendo, para onde o menino corria todas as manhãs, montado em um cavalo de pau. Agora octogenário, Napoleão apoia uma bengala na mão e, na outra, carrega seu kit médico, aguardando a oportunidade de realizar uma consulta. Nem o chão entre as duas casas é mais o mesmo, já que a erosão e as chuvas torrenciais que desceram da serra nesse século que se passou criaram morros na área onde antes pastavam 800 cabeças de gado e existia uma plantação de cana-de-açúcar que era moída para mais de 1.500 engenhos do Cariri.

Toda sabedoria do mundo

Quando deu à luz Napoleão, no dia 17 de setembro de 1930, Maria já sofria há três dias as dores do parto. “Mas, também… Com uma cabeça grande dessas!”, diz o doutor mostrando o chapéu número 60, feito sob medida, e caçoando de si mesmo. O parto difícil foi feito por Pio Sampaio, médico que anos depois trabalharia com o menino que ajudou a pôr no mundo. Napoleão nasceu na fazenda do avô paterno, o Coronel Napoleão Franco, no Sítio Belo Horizonte, em Jardim, quando a cidade era só um curto trecho que começava na ponte sobre o Rio das Piabas e acabava na Rua da Baixa.

Jardim e Porteiras são cidades vizinhas, separadas pela serra alta, por onde a estrada faz o longo contorno que Napoleão percorria a cavalo. Nos anos em que viveu aos pés da Chapada, ele brincava de correr entre as caldeiras do engenho e de acompanhar os vaqueiros na lida. A convivência com os sertanejos que trabalhavam no Saco marcou a personalidade do pequeno Napoleão, impressionado com as histórias do cangaço, que para sempre assustariam sua mente de menino e, mais tarde, formariam o historiador que ele viria a ser.
 
 No sítio Saco com as irmãs, Romilda e Ranilda.

Montado em seu cavalo, ele fingia ser vaqueiro também, assistia aos aboios e pegas de boi, levava as reses para pastar e comia o típico almoço do sertanejo: farinha, rapadura e carne assada. “A carne do alforje é a mais gostosa do mundo!”, ele diz com intensidade, quase gritando, e explica o segredo: o sal impregnado no alforje sujo é o que dá o sabor, muito melhor do que a carne da cozinha, com o sal semeado. Deitados na bagaceira do engenho, os trabalhadores do Saco descansavam, admirando o céu estrelado, e aí então “a conversa truava até uma hora da manhã”, ele recorda. Eram pelejas de cangaceiros, estórias de trancoso e até aulas de astrologia.

As falas mais marcantes daquele tempo vieram de Antônio Farosa, um velho caboclo que parecia possuir toda a sabedoria do mundo. Sobre as estrelas cadentes, ele alertava a Napoleão: se aquela estrela bater em outra, o mundo se acaba. “E o que é que eu faço?”, ele perguntava. “Você reza: Deus te guie, Deus te guie, Deus te guie!”, Farosa ensinava a evitar uma hecatombe. “Eu ficava morrendo de medo, pensando: ‘eita rebuliço! Se ela bater e o mundo acabar, eu tô lascado!”, Napoleão ri. Mas nem só de peripécias vivia o velho sábio. Ele passou para Napoleão todo o conhecimento que tinha do Cariri – mística, natureza e cangaço.

O país das almas

“O Saco é o país das almas. Lá todo mundo vê alma”, Napoleão explica antes de contar a mais estranha de todas as histórias que ele presenciou, “A única vez que eu vi darem uma surra num defunto foi lá”. O fato aconteceu enquanto ele acompanhava o carregamento do corpo de um homem que morreu empurrando lenha no talhado do engenho. “Eles vinham descendo com o defunto em uma rede, até que um deles reclamou: ‘o defunto tá pesaaando’. Aí o mais sabido gritou: ‘Para, para, para! Isso é porque o diabo não quer que a gente leve ele pra igreja. Aí se escancha em cima da rede e faz pesar’. Eu fiquei todo arrepiado quando ele disse isso. Depois entrou no mato, tirou um galho de pau e deu uma pisa no morto. Enquanto ele dava, os outros descansaram”, contou. Quando testaram o efeito da surra, alguém elogiou: “Ah, agora tá manêro.

Aos 12 anos, acompanhando o aboio de 200 reses de uma fazenda a outra, Napoleão viu outro acontecimento, no mínimo mágico, digno de passagem em livro de Guimarães Rosa. A caravana se deparou com a caveira de um boi morto na estrada e, em vez de seguir caminho, todas os bois se puseram em torno do corpo do bicho e choraram. “Uma coisa que eu nunca vi na minha vida. A coisa mais linda. Os bois cavando em torno do irmão e urrando. Todo o gado, sem faltar um. Os vaqueiros então tiraram o chapéu, puseram no peito e baixaram a cabeça”. Maravilhado com o Cariri, o menino Napoleão começou a desconfiar que havia muita história a ser contada. Ele então adquiriu os hábitos que definiram sua personalidade e serviram para resgatar memórias dos caririenses: ele aprendeu a perguntar e a ouvir. Em sua biblioteca, uma estante que vai do chão ao teto guarda quase duas mil crônicas que já foram lidas em rádios de Barbalha e Crato, contando o que ele escutou ou viu em seus 89 anos de vida.

Se Napoleão não conseguia dormir, amedrontado pelos cangaceiros, não haveria como fugir: a sua avó materna, Ana Pereira Neves, a Donana, foi madrinha de Luiz Padre, o famoso cangaceiro de Serra Talhada. Para completar, o Saco era passagem de quem ia para Juazeiro do Norte através da Chapada. O caminho de Lampião no Cariri era sempre o mesmo: ele entrava por Macapá (atual Jati), ia direto para a Fazenda Piçarra (onde morava o amigo Antônio Teixeira Leite), subia a serra pela Ladeira da Salva Terra (entre Brejo Santo e Porteiras, onde Napoleão morava), até chegar na Serra do Mato (entre Barbalha e Missão Velha). Para entender a peregrinação do rei do cangaço e seus cabras, Napoleão recorria ao mapa sempre que ouvia as histórias da avó. “Donana me contava muita coisa e eu fui gravando tudo na cabeça”, recorda. Devota do Padre Cícero, ela se comunicava com o sacerdote por cartas. Uma correspondência em particular, Napoleão se recorda. Donana escreveu se lamentando: “Meu padrim, não posso subir ladeira, que me sinto cansada”. Ao que Cícero respondeu: “Isso é anemia. Vá em Porteiras e compre ferro em pó”. O doutor pondera: “Ele era muito prático, muito inteligente – pra a época e pra onde vivíamos”.
 A terra encantada do Saco, em Porteiras, 
onde Napoleão viveu a infância.
No caminho de Lampião

Quatro anos antes de Napoleão nascer, Lampião passou pela casa de Né Rosendo pedindo para deixar sua montaria descansando e pegar emprestados oito cavalos, para chegar bem apresentado em Juazeiro do Norte. Obviamente, Manoel não negou. Pediu para o filho Rosendo Miranda, então com oito anos, ir ao curral buscar os bichos para o cangaceiro. Esperto, o menino tentou uma façanha arriscada: escondeu os cavalos que ele mais gostava e trouxe oito burros de cambito, que Lampião aceitou. A cozinheira da casa de Né, Antônia Lúcia, contou a Napoleão outra passagem de Lampião pelo Saco: quatro de seus cabras se juntaram ao temido Horácio Grande para roubarem a fazenda. Antônia e Manoel, armados com os dois únicos rifles da casa, colocaram os homens para correr. José Roque, também morador do avô, contou a ele que, em 1927, andando pelo meio do mato, entre Porteiras e Jardim, foi surpreendido pelo bando de Lampião. Roque só conseguiu fugir quando começou um tiroteio entre os cangaceiros e policiais que apareceram de repente.

Em 1938, Lampião morreu em Sergipe enquanto Napoleão acompanhava tudo arrastando o dedo indicador pelo mapa do Nordeste e ouvindo as narrações através do único rádio de Porteiras – o da sua casa. “Eu soube pela voz de João Ramos, da rádio PRE9, que Lampião tinha morrido na grota dos Angicos”, recorda, com uma memória espetacular. No ano seguinte, forçado a largar as brincadeiras no canavial e as viagens com os vaqueiros, Napoleão se mudou para Jardim, a fim de estudar. A tia Beatriz Neves, professora normalista na cidade, preferiu educar o garoto em sua casa, em vez de mandá-lo para a escola. Nos anos que se seguiram, Napoleão foi alfabetizado, se preparou para o exame de admissão no ginásio e acompanhou o desenrolar da II Guerra Mundial pelo rádio, correndo sempre para o mapa múndi. Foi quando descobriu que o mundo era maior do que o vale encantado do Saco.

Aprovado no exame de admissão no Colégio Diocesano, ele se mudou para o Crato, de onde voltava a cada 15 dias. O velho Farosa ficou sendo o portador que o acompanhava no trajeto a cavalo. Saindo do Saco às 5 horas da manhã, os dois chegavam no Crato às 17h. Era um dia inteiro de cavalgada e muita história, enquanto o caboclo sábio ia deixando seu conhecimento com o amigo ainda adolescente. Em um desses dias, descansando na mata em Barbalha, Napoleão viu um morro com cinco cruzes. “O que é isso, Farosa? É um cemitério?”, ele perguntou. “Não. Aí estão enterrados os Fuzilados do Leitão”, explicou onde estavam os corpos de Lua Branca e outros quatro homens supostamente envolvidos com o cangaço, fuzilados em 1928. Lua Branca era o último dos irmãos cangaceiros de Barbalha que ficaram conhecidos com Os Marcelinos. Bom de Veras e João 22 já haviam sido assassinados, sobrando apenas o mais novo deles. Quando a Associação Pró-Memória de Barbalha quis reconstituir o local onde os fuzilados estão sepultados, Napoleão foi a única pessoa a saber onde estavam.

A verdadeira medicina

Nos anos entre Jardim e o Saco, Napoleão sentiu-se inspirado pelo trabalho do médico que o pôs no mundo, o barbalhense Pio Sampaio. “Desde criança, eu sabia que era aquilo que eu queria”, ele conta. “Eu gostava de tudo relacionado ao trabalho do médico, sobretudo o de atender a quem não podia pagar. Os exemplos que eu tinha eram daqui de Barbalha: Dr. Pio, Dr. Leão e Dr. Lírio Callou. Eles atendiam quem tinha dinheiro e quem não tinha. Aquilo me chamou a atenção e eu dizia comigo: ‘isso que é Medicina!”.

Formado em 1958 pela Fundação de Ensino Superior de Pernambuco, atual Universidade de Pernambuco, Napoleão encontrou a Medicina já em avanço no Cariri. O Crato tinha o Hospital São Francisco desde 1936 e, em 1955, Juazeiro ganhou o Hospital São Lucas. Fundado pelo bispo Dom Quintino Rodrigues, o São Francisco surgiu para tratar os acometidos pela peste negra (ou bubônica), enquanto o São Lucas, dirigido pela Sociedade São Francisco das Chagas, atendia com grandes médicos da época, lembrados até hoje, como Mozart Cardoso, Mário Malzoni e Mauro Sampaio, filho de Leão Sampaio, deputado federal desde 1933, responsável por trazer diversos recursos para o hospital.

“Do mesmo jeito que vinham atrás do Padre Cícero, as pessoas vinham de todos os lugares para se receitar com Pio e Leão Sampaio”, Napoleão conta. “Os romeiros iam para o Juazeiro e passavam por Barbalha. Depois voltavam pra terra deles falando que tinham se operado de graça, aí enchia de gente aqui”. Por muito tempo, Leão foi o único oftalmologista do interior do Nordeste, especializado em cirurgias de catarata. “Quando cheguei em Barbalha, eles estavam saindo”, ele lembra de quando os médicos da família Sampaio começaram a carreira política.

Napoleão morou por um tempo na casa de Edmundo Sá Sampaio, um primo distante, e acabou se apaixonando pela filha deste, Socorro. De acordo com os costumes da época, o rapaz saiu da casa para pedir a moça em casamento. Foi o pai de Socorro quem ajudou Napoleão a montar sua primeira clínica em Barbalha, onde o veterano Pio Sampaio atendia sempre que estava na cidade. No último dia em que Pio ficou sozinho no escritório do amigo, Napoleão foi interpelado por uma paciente, que reclamou: “Doutor Pio hoje me receitou, mas passou meia hora com a mão na testa, pensando. Tenho certeza que era escutando os santos para dar o diagnóstico”. “Eu contei a ele e ele riu”, Napoleão recorda, “E depois disse: ‘tome aqui a chave do seu consultório! Eu não venho aqui mais é nunca! Eu tô passando meia hora pra lembrar os nomes dos comprimidos”. Perguntado se Pio e Leão eram bons no que faziam, Napoleão responde sério: “Bons? Essa palavra não traduz o que eles eram”.
 Napoleão e Socorro
Não tem doente que escape

Seguindo os passos de Leão e Pio, Napoleão atendia em seu consultório de graça, sem nunca conseguir fazer o negócio lucrar. Por 33 anos, trabalhou no Sandu, em Juazeiro do Norte, concursado pelo Instituto Nacional da Previdência Social (Inamps), que mais tarde evoluiu para o atual SUS. Em 1970, foi inaugurado o projeto do hospital capitaneado pelo amigo Lyrio Callou e concluído pelas freiras Irmãs Beneditinas. Era o Hospital Maternidade São Vicente de Paulo, hoje o principal do Cariri, onde Napoleão trabalhou como diretor até ser convidado pela prefeitura para ajudar na atenção básica de Barbalha.

Já passando dos 70 anos de idade, o médico não havia perdido o ânimo pelo trabalho e nem a paixão pelo consultório. Ele labutou oito anos no Posto de Saúde das Malvinas, bairro periférico da cidade. Enquanto a maioria dos seus colegas atendia 20 pacientes por dia, ele chegava a receitar quase o dobro – até que, no Ministério da Saúde, estranharam que um único PSF tivesse atendido 60 mil pessoas em oito anos. A fiscalização que foi até as Malvinas viu que o doutor simplesmente cumpria os horários e não mandava nenhum morador de volta sem atendimento e medicação. Não faltavam prontuários para atestar a veracidade dos números. “Por que o senhor faz isso?”, um deles teria perguntado. “Porque tá aqui”, ele respondeu, batendo no peito, na altura do coração. “Nasci pra isso, então eu faço”.

Sobre os médicos que observou durante a juventude, ele resume: “Via de regra, eram sempre pessoas boas que tinham inclinação natural pra fazer o bem. Então a faculdade só fazia aprimorar”. E isso mudou? “Mudou! Mudou muito, mas muito mesmo. Hoje qualquer um que seja inteligente, tendo ou não tendo vocação pra Medicina, entra em uma faculdade. Aprende a teoria e depois se adapta. Hoje é difícil encontrar um médico que trabalhe por amor”, considera. “Mas aqui há duas faculdades de Medicina, soltando mais de 40 médicos no Cariri a cada semestre. Isso é muito bom. Não tem doente que escape!”.
 

Crônicas, filmes e relatos

Da varanda de sua casa, em uma tarde de segunda-feira, acompanhado da esposa Socorro e da filha mais velha, Jácia Maria, o médico com verve de historiador recebeu a CARIRI Revista. Jácia e suas duas irmãs, Raissa e Miria, se tornaram médicas também, e todas elas se casaram com médicos. Jácia é pediatra do Hospital São Vicente e, como o pai, não sai sem deixar um paciente sem atendimento. Pelas suas contas, em seus 10 anos no HMSVP, ela deve ter olhado para cerca de 60 mil crianças. Napoleão tenta explicar: “Dá uma satisfação íntima que a gente não sabe dizer o que é. Eu mesmo não sei”.

A paixão por ouvir o paciente dizer o que sente, pensar na solução e indicar o remédio acabou casando com a vontade de escutar também histórias como as de Donana e Farosa. Napoleão então criou o hábito de conversar com os mais velhos em seu consultório, tentando puxar relatos orais de fatos do Cariri. Raimundo Gomes de Figueiredo foi um desses, que chegou com verdadeiras joias: contou tudo a respeito de Júlio Pereira, o caririense que comprava munição para Lampião, e sobre Benjamin Abrahão Botto. As pesquisas do médico a respeito de Abrahão, secretário do Padre Cícero e fotógrafo de Lampião, serviram para Frederico Pernambucano de Mello preparar o roteiro do filme Baile Perfumado (1999).

O material que chegava na mesa do doutor também encheu a estante de crônicas e renderam três livros: Cariri – Cangaço, Coiteiros e Adjacências, Barbalha Cultural e Primeiro Templo Católico do Cariri. Por ser fonte recorrente para os alunos do curso de História da Universidade Regional do Cariri e ter seu nome citado em 3% dos trabalhos apresentados e publicados ali, Napoleão Tavares Neves recebeu o título de Doutor Honoris Causa da instituição.

“Minha filha, acho que eu tô louco”, ele desabafou com Jácia, no tempo em que ainda trabalhava, “Quando tá de tardezinha, eu quero que anoiteça, pra chegar logo a manhã e eu ir pro hospital, receitar”. No ano passado, Napoleão completou 58 anos em exercício, de volta ao ambulatório do Hospital São Vicente. Aos 85 anos de idade, parou de trabalhar porque as filhas o obrigaram a cuidar da própria saúde. “A gente já estava querendo que ele parasse e ele dizia que não. Aí a gente falou com a Irmã Ideltraut (diretora do HMSVP) pra ele ficar só meio expediente. Mas numa manhã ele atendia 40! Contrataram uma pessoa só para limitar o número de pacientes dele”, Jácia conta sem que ele ouça. Depois que a sala do doutor ficou vazia, volta e meia ainda aparece algum velhinho procurando pelo médico. “E agora? Com quem é que eu vou conversar?”, um deles saiu de lá se lamentando. “O que será de nós?”, outra reclamou.

“Era bom demais, rapaz!”, ele lembra de quando podia ir consultar, falando com uma satisfação tão grande que é como se descrevesse um hobby. Talvez de fato fosse. No domingo em que visitava o Saco, a única chance que Dr. Napoleão teve de atender um paciente foi quando este repórter se queixou de uma dor. “Onde é essa dor? Mostre aí. Na boca do estômago? Pare de tomar tanto café”, ele sentenciou.

Apoiado na bengala com os dois punhos, Napoleão admira a vista da Chapada do Araripe e, questionado se voltaria a trabalhar se pudesse, ele se vira e responde com a rapidez de quem acabou de ser acordado: “Volto! Eu já disse a Jácia que estou disposto”. Dificilmente Socorro e as filhas vão deixar. O estojo com o bloco do prontuário em nome de Dr. Napoleão Tavares Neves continua com as folhas em branco, o estetoscópio e o aparelho de pressão estão enrolados e, contra a sua vontade, o médico se aposenta.
 

Um pequeno grande homem
por Tadeu Alencar

“Quando conheci Napoleão Tavares Neves, ele não era nem o médico nem o homem. Era uma página vibrante da crônica da Rádio Salamanca, um Rubem Braga do Cariri. Era o ano de 1983. Eu tinha vinte anos. Ele, nascido no alvorecer da revolução de 30 e com o espocar dos seus disparos, tinha 53 anos, a idade que tenho hoje. Eu me iniciava na terra de Santo Antônio, onde viria a encontrar a eleita dos meus dias e ele já era uma autarquia, uma instituição. Tinha uma sabedoria que não terei jamais, mesmo com o passar galopante dos anos. Depois do cronista agudo sobre o cotidiano de sua gente, em especial de sua Barbalha, de quem foi o maior bardo, passei a ver aquela roupa branca com a sua sacralidade hipocrática, um médico da gente simples do sertão, à moda de um Leão Sampaio, de quem decerto era invulgar seguidor. Era culto, ilustrado, generoso, certeiro no diagnóstico, conhecendo como ninguém a alma do homem simples, cioso do papel de médico à moda antiga, dos partos em casa, da presença de todas as horas. Médico, psicólogo e catequista. No entanto, mais que o cronista, que o médico amoroso pelo seu ofício, o que me fez cativo para sempre do seu encanto foi o talento de historiador incansável, em sua curiosidade de menino travesso, ávido por tudo aprender. Napoleão era um João Brígido alimentado no bagaço da cana da Pedra Branca. Foi meu preceptor na arte da memória e na saga dos sertões adustos, da genealogia inebriante, dos jagunços de alma penitente, do Pe. Cícero, de Ibiapina, Floro e Bárbara – que, em sua extensão heroica, me foi apresentada por ele. Foi meu mais provocativo interlocutor em missivas que me faziam arregalar os olhos e abrir a mente. No meio da caatinga do caboclo, me mostrou o ouro que há nos veios da Chapada do Araripe. Um pequeno grande homem. Dos maiores que conheci”.

Napoleão pelos seus
“Hoje trilhando o árduo caminho da Medicina, eu imagino o quanto meu pai deixou de lado para que nada nos faltasse. Guardo lembranças de sua atenção, carinho e amor. Lembranças de noites de febre, com ele ajoelhado ao nosso lado. Lembranças do último beijo na hora de dormir e o apagar da luz do quarto. Lembranças do ajeitar do cobertor diariamente”.
Miria Neves Sá, filha, endocrinologista.
“Meu pai é um homem de muitas virtudes, mas duas delas para mim se sobressaem. A primeira é a gratidão. Sempre o vi cuidar com muito amor de quem zelou por ele ou por alguém de sua família. A segunda virtude é a valorização da minha mãe, Socorro. Isso para mim é extremamente belo e engrandecedor”.
Raissa Neves Fernandes, filha, reumatologista.
“Meu pai é um modelo de integridade, modelo de filho, modelo de amigo, modelo de médico. Meu referencial de bom senso, de fazer grandes e boas escolhas na vida. Meu referencial em como ser dono do seu dinheiro e não ser escravo dele. Olho pra ele com alegria, orgulho e felicidade de ter tido o privilégio de ser sua filha. Não é à toa que escolhi ser médica como ele”.
Jácia Maria Neves Coelho, filha, pediatra.
“Napoleão Tavares Neves, aos 86 anos, é detentor de uma bagagem cultural inesgotável, e transborda conhecimentos de história e geografia da rica e fecunda Chapada do Araripe. Dedicou grande parte destes 86 anos à Medicina voltada aos mais humildes, tornando-se uma referência de como deve ser um médico”.

Jairo Sá. Genro. cirurgião plástico.
 “Forjado na doçura das gamelas dos engenhos de rapadura e criado sob a beleza dolente dos aboios dos vaqueiros, Napoleão traz um legado de amor ao Cariri. Verdadeiro sacerdote da arte de Hipócrates, ele é um repositório vivo da História recente do Ceará, guardião incansável da sua memória e defensor intransigente da majestosa Chapada do Araripe”.
Leandro Cardoso Fernando, genro, cardiologista
Tudo  começou com Bonaparte

Napoleão Tavares Neves tem teses singulares para diversos acontecimentos. O comportamento pacífico de Lampião em relação ao Cariri, que muitos atribuem ao suposto respeito ao Padre Cícero, ele diz ter sido simplesmente estratégia do cangaceiro para não se indispor na região onde era obrigado a passar com frequência. Sobre o declínio dos engenhos de cana-de-açúcar, ele explica: a praga do bicudo destruiu as plantações de algodão do Rio Grande do Norte, da Paraíba e do Ceará, deslocando os trabalhadores da lavoura, principais consumidores da rapadura. Para o surgimento de um polo de saúde no Crajubar, ele tem uma teoria original.

Tudo começou com Napoleão Bonaparte. O militar francês invadiu Portugal em 1807, forçando a família real a fugir para o Brasil no ano seguinte. Com a vinda da corte para a colônia, muitos avanços foram empreendidos, entre eles a criação das Escolas Médicas de Salvador e Rio de Janeiro, por onde passou o barbalhense Leão Sampaio, formado em 1922, pioneiro em fazer o Cariri se tornar conhecido pelo atendimento médico. O irmão, Pio Sampaio, formou-se dois anos depois e, em 1930, estava atendendo em Jardim, onde fez o parto de Maria Tavares Neves, mãe de Napoleão.

Publicado originalmente na Revista Cariri


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