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sábado, 20 de fevereiro de 2021

O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA*

 Por Crônicas & Artigos - João Adolfo Guerreiro

Tenente João Bezerra da Silva

No crime existe sempre a versão da polícia e a do bandido, sendo que a verdade, por vezes, transita perdida por entre essas duas.

No crime existe sempre a versão da polícia e a do bandido, sendo que a verdade, por vezes, transita perdida por entre essas duas. Como escreveu Millôr Fernandes, “não pergunte quem atira, procure sair da mira, entre bandido e polícia, só a bala é verdadeira, e a vida uma mentira” (*1). Entendo ser justamente o caso do PM Cão Coxo e do bandoleiro Cego.

Os nomes que estavam por trás das alcunhas pejorativas pelas quais um zombava do outro são respectivamente tenente João Bezerra da Silva e “capitão” Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Possuíam aspetos biográficos comuns esses dois “silvas” antagonistas que, apesar do mesmo sobrenome, não eram parentes: ambos pernambucanos, nascidos em cidades (Afogados da Ingazeira / Serra Talhada) localizadas na Microrregião do Pajeú naquele estado, vindos ao mundo no mesmo mês e ano (julho de 1898), Cão Coxo no dia 24 e Cego no dia 4, portanto, vinte dias mais velho. Como esse texto é sobre a versão da polícia, focará na vida de Cão Coxo, pois já escrevemos sobre o capitão Virgulino na crônica publicada aqui no portal dia 27 de julho passado.

O oficial da PM de Alagoas João Bezerra era caçador de cangaceiros, comandante de volante, denominação dada aos grupos policiais que perseguiam tais bandidos nas décadas de 1920 – 30 pelo nordeste. O nome se devia à especificidade de tais forças: não possuíam quartel e se deslocavam constantemente. A biografia de Bezerra é longa, não é o caso de abordar minúcias num texto curto. Todavia, um episódio é interessante, para o caso, ser lembrado...

No início de sua carreira policial estava na cidade de Princesa Isabel – PB, trabalhando para o importante militar coronel José Pereira (1884 – 1949). Os fazendeiros da região eram acossados por uma onça que, além de matar animais, vitimara uma pessoa. Ninguém conseguia pegar o felino, mas João Bezerra viera a esse mundo para ser alguém. Embrenhou-se no mato atrás do gatão e somente retornou com a pata dianteira do bicho decepada como prova de seu feito. Veremos que esse modus operandi macabro seria repetido em bravuras de maior importância nos anos que viriam.

Vamos dar um salto nessa história até julho de 1938, quando encontramos Cão Coxo já como afamado tenente de volante, ele e Cego com 40 anos recém-completos. Caguetaram a João Bezerra que Lampião e seu bando estavam acoitados próximos a Piranhas – AL, justamente a cidade onde o tenente residia. Anos atrás, ela fora atacada pelos cangaceiros Gato (Santílio Barros, + 1936) e Corisco (Cristino Cleto, 1907 – 1940), na tentativa de libertar da prisão a esposa do primeiro. O delator diz que os irmãos e coiteiros Pedro de Cândido (Pedro Rodrigues Rosa, + 1941) e Durval de Cândido (Durval Rodrigues Rosa, 1920 - 2003), filhos do fazendeiro Cândido, sabiam o local exato do coito do Capitão. “Coiteiro”, cabe explicar, eram os que acoitavam os cangaceiros, sendo “coito” o esconderijo cedido. Bezerra manda um comandado seu buscar Pedro em sua fazenda Angicos no dia 27, mas este volta relatando que Pedro estava com a mãe doente e não viria. Enfurecido, o tenente passa uma carraspana no soldado e o manda voltar, acompanhado de outro, para trazer o coiteiro na marra. Entretanto Pedro, ao chegar, faz, por medo ou lealdade a Lampião, jogo duro. Bezerra arranca uma de suas unhas à faca, mas ele resiste. Contudo, ao tenente enfiar a faca por baixo de uma de suas costelas, sair por cima e apoiá-la na costela seguinte, Pedro preferiu correr o risco de encarar a morte mais tarde e dedurou que Lampião estava em Angicos, informando porém que apenas Durval conhecia o local exato do coito. Esse, um rapaz de 17 anos, foi pego em sua casa e, junto com o irmão, teve de levar a volante até onde estava o Rei do Cangaço (*2).

Saíram na madrugada do dia 28 com o objetivo de chegar à Grota de Angicos, onde ficava o coito, ao raiar do dia para surpreender os cangaceiros ainda dormindo. Poucos policiais foram informados sobre a identidade do caçado, pois Lampião metia muito medo. Beberam um trago antes de iniciar a marcha para fortalecer a coragem. Bezerra escreveu um livro em 1940 sobre esse episódio, confessando possuir dúvidas se ia para fazer uma emboscada ou cair numa. Olhava para trás e pensava em quantos daqueles homens não voltariam daquele combate. Pelo caminho, uma ocorrência pitoresca: os soldados ouvem barulhos na mata à retaguarda e se prepararam para o confronto iminente, quando um inocente e desavisado pangaré surge. Eles, apesar da tensão, conseguem rir baixo.

Chegaram silenciosamente à Grota de Angicos e dividiram a volante em três visando cercar o acampamento. O último grupo ainda não havia tomado sua posição quando o cangaceiro Amoroso levanta e vai buscar água para o café. Um policial dispara contra ele, fazendo com que os cem soldados atirem em uníssono com seus fuzis e quatro metralhadoras contra o coito, numa infernal carga contínua de cerca de quinze a vinte minutos. Ao fim, onze dos cerca de trinta e seis cangaceiros e cangaceiras acoitados jazem sobre o solo rochoso e pedregoso da Grota, dentre eles Lampião e Maria Bonita que, ao contrário do que diz a letra da canção (*3) gravada pelo ex-cangaceiro Volta Seca (Antônio dos Santos, 13.03.1918 – 02.02.1997) em 1957, acordou, levantou mas não fez o café; certamente este foi passado e bebido pelo tenente para curar a ressaca do trago. Amoroso e os demais sobreviventes só escaparam devido ao terceiro grupo militar ainda não estar devidamente posicionado.

Se matou a onça, tem de mostrar a pata; se matou o cangaceiro, tem de mostrar a... Cabeça! Elas valiam promoção para os policiais. E assim fez Cão Coxo, cortando-as e exibindo-as em Piranhas e outras cidades da região antes de enviá-las para a capital. Como Lampião há muito era notícia em todo o mundo, sua morte repercutiu em jornais da França, Inglaterra e Estados Unidos, tornando igualmente famoso o comandante da tropa que o liquidara. João Bezerra foi convidado a ir ao Rio de Janeiro para passar um dia inteiro com o presidente Getúlio Vargas, onde teve seu grande feito louvado e prestigiado.

E assim terminou a história dos pernambucanos do Pajeú Cão Coxo e Cego (*4). Bezerra faleceu em 4 de dezembro de 1970 em sua fazenda na cidade de Garanhuns – PE, vítima de um AVC.

Notas:

* - Título em português do filme americano do gênero de western “The man who shot Liberty Valence” (1962, John Ford), com John Wayne, James Stewart e Lee Marvin no elenco.

*1 - Poemeu olhando a bela paisagem de São Conrado do alto da Rocinha. Diário da Nova República, Volume III, L&PM, 1988, p. 108

*2 - Essa versão, a da polícia, é contestada por alguns pesquisadores. Para eles, há indícios que Pedro e Durval delataram Lampião em troca de vantagens oferecidas pela PM alagoana e que essa história de tortura e coação foi inventada para protegê-los de futuras represálias de cangaceiros.

*3 –“Acorda Maria Bonita / levanta, vai fazer o café / que o dia já vem raiando / e a polícia já está em pé”.

*4 - Existe um grande debate entre pesquisadores do cangaço sobre os fatos ocorridos nos dias 27 e 28 de julho de 1938, com significativa controvérsia. Assim, você poderá encontrar algumas narrativas com detalhes diferentes, conforme os autores. Por outro lado, no texto fiz uma versão sintética, omitindo minúcias que, entretanto, não comprometem ou distorcem o que se tem por consenso acerca do assunto.

https://www.portaldenoticias.com.br/ler-coluna/711/o-homem-que-matou-o-facinora.html#:~:text=Bezerra%20faleceu%20em%204%20de,PE%2C%20v%C3%ADtima%20de%20um%20AVC.

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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