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terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

UMA RADIOLA AO LUAR


Rangel Alves da Costa*

Sorte teve o meu pai, que lá pelos tantos idos de 1940 nasceu num sertão ainda virgem, matuto mesmo, de inocência cabocla e de infinito prazer da vivência na terra árida e cativante.

Naquela época certamente a natureza sertaneja ainda estava com o seu corpo imaculado, sem ter sofrido quaisquer desses abusos que hoje em dia nos faz entristecidos. Havia a sequidão pelos campos e matarias sim, pois sem as secas sertão não é sertão. Havia a pobreza grassando de palmo e palmo sim, pois a miséria parece ser filha do lugar e parente de todo mundo.

Mas havia muito mais, muito mais coisas encantadoras que amenizavam os sofrimentos e faziam o sertanejo viver na felicidade que somente ele sabe possuir, pois agradecido demais a Deus pelo galo cantando no alvorecer, pelo cuscuz e o leite tirado do peito da vaca, pelo café quentinho e pelo olhar que encontra sempre um dia bonito para viver.

Sertão é assim mesmo, seu moço! Bicho e poesia, cantiga e lamentação, bom dia e inté mais se ver, boa sorte e que Deus lhe ajude! E pelos caminhos que cortam a vida, os barracos se espalhando feito galinha no terreiro, bicho no berreiro, qualquer coisa no cercadinho e o prazer imenso de dizer isso é meu. Não tem nada não, seu moço, mas tudo é dele. É dele porque o sertão é dele e ele é o sertão em pessoa.

Meu pai nasceu num lugar assim, nessa vastidão sertaneja onde tudo mundo era feliz e não sabia. Somente mais tarde, quando o filho de Dona Emeliana e Seu Ermerindo ouviu pela primeira vez uma autêntica cantiga sertaneja, um legítimo violar caipira, é que começou a juntar a letra da moda de viola com a terra que pisava e a realidade vivida e decisivamente concluiu que as belezas do sertão são melodias de se caminhar e pegar com a mão.


Foi nesse momento que a viola caipira de Tonico e Tinoco entrou melodiosamente no coração de Alcino. 


Aquele rapaz, já político e prefeito do lugar, logo ao amanhecer escurecido ligava seu velho e potente rádio Philips, de quase meio metro de diâmetro, e sintonizava nas emissoras paulistanas onde sabia que não demoraria muito para ouvir a voz inconfundível da dupla coração do Brasil.

Sou filho - e por isso mesmo posso falar - que o rapaz já casado ainda assim era um inveterado namorador. Todo mundo sabe disso até hoje. 

Assim, quando um dia um primo seu chegado do sul lhe trouxe de presente uma radiola portátil novinha, pequenininha e azul, todas as noites, e sempre já em altas horas, Alcino seguia em direção à praça da matriz, colocava seu toca-discos em cima de um banco e ia escolhendo a dedo as músicas de Tonico e Tinoco.

Muitos dizem que ele fazia serenata louvando as belezas do luarar sertanejo, outros afirmam que era serenata mesmo, mas com outras motivações apaixonadas. De qualquer sorte, invariavelmente se ouvia todas as noites “Tristeza do Jeca”, “Eu e a lua” e “Pé de ipê” nas doces e inconfundíveis vozes de Tonico e Tinoco.

E se ouvia na “Tristeza do Jeca”: 

“Nestes verso tão singelo
 minha bela, meu amor 
pra você quero contar 
o meu sofrer e a minha dor 
Eu sô igual a um sabiá
 quando canta é só tristeza
desde um galho onde ele está
 nesta viola eu canto e gemo de verdade 
cada toada representa uma saudade...”.

Na “Eu e a lua”: 

“Eu me desperto em arta madrugada 
Em arvorada ponho-me a cantar 
Em tom profundo lamento em meu pinho
Triste sozinho vivo a recordar
 Vem ouvir ingrata quem deixou de amar
 Somente a lua no céu estrelado
 Está a meu lado, surgiu num clarão
 E tu querida nem abre a janela
 Vem ouvir donzela a minha canção 
Tu foi aquela muié sem coração...”.

E “Pé de ipê”: 

“Eu bem sei que adivinhava 
quando as veiz eu ti chamava 
de muié sem coração 
Minha vóiz assim queixosa 
vancê é a mais formosa 
das cobocra do sertão 
Certa veiz tive um desejo
de prová ao meno um beijo
 da boquinha de vancê 
Lá no trio da baixada
 pertinho da encruziada 
debaixo de um pé de ipê...”.

Até hoje, já depois dos 70 anos, Alcino continua ainda mais apaixonado pela autêntica música caipira. Naqueles idos suas paixões eram muitas e até dizem que muitas eram as mocinhas que choravam nos travesseiros ou pertinho das janelas, com os apertos nos corações que sempre chegam altas horas da noite e com a serenata sertaneja de Alcino.

Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com 

Enviado pelo poeta e escritor: 
Rangel Alves da Costa  

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